Eu matutava sobre a enrascada na qual estamos metidos, a violência que tomou o país. Convenhamos, a violência não é de hoje, mas nunca havíamos visto o Estado ao lado dela, seu cúmplice. Quer dizer, vimos, e nem faz tanto tempo assim, no entanto tudo levava a crer que era página virada ou página que, com o empenho de todos, ia sendo virada. Todos, todos, não é verdade, uma maioria, quem sabe. Nesse torvelinho, cavava desesperançado o chão duro dos dias.
Foi quando, entre
a meditação, o sonho e o delírio, no meio do silêncio, brotou a palavra ternura.
Ternura, ternura, ternura. Se assentou ruidosa, relâmpago e trovão. Sou uma
deusa. Sou a razão da existência. Sou a única saída. Subservientes, todos os ecos
da razão correram em busca daquilo que fizesse jus aos preceitos da ternura. O
carinho de mãe. O sorriso de criança. A cumplicidade de um olhar. O amor. A ternura
disse, como se fosse o oposto de si mesma, não basta, é preciso mais. Mais? Um
fato, um fato, a ternura clamou por um fato.
Sinapses em
curto-circuito, memórias atabalhoadas, escrutínio catatônico em cada um dos
mais de trinta milhões de segundos vividos, e tudo que conseguia retribuir ao pedido
da ternura era a repetição. O carinho de mãe. O sorriso de criança. A cumplicidade
de um olhar. O amor. Mas a demanda da ternura exigia o agora. Agora, justo
agora, quando, a ferro e fogo, nos aliamos à incompreensão, nos confundimos com
ela, fazemos dela nossa razão de ser?
Uma imagem pousou
em minha cabeça, esse espaço infinito e compacto. Um homem na mata. Ele está sentado
e canta. Ele gira a cabeça, olha para trás, volta com a cabeça para a posição
inicial. Ele canta em uma língua nativa. Ele carrega um sorriso. Pura ternura.
É Bruno (1).
Bruno Pereira,
aquele que fez da luta com e pelos indígenas sua grande missão, primeiro como
agente do Estado e, depois de perseguido por este mesmo Estado — que abriu mão
de proteger os indígenas —, trabalhando para a Univaja (União dos Povos Indígenas
do Vale do Javari). Bruno Pereira, assassinado na mesma emboscada que deu fim à
vida do jornalista inglês Dom Phillips.
A partir do
próximo ano, teremos de reconstruir um país arruinado por forças retrógadas, obscuras,
violentas, portanto teremos de resgatar a ternura. Aquela que se encontra além
do carinho de mãe, do sorriso de criança, da cumplicidade de um olhar, do amor;
a que nutre os que lutam pelos desassistidos; a que anima quem se propõe a garantir aos
primeiros habitantes dessa terra o que é deles de direito. Regaremos com essa ternura
transformadora cada canto do país, quem sabe, assim, descolonizando-o de si
mesmo, de sua elite.
É um longo processo, e Bruno, o terno, é a fonte.
_______________________________________________________________________
(1) O vídeo no qual Bruno Pereira canta pode ser visto aqui.
4 comentários:
Alexandre, receio ficarmos entre a cruz e a caldeira. Tempos difíceis.Bjs
Que crônica Linda!!!
Só isso.
Vermelho
Não tenho esperança de que haverá ternura no próximo ano...
Ana e Marilena, se arrancamos Bolsonaro de lá, a ternura ganha uma esperança, o que não significa que não terá de lutar bastante. Vermelho, meu caro, obrigado.
Postar um comentário