22.7.18

Desnudando a memória

No Instituto Estação das Letras (IEL), ouvi Ruy Castro falar sobre a Copa do Mundo de 1958, que ele acompanhou com a paixão de seus dez anos. Lá pelas tantas, Suzana Vargas, idealizadora e diretora do IEL, disse que estava impressionada com a memória do biógrafo de Garrincha e Nelson Rodrigues. Realmente, ele não deixa a bola fugir de seus pés, quer esteja falando dos mágicos três primeiros minutos da partida do Brasil contra a União Soviética, estreia de Pelé e Garrincha, quer esteja contando sobre o trabalho dos repórteres que foram à Suécia cobrir o evento numa época heroica do jornalismo.

Sobre a memória, Wally Salomão, poeta e letrista baiano, tem uma frase que se eternizou. Segundo ele, a memória é uma ilha de edição. A ilha de edição é onde o filme efetivamente se concretiza. Ali todo excesso (os mil takes, o roteiro) é cortado e recortado para se impor a forma como a história será contada. Portanto a memória é um filtro.

E é um filtro sem filtro, que deixa cacos de história perdurarem no tempo. Meu pai me disse que gostava do número três. Apesar de não me recordar das circunstâncias, posso jurar que foi na sala de nossa casa, ele sentado no sofá, eu ao lado. Cultivo memórias mais fortes do velho, mas essa desimportante, corriqueira, está aí, firme e forte. Meu pai gostava do número três. Alguém mais saberá disso?

Morador do interior de Minas, fui visitar minha avó no Rio. Ela me levou à casa de uma sobrinha, que me apresentou o filho. O primo e eu éramos crianças da mesma idade, e não me esqueço das muitas camisas de futebol que ele tinha. Fui me reencontrar com esse primo agora, quase cinquenta anos depois. Falei disso e o deixei no mínimo espantado. Tudo parecia crível: ele morou onde eu dizia e, por gostar de futebol, colecionava camisas e flâmulas. Mas não mantinha o menor registro do nosso encontro, aliás, nem de mim. A memória não é uma via de mão dupla.

Um amigo me contou que anda escrevendo suas memórias e já preencheu um bom número de páginas. Em alguns momentos, no entanto, falou do esquecimento, o que me levou a dizer que não será nada confiável seu relato. Rimos. Mas, friso agora, memória é também esquecimento.

Quando não é invenção, deliberada ou não. Minha amiga, a escritora mineira Cristina Agostinho, fez um livro sobre Luz del Fuego (“Luz del Fuego: a bailarina do povo”, escrito com a colaboração de Branca Maria de Paula e Maria do Carmo Brandão e recentemente reeditado pela N30 Editorial). Segundo ela, foi impossível decifrar como Dora Vivacqua resolveu dançar com cobras. Diante disso, como hipótese, baseada no amor que a nudista dedicava aos livros, aventou-se que a futura Luz del Fuego teria se inspirado em imagens de sacerdotisas babilônicas, que, claro, dançariam com cobras. A história-hipótese vingou e até hoje é repetida quando se fala daquela mulher que andou — se é que ainda não ande — à frente do seu tempo.

A memória aparece nesses grãos recém-espalhados por aqui. Como forma de desnudá-la por completo e sem deixar de me mostrar muito senhor de mim, capaz de ombrear com o poeta tropicalista, defino: a memória é uma filha da sedição. Não faço ideia por que filha e não mãe ou prima, tampouco ou muito menos que motim a pariu. Aliás, se já soube, não sei mais a razão de ter arriscado essa definição sem pé nem cabeça, esse trocadilho barato com a frase do Salomão. Ao envelhecer, o problema é justamente a perda da memória recente.

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