24.10.22

Todos os latidos o latido

Estive em Tiradentes dias atrás e, entre fantasmas rebeldes reunidos na casa de Padre Toledo e amigos mais vivos que tudo, encontrei muitos cachorros soltos pela rua. Contaram-me que um turista assim feito eu, depois de uma temporada na cidade, expressou o desejo de se reencarnar ali como cachorro. Ele não está errado, os cães são bonitos, fortes, bem tratados. Até mesmo um husky siberiano visitou a mesa em que eu e os amigos mais vivos que tudo também tramávamos revoluções, ainda que a nossa passe pelo voto que expulsará do poder o incompetente e má pessoa que desgoverna o país.


Kira e Yuki
Ando sensível aos cachorros desde que minha filha adotou dois, a Kira e o Yuki. Por conta de uma viagem que ela fez, convivi bastante com eles. Foram dias intensos. Num deles, o Yuki fugiu da minha mão, atravessou a rua sem olhar e, não fosse um menininho de uns nove anos, é possível que ocorresse uma tragédia. O garoto foi para o lado do Yuki e o tocou para perto de mim, enquanto seu avô já estava com uma toalha na mão, pronto para jogar no cachorro e fazê-lo parar. Ufa. Mas, fora essa excepcionalidade, estive a mercê do jeito de ser dos caninos. Dormem, pulam no colo, pedem às vezes carinho e o tempo todo comida, se atacam uns aos outros (brincando, imagino). Latem, claro, mas tem hora até que parecem prontos a falar (conheci um que só andava sobre duas patas, achando-se bípede). Ouvir, ouvem, e com atenção (Freud deveria conviver com cães). Não é raro também enfrentarem (querendo brincar?) aquele sujeito — no caso, eu — que está sentado o dia inteiro, com os olhos no computador, trabalhando. Na verdade, eles não sabem o que é trabalho.

Tive cachorro na minha infância e depois mantive relações razoavelmente distantes daqueles que viveram ou vivem na casa de meus pais e de meus irmãos. Gosto dos que desfrutam dos quintais, com espaço para correr, dormir sob uma árvore, caçar uns bichinhos menores. Acho que desse modo se aproximam do que na essência eles são, sem a humanização forçada no convívio dentro de casa.

Em sua crônica do dia 15 de outubro, ao contar a cena a que assiste numa praça em Lisboa, enquanto trabalha em um café — uma crônica em que enaltece a segurança naquela cidade, naquele país —, Antonio Prata inicia o último parágrafo assim: “O objetivo final da civilização deveria ser o tédio. O tédio é o antípoda da barbárie.” Kira e Yuki (também os finados Tilu e Pirro e os velhinhos Popesco e Tobias) vivem entediados, não tenho dúvida disso. Sempre associei esse tédio a sofrimento, mas, depois do Prata, revejo meu ponto de vista: os cachorros já estão onde um dia almejamos chegar.

4 comentários:

Unknown disse...

Eu também só tive cachorro quando tive quinta! Penso que eles não merecem a frieza dos apartamentos. Aqui no rio os cachorros (e gatos) mais bonitos e felizes são os que vivem livres no Aterro do Flamengo e os companheiros dos habitantes das nossas ruas. Aí eles são companheiros e cuidadores de seus donos.

Vermelho

Ana Cecilia disse...

Amei! Um detalhe: Os caes de Freud tinham permissao para ficar no consultorio dele, enquanto escutava os pacientes.

No Osso disse...

Vermelho, concordo com você. Bicho gosta de liberdade. Ana Cecília, ótimo saber isso do Freud, ele prestou muita atenção em seus cachorros, a tal escuta veio daí (se não veio, foi uma fonte inspiradora).
Obrigado, amigos.

Aroeira disse...

Oh, my dog! Muito bom!