16.11.24

Avisos

Os muros falam, isso qualquer um vê ao andar nas ruas de cidade pequena ou grande, no Brasil ou fora. Minha amiga Nilma Lacerda coleciona essas falas, reflete sobre elas.

Gosto especialmente de uma para a qual já dediquei uma crônica: “Não fui eu”. Ao lê-la pela primeira vez, numa parede de Botafogo, meu bairro no Rio de Janeiro, fui imediatamente arremessado àquele período entre a infância e a adolescência, quando já não temos a inocência daquela nem a pretensa sabedoria desta. Enfim, naquele momento em que eu e meus amigos não passávamos de uns bobocas, muito mais do que continuamos a ser (me curvo ao lugar comum de que não há pós-doutorado que arranque de mim e de todos os representantes do gênero masculino a sétima série). Normalmente o não fui eu era a mentira dita por um dos amigos que deixara escapar, por distração ou de caso pensado, uma fedorenta ventosidade. No muro, não sei se inspirado nessa bobagem, o registro escancara uma característica muito brasileira, a de ninguém querer se responsabilizar por nada. É triste, mas, vamos lá, nem tão verdadeiro assim.

Venho reparando, recentemente, não na voz anônima das ruas, mas em avisos de origem clara afixados por aí. Por exemplo: no banheiro lá do trabalho, há vários papeizinhos nos lembrando que: não se deve urinar no chão nem jogar papel higiênico no vaso; é obrigatório dar descarga; é inaceitável deixar a torneira aberta. Gosto muito de um: “Por uma questão de educação e respeito, mantenha a porta fechada”. Imagino que a escolha por essa linguagem solene responda a uma crença de que as pessoas obedeçam a esse tom e não a outro. Não vou discutir isso, mas mães e pais mandam um verbo mais direto: “Tranca a porcaria dessa porta”. Enfim, num ambiente de trabalho, é melhor ser cortês.

Usamos banheiros todos os dias, e, se em nossas casas prezamos a higiene e nos comportamos dentro do que é esperado, então os banheiros públicos deveriam prescindir de avisos que bisam, de fato, as regras básicas da civilidade. (Antes de prosseguir, deixo anotado: para muita gente, água encanada, banheiro e esgoto são um sonho.) A existência desses bilhetes mostra que, no ambiente comunitário, agimos como feras. Que se danem os outros, não fui eu, mesmo que tenha sido. Comportamento triste, uma demonstração clara do que somos na vida cidadã, quer dizer, não cidadã.

A minha experiência diz que, apesar dos bilhetes – às vezes pequenos, tímidos, às vezes em letras garrafais –, os banheiros, no final do dia, estão pela hora da morte. Todos os avisos foram descumpridos. Não se deu descarga, a urina tomou conta do chão, as toalhas de papel usadas ocuparam não só a lixeira, mas também o mármore da pia, o piso, o vaso, o mictório. No sanitário masculino – não sei como é no feminino –, os bilhetes não se criam, são um borrão na arquitetura que, nas entrelinhas, mesmo as inexistentes, documentam parte de nosso fracasso.

Esses dias fomos tomar chope eu e quatro amigos, três escritoras (uma vive fora do Brasil) e um escritor. Não nos víamos havia um tempo. Aliás, a moradora de Portugal e uma das que aqui vivem se encontravam pela primeira vez. Essa distância não tem nos impedido de manter uma troca intensa e honesta de nossa produção literária. O mundo virtual, cheio de perigos, permite aproximações como esta. O importante é que fomos tomar chope e a qualquer instante teríamos de, como se diz, tirar a água do joelho. Chegada a minha vez, um pouco antes de abrir a porta e correr ao mictório, me deparei com a reprodução de um documento timbrado, afixada numa parede lateral. O aviso não tinha a ver com normas de higiene voltadas aos cervejeiros. Está ali, porque, a meu juízo, o cômodo amplo que antecede o banheiro convida a outros usos. Em cópia ruim, lê-se: “Proibido dormir neste local. Administração”.

Nesse caso, não vejo um transbordamento de alguma de nossas mazelas sociais, me parece, isso sim, que é comum alguém se deixar ficar naquele lugar. Pode ser um bêbado, um morador de rua, um trabalhador longe de casa, uma pessoa que não quer mais voltar à vida de sempre. A administração deveria rever a norma, acolher essa gente.




4.11.24

Nudes literários

 

A neta

Escamoteada, fazendo-se de boba, de quem estava ali distraída, lendo um livro, olhando a janela, a neta devorava a avó fazendo crochê. As mãos manufatureiras pareciam determinadas, incapazes de um vacilo. Pareciam, não, eram. Coisa mais linda dessa vida. De vez em quando perguntava alguma coisa sobre o planejamento daquela passadeira, daquele colete, da peça em desenvolvimento. A avó dizia que tudo ia brotando na cabeça aos poucos. Decidia começar pelo ponto corrente, depois via que cairia bem uma parte central em picô, do qual sairiam outros pontos. Aí sentia que estava iniciando um enfeite de almofada, uma touca de frio, o que fosse. O importante, reforçava, era, na composição, perseguir o equilíbrio. Sob essa influência, a neta, tímida e atenta, começou a crochetar uns versos, de início baseados naquelas cenas cotidianas, depois, fora do ambiente domiciliar, fixando-se nas coisas da natureza e nas urbanas – a angústia dos carros, a tristeza do asfalto, a neurótica solidão da única árvore da rua. Havia em tudo a lição da avó: os poemas não poderiam ser livres, insubordinados, ao contrário, seguiriam uma receita (ainda que introjetada), no caso, as formas rígidas. Tornou-se uma sonetista deslocada, antiquada, que nunca seria reconhecida. Aliás, isso nunca a frustrou, empenhava-se em tecer, em palavras, coletes ou echarpes para frios domésticos.




 

O belo

Os poetas são muito asseados: banham-se, escovam os dentes e tiram o excesso de cera do ouvido. Às vezes se acidentam, é preciso correr a um pronto-socorro para extrair o algodão que ficou preso ao canal auditivo, ou quase lá. Mas isso é raro, assim como é raro – é conhecido um caso – o poeta, depois da limpeza do ouvido, usar a cera para lustrar os dentes.

O compromisso com a higiene é tão arraigado que se repete à exaustão a seguinte máxima: de sujo bastam os versos. Talvez por isso, ou seja, por coerência, todos os versos escritos sejam imundos. Enaltecem de forma magnífica o lixo, a lama, o pus, o excremento. Impactados, os patrícios, fiéis leitores, súditos de certo modo, se utilizam dessa poesia para definir o belo.






Marcas de leitura

Pagou um bom dinheiro pelo parecer da escritora de nome, frequentadora de festas literárias, detentora de importantes prêmios. Pagou bem mais que um bom dinheiro, recorreu a um consignado a ser quitado em noventa e seis meses. O retorno de sua autora predileta seria o empurrão a levá-la adiante, a chave do mundo encantado.

Seis meses depois, um e-mail de poucas linhas: “Seu livro tem potencial, trabalhe as passagens, retoque um pouco a personagem da mãe. Sugiro que leia Virgínia Woolf”. Cada palavra lhe custou um salário-mínimo. Cada palavra lhe custaria meses e meses – oito anos – de desconto na folha de pagamento. Palavras opacas, genéricas, anódinas. Valeria uma reclamação comercial, mesmo tudo tendo sido feito na informalidade? Expunha a parecerista em rede social? Enfiava o rabo entre as pernas e deixava de ser besta?

Passados uns dias, novo e-mail: “Esqueci de lhe dizer, o título é bem ruim”.




 

Distração

Andava na rua com uma pergunta martelando a cabeça: pra que você escreve? Por que escrever? Era melhor não ter se metido nisso, mas foi uma força avassaladora que a pegou no contrapé da passagem da infância para a adolescência. Uns amigos foram se drogar; ela, escrever. E ler. E escrever. Por que você escreve? O que a escrita lhe traz? Nem tudo se explica. Ela não criou uma personagem de si mesma, a escritora que sabe tudo. Escrevo para mudar o mundo. Escrevo em nome dos desvalidos. Escrevo para levar conforto ao leitor. Nada disso, escrevia e ponto. Comer, escrever: necessidades orgânicas. Mas quem entenderia isso? O mundo só quer saber daquilo que surge com uma intenção. O mundo é nutrido de certezas. Caminhando assim distraída, perdeu a chance de ver um neném, no colo da mãe, fazer um bruuuuuuu, babando-se todo. Perdeu a chance de ver a vida principiando.

 



A pequena alegria

Comprou o jornal de domingo, sentou-se no café. Na sessão de cultura, uma resenha de seu primeiro livro. Um petardo sem dó, que não deixou nada em pé. Pouco importava, estava no jornal. Foi o domingo mais feliz da vida.




18.10.24

Japona de napa

 Depois que as editoras independentes, pequenas guerreiras, passaram a armar suas tendas em Paraty durante os quatro dias da festa pioneira, pode-se dizer que a Literatura definitivamente hospedou-se na cidade histórica. Aos best-sellers, inclusive ganhadores do Nobel, aos que têm agentes literários e bons contratos, aos que disputam espaço nas livrarias e academias, junta-se a plêiade dos que correm por fora, alguns almejando pertencer à elite, outros menos preocupados com isso. De uns tempos para cá, Paraty tem lá sua diversidade a despeito de os proprietários da festa inventarem moda. Este ano tentaram – por sorte, sem sucesso – proibir as pequenas editoras de venderem seus títulos. Em uma ação deliberada em prol de algum grande grupo, como se fosse preciso, uma festa literária impedir a venda de livros, a estrela do evento, é um acinte, um ataque, quiçá um haraquiri.

Enfim, no Dia das Crianças deste ano da graça de 2024, a Literatura estava em Paraty. Eu não. Como sou parte desse mundo, se estou lá, ocupo meu espaço, se não, deixo de pertencer a ele. Assim como ocorre com qualquer famosão ausente. Isso não é lamento, é matemática. Se, nesses dias, não posso dizer que sou um escritor e que não largo as mãos da Literatura, tenho de me conformar. No entanto, segredo aqui o que aconteceu desta vez: quando a madrugada recolhia os últimos boêmios em Paraty, a Literatura batia suas asinhas, fugia momentaneamente de lá e cantava na árvore do meu prédio. Nesses momentos, dei-lhe de comer.

Um jeito de alimentar esse pássaro, ora corvo, ora pintassilgo – mas nunca pombo, nem o da paz –, é pensar na vida. Ter saudades. Cutucar o passado. Mister Brandão, o que o senhor fazia no glorioso ano de 1966? Decerto não estava preocupado com o terremoto no Usbequistão. Nem com a independência da Guiana Britânica. Pode ser que, metido entre meus irmãos mais velhos, ouvisse “Revolver”, lançamento dos Beatles daquele ano, embora só viesse a ser um beatlemaníaco (nem tanto) algum tempo depois, não com meus cinco aninhos. Tampouco me preocupava com os atos institucionais da Ditadura Militar. Em 1966, minha gente, eu batia bafinha em frente ao Cine Roxy. Aprendia a andar de bicicleta sobre os paralelepípedos do Beco dos Aflitos. Chutava bola em qualquer canto. Dava tiros de espoleta. Confesso: namorava. À porta da casa dos avós de minha namorada, ela e eu nos sentávamos e conversávamos, não passando disso nosso namoro. Eu pousava como um herói capaz de enfrentar qualquer monstro, humano ou não, ela dava trela, gostava. Não sei como o namoro acabou, mas, taí, fomos felizes.

Lembro de mim de calça curta. Calça curta não era só um jeito de nomear o short, mas o corte e o tecido usados na sua confecção se assemelhavam aos de uma calça, só que curta. Eu andava com essa roupa e cabelo penteado para o lado. Naquela época havia muitas regras. Cabelo repartido de um lado para os meninos, do outro para as meninas. O cinto também deveria ser inserido da esquerda para a direita, na calça dos rapazes; o contrário, na cintura das moças. Como foi possível sobreviver a tanto? Olho alguns religiosos atuais e tenho a impressão de que estão naquela mesma batida, com um agravante: seus pastores estão no poder. Bem, a Igreja Católica estava em 1966, esteve desde priscas eras, está agora e estará amanhã. Nos meus cinco anos, as calças eram curtas, minhas ideias igualmente curtas e o mundo já se esmerava em ser um rascunho posto em pé sobre um lamaçal.

Cinquenta e tantos anos atrás, fazia muito frio na minha cidade. Logo cedo, mamãe olhava o termômetro pendurado do lado de fora da casa, perto da cozinha. Um dia, ali pelas seis e meia da manhã, ela me mostrou: zero grau. Destemido, tomei o rumo da escola. Vestia uma japona que podia ser usada dos dois lados. Era chique. Espere um pouco, eu não tinha mais cinco anos, talvez oito. Já cultivava alguma vaidade, como a de me exibir naquela japona. Ainda existe japona? Sumiu do mundo como a calça curta. Que garoto bonito cruzava as ruas, coberto pela peça de napa. Isso, amizade, era de napa, ou seja, uma combinação de poliéster e poliuretano. Não sinto falta do casaco sintético, até condeno seu uso, mas sinto saudades de trajá-lo – apesar de proteger pouco do frio (por baixo da camisa do colégio, metia uma peça de lã) –, de me sentir tão ajeitadinho, de acreditar na vida. Havia visto um homem descer da Apollo 11 e andar na Lua. Aquilo me dava esperança. Não pensava nesses termos, é verdade, mas que coisa fenomenal, que capacidade de irmos tão longe. Como éramos inteligentes! Somos. Dia desses saíram os ganhadores do Nobel de Física, Hinton e Hopfield (no Brasil, formariam uma boa dupla sertaneja, universitária, por suposto), um britânico, outro americano, ligados a pesquisas que abriram campo para a Inteligência Artificial. Um deles disse que, como todo avanço, a IA tem o lado bom e o ruim. A gente sabe disso, a humanidade aprendeu isso, mas a Rússia solta bombas na Ucrânia; Israel, menos por justiça, mais por vingança, bombardeia Gaza e Líbano. Maldição. Que saudades da japona sem avesso, do menino que ia dentro dela.

– Ó, Lítero-pássaro, está bom assim de alpiste ou quer mais, seu faminto?

– Nevermore.

7.10.24

Um passeio à praça inexistente

Há trinta anos, não se encaminhava à editora o texto do futuro livro em arquivo, nem se recebia ao final da revisão o PDF enviado à gráfica. Sendo assim, com o objetivo de organizar meu primeiro livro, “Contos de homem”, lançado em dezembro de 1995, obriguei-me a digitalizá-lo, tarefa que levou um ano, um ano e meio. A sorte é que essa operação, para quem não tem pressa, pode ser feita com um celular e uma ferramenta de uso descomplicado. Basicamente fotografa-se a página, que de pronto é transformada em texto. É preciso corrigir alguma captação imprecisa, mas funciona.

Com os vinte e quatro contos à mão e tomado por um espírito crítico, resolvi revisá-los. Quem faz esse trabalho é um sujeito com mais de trinta anos dedicados à literatura, o que não é uma garantia de qualidade, pois não necessariamente me tornei um escritor melhor, embora tenha hoje mais consciência do que faço. Nessa empreitada, me pergunto se, num possível relançamento, descartaria alguma coisa. Minha resposta é não. Mesmo não gostando de alguns contos, vendo que houve os que envelheceram mal, deixaria o livro exatamente como está, afinal é o reflexo do homem de trinta e quatro anos que eu era, do qual não me envergonho. Apesar disso, faço pequenos ajustes aqui e ali. Um necessário: corrigir os erros.

A andança pela praça inexistente começa ao corrigir os erros. Quando lancei o livro, enviei-o a Manoel Lobato, escritor mineiro, já falecido. Eu o conheci por intermédio de minha irmã Patrícia, ambos trabalhavam na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Lobato me deu grandes aulas – sem estar vestido de professor. Seus apontamentos são primorosos e, mais que isso, homem de controlada vaidade, altruísta da melhor estirpe, sua conduta era a de um escritor e intelectual exemplares. Recebi suas anotações, indicando erros de digitação e uma ou outra escorregada gramatical e tecendo alguns elogios, em carta, que, passado um tempo, fotografei. O resultado ficou bom, está legível, mas faltam o cabeçalho, a saudação e a despedida. Fui então procurar o original com o objetivo de refotografá-lo e juntá-lo ao material que está na pasta do livro – além dos contos, os arquivos do prefácio de João Gilberto Noll e da orelha de Nelson Vasconcelos, e as matérias de Bernardo Ajzenberg (Folha de São Paulo) e Duílio Gomes (Estado de Minas). Até agora não achei, mas...


Imagens do caderno de Haydée


Na caixa onde guardo essas coisas, encontrei fotos antigas – umas 3 x 4 de amigas, namoradas adolescentes que mal me davam a mão –, desenhos dos filhos, uma Placar de 1989, quando, depois de uns vinte anos, o Botafogo sagrou-se campeão carioca e meu filho mais velho, que se tornaria um botafoguense fiel, nasceu. Ainda do pequeno museu, um caderno de recordação de minha mãe em formato de livro, capa aveludada e seu nome escrito, com falhas, em letras douradas. Folheio o caderno. No início, algumas páginas em branco, depois amenidades que seus colegas escreveram em dois momentos. Em 1938, quando ela morava em Belo Horizonte – uma das colegas a chama de carioquinha por conta de minha mãe (nascida em Ponte Nova, Minas) ter vivido no Rio antes. De 1939 até 1941, período em que ela estava de volta ao Rio, estudando no Bennett. Os amigos registravam o que já foi tão comum entre os jovens: declaração de amizade eterna, transcrição de poemas, elogio à dona do caderno. Reproduzo a primeira coisa escrita ali: “Todos os homens são mentirosos, traidores, hipócritas e petulantes; todas as mulheres vãs, artificiais e pérfidas, mas há no mundo algo de sagrado e sublime – a união dessas duas criaturas imperfeitas”, uma citação (não consegui confirmar a autenticidade) de Musset – escritor francês do século XIX – feita pela amiga Yóle Sotomaior (se bem desvendei a letra) em dois de setembro de 1940. Há de se dizer que as entradas não respeitam uma cronologia, a essa primeira seguirão outras de 1938, 1939, 1941. Apesar da confusão temporal, é bom saber que aquelas meninas de dezessete anos lançavam um olhar crítico sobre o mundo, sem – o que já não sei se é bom ou ruim – desacreditar na harmonia da vida conjugal.

A partir de um ponto, somem as intervenções dos amigos, e minha mãe se dedica a transcrever poemas e pensamentos. Poetas brasileiros – Vicente de Carvalho, tio-bisavô das queridas Rezende, a escritora Maria Valéria e suas irmãs Viviana e Valentina, é um dos mais presentes – prevalecem sobre os demais, ainda que, no caso dos pensadores, sejam os gregos e os franceses os mais citados. Ela registra de Victor Hugo: “O riso é um camarada às vezes tão útil como o saber”. Desta vez, minha pesquisa confirmou a fonte, ainda que, recorrendo a uma inteligência artificial, tenha encontrado a frase um pouco distinta: “O riso é o começo da sabedoria”. Preciosismos à parte, minha mãe cultivou o riso, mesmo escondendo-o nas muitas horas bravas da vida.

Na noite que sucedeu meu contato com o caderno, sonhei com mamãe. Mas antes com a Patrícia. Encontrava minha irmã nas escadas do prédio onde moro. Era tudo tão alegre, bem poderia – e pode – ser verdade. Depois aparecia minha mãe. Na realidade, uma mulher sem nenhum de seus traços – nem de ninguém que eu conheça –, dizendo-se minha mãe. Não sei, acho que hackearam as redes sociais do céu ou dos sonhos. Há uma impostora no lugar da dona Haydée.


21.9.24

A porta

 

Logo de manhã, um amigo me envia o link de uma matéria em jornal que não assino, portanto, não consigo ler. Acesso a manchete: uma carioca foi eleita Miss Vagina. Soube ainda que foi o segundo ano do concurso e que as pretendentes se inscrevem diretamente.

No mundo que exalta a simetria, lábios vigorosos, de coloração suave e encerrados em um desenho harmonioso devem ser os aspectos apreciados. Isso se um discípulo de Picasso – e aqui não há segundas intenções de um menino da quinta série – não pertencer ao júri. Os cubistas, sabemos todos, veem beleza na assimetria.

A existência de uma disputa assim abre a possibilidade para que também entrem em concorrência o pênis, o dedinho do pé esquerdo, a nuca, o M da mão. Não a bunda, que tem seus milhares de concursos diários, oficiais, oficiosos ou frutos de solitárias fantasias. Muito menos a bunda da mulher farta de tanta objetificação. Hoje, não somos nós que desejamos a bunda da Anita, é a bunda da Anita que nos deseja (ou não). A bunda tem poder. Talvez, por isso, se busque, em concursos nos quais a candidata se aceita como puro objeto, carne fatiada sobre a mesa – comum ou ginecológica? –, a beleza oculta e menos óbvia.

A medida perfeita sempre foi um requisito perseguido nos concursos de misses. Aliás, isso marcou essas disputas no Brasil, já que nossa primeira Miss Brasil, eleita em 1954, a baiana Marta Rocha, teria perdido o título de Miss Universo por duas polegadas a mais no quadril. Ao que parece, tudo não passou de uma invenção de um jornalista, e o motivo da derrota seria outro. Seja como for, nas competições tradicionais, é valorizada também a vida social da candidata, com especial atenção ao modo como se distrai. Todas leem “O Pequeno Príncipe”, então, pesa na avaliação se o leem deitadas, sentadas, em pé; se atentas apenas ao texto ou, ao contrário, só às ilustrações; se leem tudo ou saltam páginas. Enfim, a beleza é um dos pontos observados. Já à Miss Vagina não se pergunta nada. Imagino que nem o rosto se revele, pois conhecê-lo adulteraria o espírito julgador ou o faro de quem julga. O faro seria outro fator a perturbar a neutralidade, logo é melhor desconsiderá-lo até em seu uso figurado.

Com o avanço da tecnologia, antevejo prêmios para os órgãos internos. Teremos em breve a Miss Fígado ou o Mister Rim, a Miss Intestino ou o Mister Baço, além dos genericamente exclusivos Miss Ovário e Mister Próstata. As possibilidades são inúmeras. Carótidas, corram à academia, malhem o bíceps, estejam prontas.

Esta crônica passeia entre a falta de noção e o devaneio, com pretensa e destemperada ironia. Tento corrigi-la conjecturando o real significado de um concurso como esse vencido pela carioca. Podemos pensar em narcisismo exagerado, ou, como já disse, em sujeição máxima a um machismo ultrapassado. Mas também pode ser que, à moda de um personagem bukowskiniano, só queiramos voltar ao útero, à origem, abandonar essa vida cheia de boletos, guerras, desastres ecológicos e luz, excessiva luz. Como nos conforta a beleza, estamos à procura da porta mais atraente para esse retorno. Se é assim, fiat tenebrae.