26.8.24

Uma semana de cão

 



Para Helena e Luan


Helena e Luan viajaram, então passei uma semana cuidando da Kira e do Yuki, os cachorros que me conhecem como seus auvô. Fomos felizes, creio, ainda que eles parecessem melancólicos e donos de um vazio evidente. Como também mergulho em poça nem rasa nem funda, fomos felizes também por compartilhar, em silêncio, nossas garatujas existenciais.

Em minha casa, no interior de Minas, sempre houve cachorros. O que marcou minha vida foi o que temia tanto a água quanto a palavra água. Era só dizê-la para o Zorro sumir do mapa. Nunca tomou um banho que não fosse dado pela chuva, da qual não tinha como fugir, pois não frequentava o interior da casa, vivendo no seu, e todo seu, quintal. Assim, o corpo a corpo com meus aunetos foi um aprendizado e me obrigou a me desvencilhar de preconceitos. Os dois dormiam ao meu lado, às vezes me fazendo de travesseiro. Aí está uma ideia a se pensar: nascemos, crescemos, formamos família e, não mais que de repente, nos transformamos em travesseiros. Num mundo em que muitos mal conseguem abrir ao afeto um mínimo espaço dentro de si, não é ruim ser um travesseiro – para cachorro ou não.

Durante aqueles dias, aqui e ali torcia por nossas equipes nas Olimpíadas e, final do dia, início da noite, via ou revia filmes. Houve uma certa decepção com a seleção feminina de futebol – quem ganha a medalha de prata perdeu o jogo final – e a alegria promovida pela dupla feminina de vôlei de praia. Entre as medalhistas de ouro, descobri Bia Souza (1), do judô. Só de olhar para ela, dá vontade de ser seu amigo, de compartilhar daquele sorriso esplendoroso. E principalmente de abraçar aquela mulher que, diante de um repórter sem noção que lhe pede, enquanto ela desce do pódio, uma opinião sobre Teddy Riner – o judoca francês que conquista tudo –, responde que o cara é bom, mas ela, com a medalha de ouro no peito, quer saber é de comemorar a própria vitória. Isso, garota, falo sozinho. Kira balança o rabo, igualmente solidária à Bia. Indiferente, Yuki rói o osso.

As disputas em Paris inspiraram vários memes. Ciscando um aqui, outro ali, cheguei a duas conclusões: não há vida sem memes e Minas está em alta. Graças à inteligência artificial, Simone Biles e Rebeca Andrade conversam, e a americana pede à nossa atleta que leve a Los Angeles, em 2028, um queijo brasileiro bom. Rebeca responde que tem amigos em Minas, que irá arranjar o melhor. Aí Simone comenta que na terra dela também falam uai, e a brasileira, meio surpresa, diz que jurava que sua adversária era mineira. Bobagens saborosas, que Kira e Yuki ignoram, preferindo, em momento de tédio profundo, partir para uma brincadeira mais vigorosa: encaram-se, avançam um sobre o outro, trocam mordidas e latem com ganas de calar o mundo. Com isso, quem não se anima sou eu e, depois de tentar sem sucesso repreendê-los, me abstraio daquela balbúrdia e vou preparar meu café das 16h, que não é boca de pito para aquele cigarrinho das 16h20m.

Sou daqueles que gostam de uma boa e velha sala de cinema, mas quem não tem cão, caça com gato. No caso, eu tinha cães, que, aliás, gostam de caçar pernilongos e não soube nem sei – por sorte – como fariam se, por acaso, um rato nos visitasse. Sendo assim, como se adentrasse uma floresta de raposas, na companhia de meus ferozes cães farejadores, explorei os streamings da vida.

Entre as revisões: “Terra estrangeira”, de Walter Salles e Daniela Thomas, se passa na época de Collor e me faz suspirar: “ah, o Brasil e seu habitual retorno ao abismo”; “Meia noite em Paris”, de Woody Allen, nostálgico e leve, dá uma chave de braço em nossa perspectiva: a utopia está no passado, quer dizer, esteve, ou seja, além de nostálgico e leve, um tantinho pessimista. “Encontro e desencontro”, de Sofia Coppola, é, como minha memória retinha, um ensaio delicado sobre a solidão. Por fim, “Priscilla, a rainha do deserto”, de Stephan Elliott, um filme com vinte anos e atual, é uma deliciosa ode à diversidade sexual, ali representada por duas drag queens e uma transexual.

Vi “Belfast”, de Kenneth Branagh, e “Clube de compra de Dallas”, de Jean-Marc Vallée, pela primeira vez. O primeiro é um olhar sobre a infância numa cidade que vai sendo tomada pelo embate violento entre protestantes e católicos. Nos créditos finais, o filme é dedicado aos que ficaram em Belfast, aos que partiram e aos que se perderam em meio ao conflito. E é isso que essa história de formação evidencia: não é covarde quem vai embora, não é herói quem fica e muitos se perdem, tendo ficado ou ido. O segundo, além de pontuar um momento tão cruel da história recente, o do surgimento da aids, mostra, sem panfletarismo, como a ciência e a indústria em alguns momentos defendem interesses próprios, nem sempre em sintonia com os da população. 

Se os memes não interessaram aos irmãos Kira e Yuki, os filmes, muito menos, ainda mais por nenhum deles colocar em cena um gato, um cachorro, peixinhos no aquário; um rato que fosse.


(1) Uma entrevista com a atleta, feita por meu filho, o jornalista Pedro Werneck, pode ser vista aqui.

12.8.24

Longe do algoritmo

É dada como certa a leitura de nossa mente pelos algoritmos.

Já não é surpresa que, depois de pesquisar sobre um produto, suas propagandas brotem em todo canto da internet a que se vá, das redes sociais à caixa do correio eletrônico.

Cogita-se que as conversas em torno dos celulares sejam ouvidas e associadas a mercadorias condizentes com elas, que são logo oferecidas à roda de amigos. Troca-se uma ideia sobre fotografias de infância e, ao acessar a internet, estão lá vários modelos de câmeras (hoje embutidas em celulares), scanners para digitalizar fotos antigas e espaços em nuvem para armazenamento de arquivos. Não falta ainda, para adular os fiéis ao mundo tátil, uma série de links para a aquisição de álbuns físicos e endereços onde fotografias ainda são reveladas, quer dizer, impressas.

Pincelei as consequências comerciais, mas há possibilidades políticas e de espionagem, além, claro, do treinamento da inteligência artificial, um mundo em expansão. Sugiro, como fazem os políticos – não sei se estou, ao contrário deles, sendo inocente –, desligar o celular quando for tratar de assuntos sensíveis ou desfrutar de momentos íntimos.

Temos chamado essa situação de coincidência, o que não é. Está mais para uma intromissão na vida privada, uma invasão violenta, inclusive. A coincidência, de fato, acontece no mundo real e existe desde sempre. Quem não tem uma história para contar?

Ao lançar meu primeiro livro, “Contos de homem” – que no ano que vem completará trinta anos –, fui convidado para uma conversa em uma faculdade em Belo Horizonte. Fiz uma fala e, em seguida, os alunos, a partir da leitura de um semestre, teceram comentários, encenaram algumas das histórias e ainda me entregaram pequenas cartas escritas sob o impacto da leitura. Um troço lindo.

Um dia antes, havia ido ao cinema com uma de minhas irmãs. Na saída, tomamos um café ali mesmo, no saguão. Na mesa ao lado, duas mulheres conversavam, e certa hora jurei ter ouvido meu nome. Ficou por isso mesmo, já que elas não me reconheceram (porque não me conheciam) nem fui até elas saber se ouvira bem.

O evento ao qual eu iria fora organizado pela professora Marisa Fortes Ribeiro, amiga e colega de trabalho de minha outra irmã, com quem comentei sobre a impressão de ter ouvido meu nome. Num mundo sem internet, apenas no outro dia fui ter a confirmação de que, sim, falaram de mim. Quem estava no café era outra do trabalho, e ela comentara com sua companhia sobre a ida do irmão-escritor da colega a BH. Uma conversa trivial, acrescida de certa curiosidade sobre a figura dos escritores.

Li "A dor fantasma", de Rafael Gallo, livro bastante premiado. O personagem central, um pianista cuja carreira é cortada por conta de um acidente, é um sujeito egoísta, um pouco ridículo e de fato doentio – narcisismo patológico, segundo minha amiga Vânia Osório. Terminada a leitura, parti para outra, um romance de Simenon, "O burgomestre de Furnes".

Há muito tempo, ganhei – do saudoso Horácio, fã do escritor – dois livros de Simenon, o criador do comissário Maigret. Li um deles, uma das histórias protagonizadas pelo inspetor, e supus que o burgomestre também o fosse, mas não, ele é de uma outra categoria explorada pelo profícuo escritor belga, a do romance psicológico, se é que pode ser chamado assim.

Simenon, do mesmo modo que Gallo, coloca em cena um egoísta terrível, com o agravante de o seu prefeito ser poderoso, ao contrário do pianista do brasileiro. Ambos têm filhos com problemas mentais (a filha do burgomestre em grau maior que o filho do pianista). Ambos têm uma mulher com a qual a convivência é praticamente destituída de afeto (mais no caso de Gallo do que no de Simenon, ainda que este seja mais abusivo que o outro). O burgomestre tem mais nuanças que o pianista, é menos linear, mas considerações como essa fogem ao meu objetivo, que é apontar a coincidência entre os romances distantes no tempo em mais de oitenta anos (o de Simenon de 1939, o de Gallo de 2023) e o fato de eu, sem saber disso, lê-los em sequência.

Saquei da pilha que fica na mesinha de cabeceira uma coletânea com quarenta e sete contos de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio. No prefácio, Antonio Muñoz Molina diz: "Onetti, leitor fervoroso dos romances do comissário Maigret, conhece como ninguém um recurso admirável de Simenon, o das repetições de hábitos, lugares e gestos". Por encontrar os mesmos artifícios nos contos de Onetti, a literatura do uruguaio se avizinharia da de Simenon.

Fecha-se assim um ciclo de coincidências. Coincidência verdadeira, raiz – manipulação do acaso em nossa vida –, e não a forjada pelas mãos maliciosas que vêm dominando o mundo de uma forma nunca vista, o tal algoritmo.