às crianças da Palestina
Dos filmes que têm circulado, inclusive candidatos ao Oscar,
“Dias perfeitos”, de Wim Wenders, com o incrível ator japonês Köji Yakusho, foi
o que me tocou mais profundamente. O enredo do diretor alemão e de Takuma
Takasaki se passa no Japão, com atores japoneses, equipe japonesa e falado em
japonês. É quase mudo, além de ser de poucos movimentos, ao contrário do que
eram as fitas de Charles Chaplin ou Buster Keaton. A música é uma personagem, a
voz do silencioso Hirayama, o limpador de banheiro público em Tóquio. Tenho
assistido a algumas produções ótimas, como “Pobres criaturas”, “Anatomia de uma
queda”, ou a não tão ótima “Saltburn”, e o de Wenders se diferencia delas por nos
convidar a buscar um cantinho, tirar os sapatos e tomar um café no mundo
interior. Os outros, ruidosos na sua maioria, são de embates, de personagens que
se afirmam quando lutam contra um lá fora hostil. Hirayama não quer nada disso,
ainda que não seja nem tolo nem alienado. Aos poucos, temos algumas pistas de
sua vida e podemos levantar hipóteses sobre por que está ali, levando aquela
vida simples, rotineira, sem grandes contrariedades.
Toda noite, Hirayama sonha imagens meio tremidas, cheias de
sombras. Todos os dias, fotografa as sombras formadas por uma imensa árvore (a
questão das sombras se explica, desde que o espectador espere o final dos
créditos). E a esse respeito, houve uma coincidência. Um ou dois dias antes de ir
ao cinema, acompanhei a live “A fim de poesia” que a poeta Noélia Ribeiro
faz, desde o início da pandemia, no Instagram. Na temporada mais recente, ela
mudou a dinâmica. Agora, em vez de convidar poetas e promover um sarau no qual eles
leem seus poemas, ela e Fátima Ribeiro escolhem poesias e as leem. Naquela
ocasião, Fátima leu um poema do meu “O sol pelo basculante” (editora Urutau),
que reproduzo a seguir.
O homem íntegro
a
Eustáquio Grilo
Não sou desses homens que têm dois lados
o A em contraposição ao B
o beco às terças, a avenida aos domingos
o comezinho de costas para o incomum
a alma contra o corpo.
Mesmo assim ou por isso mesmo
amo desconfiado
trabalho desconfiado
vivo desconfiado
— há, na integridade, uma sombra.
Tenho, como todos,
peito e dorso
bunda e coco
ombro e sexo
joelho e calcanhar.
Dentro e fora, o único rosto
em feriados e dias úteis, um só esforço
na mesma bica, o sedento e o saciado.
Tomo como certa a hora de
cortar o cabelo. E como medo
inconfesso que me aparem a sombra.
Meu poema – aqui não há uma questão de valor ou coisa similar
– faz fronteira com “Dias perfeitos”. Não é uma afirmação narcísica, mas a percepção
de pontos de diálogos. Hirayama se encaixa bem no homem íntegro do poema.
Seja como for, e seja lá o que isso tudo é, Wenders berra a
favor da simplicidade – em entrevista, ele disse: “Dias perfeitos é o mais
próximo que já cheguei de fazer uma declaração sobre a paz” – e me remete a uma
vida que já tive: a de jovem do interior de Minas. Lá viveu minha prima Maria
Escolástica. Era sobrinha de meu pai, mas não diferiam muito em idade. Dona de uma
casa movimentada – aos filhos e, depois, noras, genros e netos, agregavam-se sobrinhos,
primos, vizinhos –, ela tinha uma máxima recorrente: tudo é bobagem.
Hirayama, ao dar acolhimento à sobrinha que foge da casa dos
pais, leva-a para ver o rio, e ela lhe pergunta se o rio vai dar no mar. Sim.
Ela pede para irem até lá. Ele responde que da próxima vez irão. A menina
indaga quando é a próxima vez. E ele: a próxima vez é a próxima vez. Ela insiste.
Ele mantém a resposta frouxa e acrescenta, agora é agora. Ambos saem pedalando
e improvisando uma melodia para “a próxima vez é a próxima vez, agora é agora”.
Uma cena linda, num filme de muitas cenas lindas. Bem, mas eles poderiam sair
cantando “tudo é bobagem”. Minha saudosa prima Maria Escolástica está na gênese
do filme de Wenders.
4 comentários:
O simples é simplesmente rico.
Amei esse texto!
Lindo texto, como deve ser o filme!
Que beleza, Xande! Gostaria de ter conhecido a prima Escolástica.
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