8.10.09

Hoje, o que sei da poesia



Não me tomem por pecador, se falo fala fina e tímida, com jeito de iconoclastia. Tem dias que não estou pra Drummond, não estou pra Adélia, não estou pra Pessoa alguma. Noutros, sou eles e esqueço de mim, ou, por outra, sou o que só pra mim, de mim, dizem: podre se podre, pétreo se pétreo; líquido.
Não é sempre que me alcançam os outonais haicais, por breves. Não chego inteiro, sequer aos pedaços, pois estes esfarelam-se pelo caminho, aos épicos de cauda longa. Seduzido sou pelo ritmo, pela pegada, pelo pancadão. Olhe, por exemplo, o bumbo nocauteador do poeta Barreto (O sono provisório, pág. 11, 1978, Editora Francisco Alves):


Vivo sobrevivente de um desastre aéreo e
ferroviário
que acontece todos os dias na cozinha
onde escaldo calendários e fervo a família
jornais e margarinas
Tempero com cola substantivos abstratos
como quem tenta se vingar da própria língua

Mesmo contrita no adro da casa santa, a poesia está sempre fornicando. Às vezes, com anjos; noutras, com sono. Seu gozo não é sopa de letrinhas, não são os postergados pelas prostitutas; seu gozo é silêncio e bambeza de pernas, tracejado por um cartunista que se deixa levar pelas pontas rombudas de seus lápis.
Entendo a poesia que descomprime o tórax, permitindo assim a passagem da respiração, que fluia tranqüila e, por assustar-se, cai momentaneamente no sono. Odeio o entendimento loquaz da poesia, garganteado pelos bêbados da razão. Amo a poesia dos calafrios.
A poesia não ri de mim, não ri pra mim. Não chora de mim nem chora pra mim. A poesia caçoa do sol, conquanto o descreva em versos amarelos. A poesia nunca viu a lua, pois à noite cheira dos tatus as tocas e assiste a coito de formigas que, sob o mantô de terra, fazem o feito, o desfeito e não murmuram. As formigas não murmuram; a poesia, sim. Nisso, parece-se com as vacas e com os vasos sanguíneos do velocista que busca quebrar o recorde olímpico.
A poesia, amante, se é, não espera. Quando quer, cheira e fuma as delícias de seu vício para entrar no sonho alheio e tirar do foco as imagens que, por si só, são incompreensíveis. Desse modo faz partir pra longe a última chama memorial que o adormecido cultivava como lágrima contida. Pela manhã, ao sentar-se na cama, botar os pés no chão e começar a fazer força para erguer o corpo, o poetinha distraído e sonhador ganha no bucho de sua consciência uma gota de verso como esta:

Pago todas as contas
Mas comigo não conte
Para afundar navios
E fundear vazios
Distintos dos meus.

A poesia é a voz que se escuta quando não há voz alguma, e os poetas são os doidos da vez — de todas as vezes.

3 comentários:

Odete - Taro disse...

Os físicos dizem que vivemos fundeados em um mar de ar. Se fossem poetas diriam "em um mar de palavras". Somos acossados por ondas de palavras - veio de não de onde um inseto que entrou por baixo da blusa, luto para tirá-lo. Palavra se fez real e me deixou sem camisa. Não encontrei o inseto, fiquei com a palavra. Pera, aí, identifiquei o bicho: pobre abelhinha negra. Entrou pela janela do apartamento e se instalou no email. Assim como tua prosa, ela faz "zumzum e mel".

Joe_Brazuca disse...

espetaculei-me !

(sigo agora, e volto...se não, revolto !...)

muito (i)legal seu blog !

abraço

No Osso disse...

Gut Gut e Joe_Brazuca,

O No Osso está sempre por aqui, às ordens. É chegar, puxar um cigarrinho de palha e entregar a Deus.

Voltem sempre.

Abraços,