18.1.21

Três meninos de Belfort Roxo

Acordei em mais um dia quente na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade é um caos. O estado é um caos. O país, se não é, está um caos.

Reagi cantarolando “Fantasia”, de Chico Buarque. A música convida para uma pequena utopia ao dizer: “Se de repente / a gente distraísse / o ferro do suplício / ao som de uma canção”. Estribilha: “canta, canta uma esperança / canta, canta uma alegria / canta mais”. E completa: “Preparando a tinta / enfeitando a praça / canta, canta, canta, canta / canta a canção de glória / canta a santa melodia.” Ouvi muitas vezes, repetindo a dose como se fosse uma seringa de heroína, uma talagada de cachaça, um cigarro, de maconha ou não, tragado no limite dos pulmões.

Não que eu tivesse esperança de que o calor diminuísse, mas, como o viciado, gostaria de, por algum instante, me ver livre dessa sensação de que o caos irá nos cozinhar, nos estorricar, nos tornar inviáveis. Nós, os seres humanos. A nossa vidinha passageira.

Fora a ira que me acomete aqui e ali, o que sinto é equilibrado e político. O calor e o caos irão passar, o primeiro temporiamente, pelo menos por enquanto, antes da efetiva catástrofe ambiental; o segundo para sempre, custe o que custar — e custará muito.

Para os familiares, em particular as mães e avós de Lucas Matheus, de oito anos, Alexandre da Silva, de dez, e Fernando Henrique, de onze, — três meninos que saíram, no dia 27 de dezembro, para brincar na quadra perto de onde vivem em Belfort Roxo, no Castelar, e estão desaparecidos até hoje —, pode ser que o calor e o caos não passem. Na busca das crianças, três homens foram mortos pela polícia; um, levado pelas famílias dos garotos à delegacia, foi acusado de ser o responsável, o que não se confirmou; um ônibus foi incendiado; a avó dos primos Lucas e Alexandre, depois de correr atrás de uma pista do paradeiro deles, se envolveu em um acidente automobilístico de consequências leves. O caos, além do calor.

Não se descarta que essas famílias venham a vestir o luto absoluto, que já cobre inúmeras moradoras das áreas mais desassistidas, aquelas em que o tráfico e a milícia acham por bem coabitar, aquelas em que a polícia não vê problema algum em entrar atirando e matando inocentes em prol do combate ao crime.

A estatística da violência — e outras igualmente indignas — engorda no Brasil. Por aqui, o ferro do suplício não se distrai com nenhuma canção.


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Se quiser, ouça a música do Chico aqui.

3 comentários:

Ricardo - Cueca - Lemos disse...

Triste esse nosso brasuca, mermão! 😥

Dag Bandeira disse...

Muito triste.

Ádlei Duarte de Carvalho disse...

Triste como nunca, brilhante como sempre!