Tempo
é templo (Sônia Peçanha)
São 19h54m, e
um vizinho grita Vasco. No fone de ouvido, Antologia do Violão, de Paulinho
Nogueira, um dos primeiros discos instrumentais que curti na vida e que
encontrei bem agora numa plataforma de música. Acabei de ver dois filmes em sequência:
“A sociedade literária e a torta de casca de batata” (de Mary Ann Shaffer) e “Intriga
de estado” (de Kevin Macdonald). O primeiro tem boas sacadas de roteiro — que, contudo,
descamba para uma história de amor com final clichê — e uma péssima atriz no
papel principal. O segundo, um thriller envolvendo matéria investigativa de um
jornal, políticos americanos e interesses privados sobre funções típicas de
estado, no caso a segurança, é bem dirigido e bem interpretado, bom divertimento.
Não vejo as
séries de que tanto se fala por aí, sou impaciente para acompanhar histórias a
serem lançadas em gotas, episódio a episódio, temporada a temporada. (Como eu
faria na época em que Dom Quixote ia a público desse modo, folhetim a folhetim?)
Ficar na mão de produtores e seus interesses é demais para o caipirinha aqui.
Prefiro os livros, os filmes, as músicas e as finais do basquete, que, muito
por conta do engajamento dos atletas em relação aos conflitos raciais nos
Estados Unidos, assisto com meu caçula.
A vida nesses
quase seis meses de confinamento poderia estar restrita a isso ou também a
isso, já que não podem ser esquecidas a faxina, a organização das refeições, a
disciplina nos pagamentos dos boletos, as conversas do Whatsapp. Não se consegue
perder de vista a pandemia e suas vítimas e as vítimas de sempre, haja ou não pandemia,
os negros, as mulheres, os pobres. Enfim, os desgovernos (federal, estadual e
municipal) nos beliscam segundo a segundo, impedindo qualquer escapismo de nossa
parte.
Acontece que o infortúnio
é um cão insaciável, pronto a morder as pessoas que amamos. Mesmo consolado pelo
violão de Paulinho Nogueira ou maravilhado pelas enterradas de LeBron James, não
abandonamos a preocupação com os filhos e os amigos. E não é para menos.
Esse equilíbrio
do confinamento, entretanto, foi ferido pela notícia vinda de uma amiga: Sônia
Peçanha, dona de uma escrita refinada e contundente, mulher cujo sorriso e cujas
poucas palavras dão fôlego para uma vida, não está mais aqui. Em trinta e três
anos de convívio em torno de nosso Estilingues, aprendi com Sônia sobre a delicadeza,
acompanhei a evolução de seu talento — o texto preciso e poético — e compreendi,
a partir dela, o que é uma postura ética frente à criação.
Soninha não foi vítima da Covid-19. Não posso dizer que tenha sido vencida pela estupidez reinante no país, apesar de conhecer seu posicionamento crítico, indignado. De todo jeito, ela se vai quando atravessamos um dos piores seis meses de nossa vida coletiva, seis meses intermináveis, durante os quais envelhecemos duas, três, quatro, ene vezes além do tempo cronometrado.
6 comentários:
Xandão, nossa vida é assim e assada... Abração!
Um balanço de seis meses de isolamento físico, de indignação constante com a desfaçatez política, a crueldade que só o humano pode apresentar. Nos telejornais, nas redes socais, diariamente, estupidez, egoísmo, sanha de aniquilação do outro como pratos fortes. Saio da mesa, busco a refeição na origem. Dentre outras nutrições, vêm a lúcida e certeira prosa deste cronista e uma prosa de filigrana, toda perícia e sensibilidade, de Sônia Peçanha, que acabou de partir. Em seu Relógio d'Água, Sônia atinge o nível de Katherine Mansfield, Virginia Woolf, Clarice Lispector, ao tomar na escrita o inigualável tempo da infância. O quase intraduzível tempo interior da infância. Falta irremediável, a de Sônia Peçanha.
Ricardo e Nilma, obrigado pela leitura e pelas palavras de consolo. Nilma, assim como você, acho que a Soninha era mesmo enorme, conhecia a infância de um jeito único, cheio de sensibilidade.
tempo terrível o que atravessamos - e ainda as perdas irreparáveis - um abraço pra ti!
gosto da tua escrita!
oh - não vi que estava no e-mail deste antigo blogue - sou eu, líria porto.
Oi, Lira, obrigado pela visita. Dias tristes sim, muito tristes. Mas nós e nossos afetos ainda estão aqui.
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