Os muros falam, isso qualquer um vê ao andar nas ruas de cidade pequena ou grande, no Brasil ou fora. Minha amiga Nilma Lacerda coleciona essas falas, reflete sobre elas.
Gosto especialmente de uma para a qual já dediquei uma
crônica: “Não fui eu”. Ao lê-la pela primeira vez, numa parede de Botafogo, meu
bairro no Rio de Janeiro, fui imediatamente arremessado àquele período entre a
infância e a adolescência, quando já não temos a inocência daquela nem a pretensa
sabedoria desta. Enfim, naquele momento em que eu e meus amigos não passávamos
de uns bobocas, muito mais do que continuamos a ser (me curvo ao lugar comum de
que não há pós-doutorado que arranque de mim e de todos os representantes do
gênero masculino a sétima série). Normalmente o não fui eu era a mentira dita por
um dos amigos que deixara escapar, por distração ou de caso pensado, uma
fedorenta ventosidade. No muro, não sei se inspirado nessa bobagem, o registro escancara
uma característica muito brasileira, a de ninguém querer se responsabilizar por
nada. É triste, mas, vamos lá, nem tão verdadeiro assim.
Venho reparando, recentemente, não na voz anônima das ruas,
mas em avisos de origem clara afixados por aí. Por exemplo: no banheiro lá do
trabalho, há vários papeizinhos nos lembrando que: não se deve urinar no chão
nem jogar papel higiênico no vaso; é obrigatório dar descarga; é inaceitável
deixar a torneira aberta. Gosto muito de um: “Por uma questão de educação e
respeito, mantenha a porta fechada”. Imagino que a escolha por essa linguagem solene
responda a uma crença de que as pessoas obedeçam a esse tom e não a outro. Não
vou discutir isso, mas mães e pais mandam um verbo mais direto: “Tranca a
porcaria dessa porta”. Enfim, num ambiente de trabalho, é melhor ser cortês.
Usamos banheiros todos os dias, e, se em nossas casas
prezamos a higiene e nos comportamos dentro do que é esperado, então os banheiros
públicos deveriam prescindir de avisos que bisam, de fato, as regras básicas da
civilidade. (Antes de prosseguir, deixo anotado: para muita gente, água
encanada, banheiro e esgoto são um sonho.) A existência desses bilhetes mostra
que, no ambiente comunitário, agimos como feras. Que se danem os outros, não
fui eu, mesmo que tenha sido. Comportamento triste, uma demonstração clara do que
somos na vida cidadã, quer dizer, não cidadã.
A minha experiência diz que, apesar dos bilhetes – às vezes
pequenos, tímidos, às vezes em letras garrafais –, os banheiros, no final do
dia, estão pela hora da morte. Todos os avisos foram descumpridos. Não se deu
descarga, a urina tomou conta do chão, as toalhas de papel usadas ocuparam não
só a lixeira, mas também o mármore da pia, o piso, o vaso, o mictório. No sanitário
masculino – não sei como é no feminino –, os bilhetes não se criam, são um
borrão na arquitetura que, nas entrelinhas, mesmo as inexistentes, documentam
parte de nosso fracasso.
Esses dias fomos tomar chope eu e quatro amigos, três
escritoras (uma vive fora do Brasil) e um escritor. Não nos víamos havia um tempo.
Aliás, a moradora de Portugal e uma das que aqui vivem se encontravam pela
primeira vez. Essa distância não tem nos impedido de manter uma troca intensa e
honesta de nossa produção literária. O mundo virtual, cheio de perigos, permite
aproximações como esta. O importante é que fomos tomar chope e a qualquer
instante teríamos de, como se diz, tirar a água do joelho. Chegada a minha vez,
um pouco antes de abrir a porta e correr ao mictório, me deparei com a
reprodução de um documento timbrado, afixada numa parede lateral. O aviso não
tinha a ver com normas de higiene voltadas aos cervejeiros. Está ali, porque, a
meu juízo, o cômodo amplo que antecede o banheiro convida a outros usos. Em
cópia ruim, lê-se: “Proibido dormir neste local. Administração”.
Nesse caso, não vejo um
transbordamento de alguma de nossas mazelas sociais, me parece, isso sim, que é
comum alguém se deixar ficar naquele lugar. Pode ser um bêbado, um morador de
rua, um trabalhador longe de casa, uma pessoa que não quer mais voltar à vida
de sempre. A administração deveria rever a norma, acolher essa gente.