30.6.25

Em São Paulo, com livros

Estive em São Paulo com a desculpa de lançar meu mais recente livro, “Aí onde não cabe”, editora Patuá. Digo desculpa porque o livro já tem um ano e meio de vida – se é que se pode dizer assim, haja vista que levei uns seis ou sete escrevendo uma de suas duas novelas – e já havia sido lançado na cidade em fevereiro. Assim, essa foi a forma que encontrei de me forçar a visitar a Feira do Livro, evento que, à distância, sempre acompanhei com interesse.

Não me arrependi. As tendas são montadas na Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu. Em dias ora frios, ora quentes, ora com garoa, ora com o céu mudando de azul a nublado, o espaço é acolhedor. Pessoas passeiam com seus cachorros e espiam livros. Atletas se exercitam entre livros. Crianças correm de um livro para outro. O livro, enfim, abandona sua pretensa sacralidade, as bibliotecas, os espaços sisudos, e ganha a praça. A Praça Charles Miller é dos livros, como o céu é do avião. Mas ultimamente o céu tem sido das bombas enviadas por energúmenos que não leem. Bem, sigamos.

As conversas se dão em um auditório aberto, e, para acompanhá-las, não é necessário pré-agendamento ou a obrigação de se sentar na plateia. Como só fiquei um dia na cidade, acompanhei, assim mesmo não totalmente, o papo sobre futebol entre Mário Prata e Ugo Giorgetti. Mário falou de seu romance “O drible da vaca” (Record), Ugo, de suas crônicas jornalísticas reunidas em “Era uma vez o futebol” (Imprimatur/7 Letras). Mário contou que o livro, uma especulação delirante sobre a origem do esporte bretão, exigiu muita pesquisa. Nela descobriu, por exemplo, que a rainha Vitória, famosa por impor valores morais rígidos a seus súditos, era chegada a um baseado, quer dizer, a maconha lhe era receitada por um guru indiano, já não me lembro por qual razão. Ugo, por sua vez, reclamou do futebol – segundo ele, uma das grandes artes brasileiras, ao lado da literatura, do cinema, da música e das artes visuais –, que, com o VAR, quer se transformar numa ciência exata. É saudoso dos tempos em que a mãe do juiz não tinha sossego. Ugo também confidenciou que, nas tratativas para a sua participação na Feira, a pessoa encarregada do contato perguntou-lhe qual o número da sua chuteira, com vistas a convocá-lo para a pelada entre escritores que aconteceria no último dia. “Essa pessoa não sabe quem eu sou”, disse o senhor de mais de oitenta anos, que se locomove com o auxílio de uma bengala. Paulo Werneck, o organizador da coisa toda, pediu desculpas, a pessoa cumpria um protocolo acordado.

Fiquei quase o tempo todo na tenda da Patuá dividida com outras editoras. Não me lembro de todas, mas a relativamente nova e já com ótimo catálogo, Sinete, era uma delas. Naquele cantinho, conversava com uns e outros, inclusive com conhecidos apenas de redes sociais ou vistos de relance nalgum canto. Ótima chance de perceber que tem muita gente empenhada em produzir um trabalho sério e permanente. Particularmente interessantes foram as conversas com o Eduardo Lacerda e a Pricila Gunutzmann, meus editores da Patuá, e com o Whisner Fraga, escritor de garfo e faca – seu mais recente livro, lançado por sua própria editora, “as fomes inaugurais”, é uma coletânea potente de minicontos – e editor sensível e cuidadoso da Sinete. A vida desses abnegados não é fácil, não. Para eles, leitor, acenda uma vela, quem é de vela; reze uma prece, quem é de prece; bata um tambor, quem é de tambor. Mas, principalmente, comprem os seus (nossos) livros.

Duas primas minhas – uma de segundo grau, a outra, de terceiro – apareceram lá. A de segundo grau é minha conhecida desde os tempos em que éramos bem crianças, ela, então, mais nova que eu, praticamente um bebê. A de terceiro grau, não, só a conhecia de redes sociais, mas é filha de outro primo, de segundo grau, que foi meu grande amigo e que não está mais por essas bandas da terra. Com as duas e seus parceiros fomos conversando, conversando, a Feira fechou e nos deslocamos para um lugar que eu desconhecia (Bar Balcão) e continuamos a conversar, a conversar. Coisa linda quando os elos familiares se justificam. Pena que um outro primo – este de primeiro grau – passou pela tenda da Patuá num momento em que eu não estava. Nos desencontramos.

A Feira me pareceu equacionar bem os espaços entre as grandes corporações e as menores. Havia as tendas maiores – a Patuá e suas parceiras ocupavam duas de tamanho padrão – e umas enormes divididas por inúmeras editoras, que, por sua vez, tinham direito a uma espécie de balcão. Essas tendas coletivas localizavam-se bem no meio da feira. A Patuá na entrada à esquerda. Ou seja, houve uma preocupação com a visibilidade dos pequenos, esse resistente povo do livro.

O Rio de Janeiro merecia uma feira dessas a céu aberto. No ano passado, por exemplo, não houve a Primavera dos Livros, que acontecia nos jardins do Museu da República. A Festa Literária das Periferias – FLUP, itinerante e dos mais importantes eventos literários do país, costuma ocupar espaços públicos, ao ar livre, mas não é uma festa de editoras. Beira da praia, Parque Madureira, rua do Mercado, praças San Salvador, Saens Peña ou Paris, MAM, Quinta da Boa Vista: não faltam lugares bonitos para um evento desses.



 

16.6.25

Mil nomes nenhum

Eu não vejo a Janaína há tanto tempo que não posso dizer se continua com aquele sorriso acolhedor e olhar curioso. Já o Bão, com quem me encontro cotidianamente, não mudou nadinha e acha tudo maravilhoso. Mas, rapaz – eu o cutuco –, e essas guerras, essa carnificina infantil, esses donos do mundo destrambelhados da vida? Ele dá de ombro e responde categórico: “Bão, isso está fora do meu alcance”. Assim é ele, e talvez por isso eu o veja, finja que não o vejo e nunca dou publicidade de seu nome.

Quando falo em Janaína, sim, ela existe, é minha prima, mas seu nome é outro – sei bem qual é, mas não vou dizê-lo. O sorriso e o olhar dela são daquele jeitinho mesmo, ou eram há uns vinte, trinta anos, última vez que a vi. O mundo é cruel. Já o Bão, esse não existe, é uma mistura de figuras que encontro por aí. Para o sucesso dos doidos extremistas, é preciso que haja os que batem palmas para eles. O Bão – também chamado de Isentão, embora de isento não tenha nada – é o sumo dessa turma.

Vou ser bem sincero: acredito nas coisas e pessoas inexistentes. Personagem de livro, desse fico amigo. Feito aquele menino do “Tia Julia e o escrevinhador”, do Vargas Llosa. Cara legal, pô. Quer ser escritor e, como é comum aos dezoito anos, se apaixona por uma mulher mais velha – não tem quarenta e é tratada pelos familiares como um estorvo, um absurdo –, que também se apaixona por ele. Além disso, tem um bom amigo, é bem aceito pelos tios e pelos avós (até o surgimento da tia, que não é exatamente tia), vira e mexe bota panos quentes em conflitos na rádio em que trabalha, inclusive naqueles nos quais os patrões estão envolvidos. Não é um garoto legal? Aos dezoito eu era um pouco assim, é verdade que com umas doses a mais de canjebrina. E aquela mulher do “Syngué sabour –– Pedra de Paciência”, do escritor afegão Atiq Rahimi? Numa das intermináveis guerras internas no país, o marido se feriu, requerendo assim todo o tempo da esposa. Ao lado do homem sem nenhum sinal vital além de respirar e se sujar, ela vai se soltando, falando – será ouvida? – tudo aquilo que a gente imagina não ser comum a uma afegã falar: conta de sua insatisfação sexual ou de como idolatra a tia que se tornou prostituta. Não que eu tenha me apaixonado por ela, mas, puxa vida, que mulher espetacular.Agora vou contar uma vantagem. Um amigo meu – milagre sem santo, fato sem nome – me escreveu dia desses uma mensagem enigmática. “E a Elisa”? Meu Deus, quem seria? Não demorou tanto assim para a ficha cair: é uma personagem de meu conto “Chorão”, escrito recentemente. Meu amigo caiu de amores por ela. Não fosse o compromisso de escrever minhas crônicas quinzenais para a Rubem, eu aposentava o escritor que sou, pois fui laureado com um Nobel particular. O dicionário agradece a minha boa vontade com palavras esquecidas. Canjebrina, laureado: regozijai!

Há um ponto nisso tudo que não sei se vocês estão percebendo. Não guardo nomes de personagens. Nem dos meus. Conto outro caso similar ao da Elisa. Uma de minhas irmãs (não digo como foi registrada ao nascer, embora haja uma história interessante em seu batismo) me liga – não havia essas modernidades de zap e zup e sei lá mais quê – e diz as mesmas palavras do meu amigo: “E o ...?” Ela falou a alcunha (dicionário, festejai!), eu não sabia de quem se tratava, até que fui severamente repreendido: “É o seu personagem do ‘Todas as fichas’, ora essa”. Agradeci e me desculpei. Vejam que terrível, voltei a me esquecer do nome ou do apelido dele (razão das reticências um pouco acima), um sujeito legal e, não por isso nem apesar disso, viciado em jogo e prostitutas. Conheço uma pessoa parecida. Ela, além dessas características, às três da manhã, recém-chegada da rua, fritava um bife que muitas vezes me arrancou da cama e me fez descer as escadas para filar a boia. Sei bem como se chama, mas não digo como é nem lhe faço um outro batismo.

2.6.25

Crianças na rua

Em 1980, ano em que cheguei ao Rio, foi lançado o disco “Raíces de América”, gravado a partir de um show do grupo homônimo, formado por músicos argentinos, chilenos e brasileiros, com participação especial da atriz Isabel Ribeiro e direção de Flávio Rangel. Provavelmente foi uma das minhas irmãs que, na casa de nossos pais, no período das férias, me apresentou o som que, bonito de muitos jeitos, me marcou principalmente pelo trecho do poema do argentino Armando Tejada Gómes (aqui reproduzido sem que eu saiba de quem é a tradução) declamado por Isabel. 

Há uma criança na rua

A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.

É dever do homem proteger o que cresce,

Cuidar para que não tenha uma infância dispersa pelas ruas,

Evitar que naufrague seu coração de barco,

Sua enorme vontade de pão e chocolate,

Caminhar por seus países de bandidos e tesouros

Pondo-lhe a esperança no lugar da fome.

 

De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o canto,

De outro modo é absurdo porque de nada vale se há uma criança na rua.

Importam duas maneiras de conceber o mundo:

Uma, ser alguém como as outras pessoas ou

Arrancar cegamente dos demais a bolsa.

E a outra, um destino de salvar-se com todos,

Comprometer a vida até o último náufrago.

 

Como se pode dormir de noite se há uma criança na rua?

Exatamente agora, se chove nas cidades,

Se desce o nevoeiro gelado no ar

E o vento não é nenhuma canção nas janelas,

Não deve andar o mundo com o amor descalço

Levando um diário como uma asa na mão.

 

Trepando nos trens, provocando-nos o riso,

Golpeando-nos como um anjo de asa cansada,

Não deve andar a vida, recém-nascida, já lutando,

A meninice arriscada a um pequeno ganho,

Porque então as mãos são dois fardos inúteis

E o coração, apenas uma má palavra.

 

Eles esqueceram que há uma criança na rua,

Que há milhões de crianças que vivem na rua

E uma multidão de crianças que cresce nas ruas.

A esta hora, exatamente, há uma criança crescendo.

 

Eu a vejo apertando seu coração pequeno,

Olhando para todos com seus olhos de fantasia,

Percorrem e olham para o homem rico,

Um relâmpago forte cruza seu olhar,

Porque ninguém protege essa vida que cresce

 

E o amor se perdeu como uma criança na rua.



Se o garoto de dezoito anos que eu era nunca foi insensível à dor humana e não se preocupava apenas com o próprio futuro, ao ouvir esse disco se convenceu de que não se poderiam ignorar as questões sociais, mais ainda, era preciso olhar para além de Passos, Rio de Janeiro, Brasília. Havia um mundo maravilhoso, mas também sofrido, ao nosso lado. Alguns anos mais tarde, eu dividiria um apartamento com meu irmão Gonzalo, boliviano, e, a partir de nossa amizade, conheci muitos argentinos e chilenos principalmente. Meu mundo se abria, e nele entravam outros grupos musicais – o Inti-Illimani, por exemplo – e Borges, Cortázar, Benedetti, essa turma da pesada. 

O “Raíces de América”, em particular o poema na voz de Isabel Ribeiro, voltou à minha memória porque, quarenta e cinco anos depois de minha chegada a esta grande e complexa cidade, constato que a infância continua desprotegida, e não só aqui. Crianças são alvejadas nas favelas de nossos países e exterminadas, por bala ou fome, na Palestina, nessa guerra em que o que parecia uma resposta a uma agressão se transformou em um massacre sem fim por parte dos que comandam Israel e seus aliados. 

Em uma publicação em rede social, a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho compartilhou um post de Sami Abu Salem, um “pai de filhos pequenos” sobrevivendo aos horrores da guerra. O texto dele, em tradução chinfrim, começa assim: “a arma mais feroz que Israel usa contra Gaza é a fome”. Depois, em itens, registra tudo que um faminto é capaz de fazer (dois exemplos: “a fome transforma as pessoas em monstros”, “a fome destruiu muitas paredes da vida, da piedade, da fraternidade, da generosidade, do tempo e dos laços sanguíneos”), terminando assim: “a fome é mais perigosa que foguetes”. 

Sebastião Salgado, que nos deixou no dia 23 de maio, disse numa entrevista que uma fotografia começava bem antes dela e terminava bem depois. Que na apreciação de suas fotos enxergaríamos, para além das pessoas ou animais, das paisagens ou construções nelas registradas, o próprio Salgado, sua vida, a família, a escola, tudo que o cercava. Acho a imagem de uma beleza sem fim, e a trago para cá na esperança de que tamanha consciência artística e humana supere, se possível brevemente, a maldade cultivada por esses homens orgulhosos da guerra.