Acordei em mais um dia quente na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade é um caos. O estado é um caos. O país, se não é, está um caos.
Reagi cantarolando
“Fantasia”, de Chico Buarque. A música convida para uma pequena utopia ao dizer:
“Se de repente / a gente distraísse / o ferro do suplício / ao som de uma
canção”. Estribilha: “canta, canta uma esperança / canta, canta uma alegria / canta
mais”. E completa: “Preparando a tinta / enfeitando a praça / canta, canta, canta,
canta / canta a canção de glória / canta a santa melodia.” Ouvi muitas vezes,
repetindo a dose como se fosse uma seringa de heroína, uma talagada de cachaça,
um cigarro, de maconha ou não, tragado no limite dos pulmões.
Não que eu
tivesse esperança de que o calor diminuísse, mas, como o viciado, gostaria de,
por algum instante, me ver livre dessa sensação de que o caos irá nos cozinhar,
nos estorricar, nos tornar inviáveis. Nós, os seres humanos. A nossa vidinha passageira.
Fora a ira que
me acomete aqui e ali, o que sinto é equilibrado e político. O calor e o caos
irão passar, o primeiro temporiamente, pelo menos por enquanto, antes da
efetiva catástrofe ambiental; o segundo para sempre, custe o que custar — e
custará muito.
Para os familiares,
em particular as mães e avós de Lucas Matheus, de oito anos, Alexandre da
Silva, de dez, e Fernando Henrique, de onze, — três meninos que saíram, no dia
27 de dezembro, para brincar na quadra perto de onde vivem em Belfort Roxo, no Castelar,
e estão desaparecidos até hoje —, pode ser que o calor e o caos não passem. Na
busca das crianças, três homens foram mortos pela polícia; um, levado pelas famílias
dos garotos à delegacia, foi acusado de ser o responsável, o que não se
confirmou; um ônibus foi incendiado; a avó dos primos Lucas e Alexandre, depois
de correr atrás de uma pista do paradeiro deles, se envolveu em um acidente automobilístico
de consequências leves. O caos, além do calor.
Não se descarta que essas famílias venham a vestir o luto absoluto, que já cobre inúmeras moradoras das áreas mais desassistidas, aquelas em que o tráfico e a milícia acham por bem coabitar, aquelas em que a polícia não vê problema algum em entrar atirando e matando inocentes em prol do combate ao crime.
A estatística da violência — e outras igualmente indignas — engorda no Brasil. Por aqui, o ferro do suplício não se distrai com nenhuma canção.
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Se quiser, ouça a música do Chico aqui.
3 comentários:
Triste esse nosso brasuca, mermão! 😥
Muito triste.
Triste como nunca, brilhante como sempre!
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