24.7.08
A perna oculta da mentira
Iam aí uns bons trinta anos sem ver M.M., quando, por acaso, numa rodoviária, encontrei-o. Dois senhores. Ele parecido com o pai; melhorado, é verdade. Dois senhores, insisto.
Não nos faltou conversa. Nossa infância foi vivida na mesma Jaime Gomes, rua com nome do sogro do Juscelino, o homem dos cinqüenta em cinco. Pois bem, falamos sobre “nossa” época, embora pouco sobre ela. O lapso de trinta anos era tempo suficiente para aguçar a curiosidade de ambas as partes sobre a vida vivida distante um do outro.
Estabelecemos um diálogo pontuado de interrogações exclamativas.
“É mesmo?! Manaus?”
“Escrevendo?!”
Dois velhos conhecidos charlando ao deus-dará.
Não sei o momento exato em que rememorei que, durante nossa infância, adicionávamos ao nome dele um “mentiroso”. M.M.: M. Mentiroso. Talvez suas mentiras fossem inconseqüentes e tão absurdas que não deveriam chamar a si nenhuma suspeita de verdade, portanto, não nos deveriam incomodar. Mas não era assim que a garotada pensava, e, por essa razão, cada um de nós se sentia permanentemente ludibriado por ele.
Será que ele nos contara sua luta contra uma horda de cem morféticos (contra os leprosos eram lançados todos nossos preconceitos, e deles brotava toda nossa fonte de inquietação e medo) que tentaram arrancar-lhe o estilingue da mão?
Será que relatara sua vitória tranqüila contra algum perigo que faria com que qualquer um de nós, só de pensar, borrasse nas calças? Sei lá, ter enfrentado, na mão, uma onça na fazenda do tio.
Será que não nos dissera que o dinheiro do pai (um simples professor) era tanto que o velho não comprava todas as casas da rua porque não queria?
Enfim, um monte de fabulações, apenas isso, talvez um jeito de sobressair-se entre tantos, ele sem nenhum talento específico. Não era bom no bilboquê, não ameaçava ninguém na bilosca, na pelada chutava o chão em vez da bola. Como aparecer quando não se tem qualificação nenhuma? Fabulando — eis uma hipótese.
Taxava-se toda fala de M. como mentira. Se dissesse que iria almoçar, apostávamos que arranjara um pretexto para cair fora. Se anunciasse, ainda que fanhoso, uma gripe, ríamos de sua capacidade de inventar desculpa para não apostar na roda de bafo formada logo ali, sob a janela do seu quarto.
Trinta anos depois, numa rodoviária da vida, ele me conta de suas andanças. Viveu pelo Norte. Casou-se com moça da nossa cidade natal, decerto eu não a conhecia. Seu irmão enricou e deu jeito de trazê-lo de volta ao Sul maravilha para cuidar de uma de suas empresas. É responsável pela logística, essa coisa que não é o coração das empresas, mas que pode matar a mais saudável delas num golpe só, como um enfarto. Morava em São Paulo.
Como eu poderia acreditar em M. se nunca acreditei? Como, ainda mais passado tanto tempo, tempo em que esteve longe da minha vista, fazendo sabe-se lá o quê?
Quando falou Norte, poderia querer que eu perguntasse por sua ocupação por aquelas bandas. Seria a chance de relatar lutas contra jacarés, de vangloriar-se de sua resistência contra as doenças da floresta, de falar em tribos de mulheres majestosas, permanentemente nuas, virgens como nunca se viu, nem na bíblia.
Quando falou em empresa familiar de sucesso, gostaria que eu indagasse sobre suas estratégias de mercado. Diria que trabalham com material que seu pai, professor de química, portanto, químico, desenvolvera, sem que ninguém nunca soubesse, no puxadinho no fundo de sua casa baixa, com porta à altura da rua. Diria que vendem tudo para o exterior, para as empresas de ponta dos EUA, da Europa, um pouco para o Japão e ainda para o Iraque antes da guerra, porém o próprio Bush pediu para não venderem mais. Aceitaram, seguindo as diretrizes da Aliança para o Progresso, que, alguns poderiam dizer, fora coisa do passado, mas eles sabiam que não era bem assim; existia ainda e manter-se fiel a ela garantia os lucros exorbitantes apresentados nos balanços das empresas.
Apertamos as mãos. Ele entrou num ônibus, esperei um pouco mais pela chegada do meu.
Sozinho, percebi minha enorme infantilidade. Deixei de ter uma conversa quem sabe até instrutiva — um sujeito que morou no Norte e vive em São Paulo cuidando de uma grande empresa sempre tem o que dizer — para ficar nos meus devaneios, comandado por um tirano nostálgico interno que não me dá de presente ao presente.
Talvez eu tenha de responder ao que, traduzido por Gullar, Neruda (Livro das Perguntas, Cosac Naify) pergunta, não sei se a si mesmo, se ao leitor. Alguns acham que pergunta justamente à criança que todos fomos um dia.
“Onde está o menino que eu fui?
Está dentro de mim ou se foi?
Sabe que jamais o quis
e que tampouco me queria?
Por que andamos tanto tempo
crescendo para nos separarmos?
Por que não morremos os dois
quando minha infância morreu?
E se minha alma se foi
por que me segue o esqueleto?”
Vou buscar a resposta. Se encontrá-la, e mesmo que não a encontre, o certo é um dia apartar-me do mentiroso que também sou, procurar por M. e contar-lhe tudo. Se estiver imbuído de humildade, devo-lhe também desculpas.
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Um comentário:
Muito bom esse texto! Parabéns!
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