25.4.22

Fim do armistício

 Blandina não se conformou. Leu, releu, treleu. Por que condenar a compra de remédios para disfunção erétil, próteses penianas e lubrificantes íntimos feita pelas forças armadas? Manter a tropa cheia de vigor garantiria que, quando o país necessitasse de seus homens, eles estariam lá fortes e plenos. Tudo pela Pátria, portanto, despesa justificadíssima. Só que, naquele cantinho de Copacabana, coabitado por ela e seu adorável generalzinho, não havia chegado nem uma mísera amostra grátis da pílula milagrosa.

Resolveu ligar para umas amigas. Cuidadosa, daria voltas até tocar em assunto tão delicado. No meio da conversa, especularia se elas viam aquela aquisição como um escândalo ou se era mais uma violência da imprensa antipatriótica.

— Alô, querida Dinah. Quanto tempo!

— Pois é, Blandina, essa gripezinha tá custando a passar, não é? Ninguém mais promove um baile, uma reunião, uma biriba.

— Uma tristeza. Como se não bastasse, tem essa imprensa maldosa, caluniadora. Viu essa história dos remedinhos azuis?

— Pecado, isso é pecado.

— Pecado?

— Mentir é pecado, Blandina. Veja se nossos soldados precisariam disso! A julgar pelo meu, é tiroteio todos os dias — um risinho maroto foi o ponto final de Dinah.

— Claro. Aqui também é uma guerra sem fim.

Gargalharam com gosto.

Ligação terminada, Blandina caiu no choro. Se Dinah, 70 aninhos, cinco mais velha que ela, se fartava da compra, ela... Ou a amiga estaria mentindo? Fossem os papéis invertidos, tinha dúvidas se contaria a verdade.

— Ih, Dinah, nem posso dizer que a bandeira branca aqui está fincada, porque o verbo fincar foi por nós esquecido.

Seria o fim do prestígio de seu cinco estrelas. Nem pensar numa humilhação dessas. Concluiu então que Dinah, no alto de sua experiência, mentiu. Mentiu e, ligação encerrada, pintou uma péssima imagem da esposa do venerável general P. Flácido. Que vergonha.

Como um verdadeiro SNI, Blandina deu uma geral nas coisas do marido. Revirou gavetas, pastas de documento, bolsos das fardas, arquivos no computador, declaração de imposto de renda. Fora uns rascunhos de golpe aqui e ali, nada havia digno de nota. Uma vida de marasmo. Nem amante o danado parecia ter.

Decidiu ir à farmácia do exército. Lá diria que sofria de problemas pulmonares — razão pela qual a “pílula celeste” (poderia chamá-la assim?) teria sido comprada — e exigiria uma boa quantidade do tal levanta defunto. Tomou um banho caprichado, maquiou-se com esmero, espalhou talco no pescoço e gotas de um francês nos pulsos. Se enfiou num vestidinho não muito chique, mas formal, meteu os óculos escuros comprados em Miami e chamou um táxi.

Ao chegar a Triagem, estranhou a fila imensa e só de mulheres, a maioria conhecida, inclusive Dinah. O que estaria acontecendo? Passara a manhã encafifada com a polêmica em torno da compra e se esquecera de olhar a televisão. Não demorou a concluir, com absoluta certeza, que nada de grave acontecera, todas estavam ali pelos seus mesmos motivos. Perfilou-se ereta, convencida de ter escolhido muito bem a roupa, os óculos, o perfume. Ali estava uma mulher de vida sexual invejável.

Ao dar adeusinho a Dinah, lá na frente, a dois passos do balcão de atendimento, Blandina pensou nas mentiras da amiga e quase foi lá rir da cara dela ou tirar satisfação, mas achou melhor puxar assunto com quem estava a seu lado, Cândida, a mulher do general C. Langoroso. Falaram sobre o clima, sobre como a vida era melhor com os militares de volta ao poder; contaram de seus filhos, de seus cachorros; lamentaram a falta do joguinho das quartas-feiras; por fim, trocaram receitas, se fizeram elogios. Podia-se adiar, mas evitar saber a razão de a outra estar ali era impossível. Blandina se adiantou para não ser pega de surpresa.

— Ora, Blandina, é cada pergunta.

Cândida gaguejou e, sem responder, fugiu para uma segunda fila que se formava. Diante de fuga tão evidente, Blandina transformou suas suspeitas em certeza: cada mulher daquelas buscava festim para dar fim à trégua. Se as outras tiveram coragem de fazer o pedido, ela não soube, mas supôs que não. À Blandina faltou confiança e, em vez do azulzinho, pediu cloroquina, remédio que não servia para Covid e menos ainda para dar fim ao armistício e reiniciar a saudosa guerra, uma batalha que fosse.

3 comentários:

Maria Helena disse...

Excelente. Um humor delicioso e provocante.

Unknown disse...

Maravilhosa!!!

No Osso disse...

Obrigado pela leitura, gente. Blandina agradece.