5.11.22

Teoria e tensão

Em momentos de tensão, faço teorias sem serventia e não passíveis de testagem.

Dia desses, fiz uma que relacionava as etapas da vida ao volume de chaves que uma pessoa carrega. Até os dez anos – um pouco mais, um pouco menos – ninguém tem uma. Quando eu tinha essa idade e morava no interior, as portas estavam sempre abertas. Hoje, com o perigo em todos os lugares, as crianças nunca saem sozinhas ou, quando saem, vão ao play, de onde voltam cedo, apertam a campainha e são recebidas. Dirão que estou com visão classe média alta de cidade grande. É verdade, alguns lugares ainda são seguros, e as crianças entram e saem de portas sem chaves. Em outros, a violência é tanta que elas têm sido impedidas de ter infância. Mas não vamos por aí, fiquemos no mundo idealizado. É só uma teoria.

Entre os doze e dezoito anos, dependendo de onde se vive e da personalidade dos pais, o adolescente ganha uma chave e pode ir às baladas despreocupado, não terá de incomodar ninguém ao chegar de madrugada, embora, mal comece a destrancar a porta, encontrará a mãe (principalmente ela) ou o pai plenamente despertos. Ouvirá então, enquanto se afasta da porta: “Filho, filha, tudo bem?”. Digamos que ele ou ela esteja bem – inteiro está, claro, mas que esteja em estado de quem não bebeu demais e pode responder sem culpa: “Tudo ótimo, voltem a dormir”.

Chega-se à vida adulta, e o trabalho enche o molho de chaves: a da mesinha, a do armário, a da sala. Além das chaves do carro ou do cadeado da bicicleta e a da casa dos pais, que, à medida que envelhecem, exigem atenção especial e prontidão para socorrê-los em caso de uma emergência. Há aquelas pessoas que têm a casa do amante ou da amante, embora, nesses casos, as chaves fiquem noutro chaveiro, guardadas no fundo da pasta, bolsa ou mochila, que, por sua vez, também têm as suas chaves. Hoje existem as eletrônicas, logo o volume – se uma delas servir a muitos propósitos – pode ser menor, mas o número de portas, mesas e carros continua grande.

Um dia, a coisa regride. Aposenta-se, e muitas chaves tornam-se desnecessárias. Os pais morrem, e outras perdem a utilidade. Chega-se a uma idade na qual não se pode mais dirigir, nem bicicleta. Mesmo os amores tórridos e clandestinos acabam.

Assim, quando somos mais potentes (mas não tão sábios), carregamos muitas chaves. Eis a teoria. Tão estúpida, imagine o grau de tensão que me levou a elaborá-la (palavra forte demais? Podem trocá-la, mas dela eu não abro mão). Concebi essa risível teoria na semana anterior às eleições, então é fácil imaginar a que tensão estava submetido.

Se estou mais calmo? Os problemas estão aí, travaremos imensas batalhas para recolocar o país no rumo, em campo democrático e civilizado, mas, de todo jeito, as chaves reabriram a porta do futuro. Podemos entrar.

2 comentários:

Unknown disse...

Alexandre, eu gostei da teoria. Só que eu só fui ter minhas próprias chaves à beira dos 18 anos, quando fui morar em campinas e estudar na UNICAMP. Antes morava com minha mãe em Salto de Pirapora, onde não precisava de chave nenhuma!

Mas sua crônica me lembrou de um amigo que nunca mais vi! É o Fábio que fazia mestrado em Matemática no IMPA quando eu fazia em Estatística. Morávamos juntos na Glória.
O Fábio foi a pessoa mais organizada que eu conheci. Ele tinha um chaveiro enorme com um número imenso de chaves, que ficava no armário dele. Tinha um outro chaveirinho comum que levava no bolso.
Toda manhã ele se levantava e cumpria um número enorme de funções: banho, pentear o cabelo, escovar dentes, tomar café, escovar dentes novamente, enfim, tudo isso de maneira muito organizada.
A última coisa que ele fazia antes de sairmos em direção ao IMPA era abrir o armário, pegar o chaveirão, pensar nas atividades daquele dia e quais as chaves que iriam ser necessárias para cumpri-las. Então ele sacava uma ou duas chaves do chaveirão e colocava no chaveirinho.
Pronto: podíamos sair em direção ao IMPA!!!


Vermelho.

No Osso disse...

Vermelho, que história doida. Seu amigo foi um enviado de São Pedro, só pode. Abraços.