Fui conversar com o sujeito na rua. Ele me olhou com aquela cara de que pior do que estava poderia ficar, acabava de ficar. Pedi a ele que me perdoasse, não ia incomodá-lo, ou pelo menos não ia incomodá-lo muito. Ele disse que não conhecia bem o bairro, se fosse, então, para obter informação talvez não pudesse me ajudar. Melhor seria se eu falasse com a moça da banca de jornal, com o vendedor de frutas na esquina.
Toquei em seu ombro. Ele deu dois passos para trás, levantou as mãos, deixou claro que não queria esse tipo de intimidade. Bisei minhas desculpas. Ele me mandou desembuchar logo, tinha pressa. Acrescentara certo pavor à cara de poucos amigos. Achei melhor tranquilizá-lo, eu não era um assaltante. Contestou em tom irônico, eu não precisava ter feito esse esclarecimento, via-se logo que eu seria incapaz de um gesto desses. Emendou com todas as letras: “Tu é um bunda-mole.”
Nesse instante, me enfezei, afinal de contas por que tamanha violência? Apontei-lhe o dedo, cocei a garganta e soltei um “pera lá, pô”. Ele quase riu, mas novamente ergueu as mãos e fez um gesto de que estava tudo bem, que eu deveria desconsiderar suas palavras. Chamei a atenção para o fato de que a conversa, que seria breve, estava se arrastando à toa por culpa dele. Fez não com os indicadores da mão direita e da esquerda. Era uma figura ridícula, afetada com aqueles dedos tremelicando ao deus-dará, à moda do presidentinho canalha, mas sem imunidade, desprotegido e largado na rua do meu ou do nosso bairro.
Diante de quadro tão hilário, caí na risada. Ri de me curvar, mostrando-me igualmente ridículo. Dessa vez, foi ele quem tocou meu ombro. Eu me afastei, estendi as mãos e o retive. Ele me olhou bem no fundo dos olhos. Se não fôssemos dois desconhecidos, diria que o amor nos envolvia. Alguma fraternidade.
Numa rua movimentada e barulhenta, nem eu nem ele demos muita importância ao silêncio que estava ali entre nós dois e que servia de base ao olhar afetuoso que trocávamos. Foi um menino quem, agarrado à mãe, perguntou a ela por que estávamos assim, quietos e olhando um para o outro. A mãe deu-lhe um puxão, uma espécie de cala-boca, uma lição de que não é bom se meter na vida alheia. Eles passaram, e eu voltei à tona, reclamei de que já estávamos servindo de chacota aos outros, que precisávamos acabar logo com aquilo. Quis saber se poderia fazer a pergunta que tanto queria. Ele disse não.
Não? Como não? Já havíamos perdido um tempo razoável ali parados na rua, e agora ele vinha com esse papo de não? Deu de ombro, não era problema dele. Fiquei furioso, a que ponto as relações humanas estavam chegando. A maldita rede social separava as pessoas umas das outras, ninguém mais sabia como manter uma boa convivência. Nervoso — cuspia, bem sei —, eu não admitia ser tratado daquele jeito. Ele cruzou os braços, fez pose desses brutamontes que se miram antes da luta. Imediatamente fiz o mesmo. O menino e a mãe passaram por nós mais uma vez. O menino, desatento à lição dada havia pouco pela mãe, não resistiu e riu da nossa cara, com um dos dedos fez rodinha em torno da orelha. Doidos, era isso que éramos para ele.
Não me importei muito com o menino, mas o sujeito que não queria conversa ficou uma arara. Despejou sobre mim um monte de impropérios. O que eu provocara havia nos levado àquela situação vexatória. Exigia que eu lhe pedisse desculpas, mais até, que eu, em alto e bom som, fizesse chegar o pedido ao menino, à mãe, ao vendedor de frutas, à moça da banca de jornal, ao motorista de ônibus que passava por ali naquele instante, ao taxista que pegava um velhinho com dificuldade para entrar no carro, ao mendigo que caminhava bem no meio da rua, indiferente a tudo e a todos. À medida que ele falava, fui sendo tomado por uma espécie de culpa, quase entro no jogo, quase me desculpo com o mundo. Buscando reencontrar meu caminho, um acerto de contas com as minhas reais intenções, respirei fundo.
O autor no bar Ouro Preto, Itaim Bibi, São Paulo. |
Eu havia puxado assunto com aquele homem apenas para falar com alguém. Não tinha dúvida de nada, não tinha questões a levantar. Sabia todos os caminhos, conhecia todas as lojas, botequins, padarias. Mas estava só, absolutamente só. Tudo que acontecera a mim e ao desconhecido, aquela série de mal-entendidos, abrandara meu estado insular, deixara-me satisfeito, devolvera-me à vida.
Falei bem baixo que não me desculparia, também não lhe faria pergunta alguma. Que ele ficasse bem. Já seguia adiante quando ele me chamou e, quase aos gritos, assim pelo menos me pareceu, quis saber se eu era feliz. Fez a pergunta, mas não esperou a resposta, virou-se e foi embora. Caminhei em direção oposta. Vi, do outro lado da rua, o menino no colo da mãe. Ele me apontava. É possível que dissesse: “Mãe, lá vai o moço feliz.”
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