Blandina não se conformou. Leu, releu, treleu. Por que condenar a compra de remédios para disfunção erétil, próteses penianas e lubrificantes íntimos feita pelas forças armadas? Manter a tropa cheia de vigor garantiria que, quando o país necessitasse de seus homens, eles estariam lá fortes e plenos. Tudo pela Pátria, portanto, despesa justificadíssima. Só que, naquele cantinho de Copacabana, coabitado por ela e seu adorável generalzinho, não havia chegado nem uma mísera amostra grátis da pílula milagrosa.
Resolveu ligar
para umas amigas. Cuidadosa, daria voltas até tocar em assunto tão delicado. No
meio da conversa, especularia se elas viam aquela aquisição como um escândalo
ou se era mais uma violência da imprensa antipatriótica.
— Alô, querida
Dinah. Quanto tempo!
— Pois é,
Blandina, essa gripezinha tá custando a passar, não é? Ninguém mais promove um
baile, uma reunião, uma biriba.
— Uma tristeza.
Como se não bastasse, tem essa imprensa maldosa, caluniadora. Viu essa história
dos remedinhos azuis?
— Pecado, isso
é pecado.
— Pecado?
— Mentir é pecado,
Blandina. Veja se nossos soldados precisariam disso! A julgar pelo meu, é
tiroteio todos os dias — um risinho maroto foi o ponto final de Dinah.
— Claro. Aqui
também é uma guerra sem fim.
Gargalharam com
gosto.
Ligação
terminada, Blandina caiu no choro. Se Dinah, 70 aninhos, cinco mais velha que
ela, se fartava da compra, ela... Ou a amiga estaria mentindo? Fossem os papéis
invertidos, tinha dúvidas se contaria a verdade.
— Ih, Dinah,
nem posso dizer que a bandeira branca aqui está fincada, porque o verbo fincar
foi por nós esquecido.
Seria o fim do
prestígio de seu cinco estrelas. Nem pensar numa humilhação dessas. Concluiu
então que Dinah, no alto de sua experiência, mentiu. Mentiu e, ligação
encerrada, pintou uma péssima imagem da esposa do venerável general P. Flácido.
Que vergonha.
Como um
verdadeiro SNI, Blandina deu uma geral nas coisas do marido. Revirou gavetas,
pastas de documento, bolsos das fardas, arquivos no computador, declaração de
imposto de renda. Fora uns rascunhos de golpe aqui e ali, nada havia digno de
nota. Uma vida de marasmo. Nem amante o danado parecia ter.
Decidiu ir à
farmácia do exército. Lá diria que sofria de problemas pulmonares — razão pela
qual a “pílula celeste” (poderia chamá-la assim?) teria sido comprada — e
exigiria uma boa quantidade do tal levanta defunto. Tomou um banho caprichado,
maquiou-se com esmero, espalhou talco no pescoço e gotas de um francês nos
pulsos. Se enfiou num vestidinho não muito chique, mas formal, meteu os óculos
escuros comprados em Miami e chamou um táxi.
Ao chegar a Triagem,
estranhou a fila imensa e só de mulheres, a maioria conhecida, inclusive Dinah.
O que estaria acontecendo? Passara a manhã encafifada com a polêmica em torno
da compra e se esquecera de olhar a televisão. Não demorou a concluir, com
absoluta certeza, que nada de grave acontecera, todas estavam ali pelos seus
mesmos motivos. Perfilou-se ereta, convencida de ter escolhido muito bem a
roupa, os óculos, o perfume. Ali estava uma mulher de vida sexual invejável.
Ao dar
adeusinho a Dinah, lá na frente, a dois passos do balcão de atendimento,
Blandina pensou nas mentiras da amiga e quase foi lá rir da cara dela ou tirar
satisfação, mas achou melhor puxar assunto com quem estava a seu lado, Cândida,
a mulher do general C. Langoroso. Falaram sobre o clima, sobre como a vida era
melhor com os militares de volta ao poder; contaram de seus filhos, de seus
cachorros; lamentaram a falta do joguinho das quartas-feiras; por fim, trocaram
receitas, se fizeram elogios. Podia-se adiar, mas evitar saber a razão de a outra
estar ali era impossível. Blandina se adiantou para não ser pega de surpresa.
— Ora, Blandina, é cada pergunta.
Cândida gaguejou e, sem responder, fugiu para uma segunda fila que se formava. Diante de fuga tão evidente, Blandina transformou suas suspeitas em certeza: cada mulher daquelas buscava festim para dar fim à trégua. Se as outras tiveram coragem de fazer o pedido, ela não soube, mas supôs que não. À Blandina faltou confiança e, em vez do azulzinho, pediu cloroquina, remédio que não servia para Covid e menos ainda para dar fim ao armistício e reiniciar a saudosa guerra, uma batalha que fosse.
3 comentários:
Excelente. Um humor delicioso e provocante.
Maravilhosa!!!
Obrigado pela leitura, gente. Blandina agradece.
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