Li “A autobiografia de todo mundo” (Everybody´s Autobiography), de Gertrude Stein, numa edição da CosacNaify. É um diário? Um ensaio? Uma crônica de viagem? É tudo isso. Se eu fosse Funes, o memorioso de Borges, decoraria as mais de trezentas páginas da autobiografia que, sendo de todo mundo, é minha e de quem passe os olhos por ela. Escrito com enorme liberdade sintática — me pareceu muito bem transcriada por Júlio Castañon Guimarães —, o livro conta o cotidiano dessa escritora americana que vivia em Paris, dando ênfase ao tempo em que ela, depois de estar trinta anos ausente, volta aos Estados Unidos para uma série de conferências. Destas não ficamos sabendo nada ou quase nada, mas das viagens de trem, de carro ou de avião (era a primeira vez que ela voava), dos hotéis, da comida, dos encontros, do encantamento com a paisagem, sim.
Stein confronta os estilos de vida americano e europeu, fala de artes plásticas, enumera personagens famosos que circulam à sua volta, Picasso, Chaplin, outros tantos. O permanente trânsito entre dentro e fora, entre pensar e viver, talvez seja o ponto central da obra. Tudo que Stein faz qualquer um de nós faria; e tudo que conta nós poderíamos contar. A diferença é que ela escreve, e escreve como se pensa, não como se fala ou até mesmo como se escreve. O livro é, enfim, uma reflexão sobre a escrita que quer dar conta do pensamento em sua amplitude, circularidade e imperfeição, ou seja, quando nasce.Registro uma
passagem. No vaivém pelos Estados Unidos, Stein passa por Virgínia, um lugar muito
vazio. Alguém comenta que o pai, vivendo naquele estado, acorda, senta-se em numa
cadeira e observa os pinheiros crescerem. Isso é tudo e é assim todos os dias.
Stein acha isso muito interessante — interessante é a palavra mais usada por
ela.
Estando, ainda
em Virgínia, com pessoas mais jovens, a escritora nota como são conservadoras e
reflete sobre uma delas: “Ela também era virginiana quer dizer acreditava no
que acreditavam quando os virginianos eram virginianos. Acreditavam que viam a
árvore quando a árvore fora substituída por um edifício, ver a árvore poderia
ser interessante se fosse possível tornar isso interessante mas para essa
geração que ainda vê a árvore quando foi substituída por um edifício e como
esse edifício não é feito de madeira pode não ser interessante.” Não me lembro
de ter visto o entrechoque entre conservar e progredir — tomo conservar e
progredir tanto no sentido econômico quanto no ideológico e afetivo, que a
educação familiar procura perpetuar — escrito de forma tão original.
Vi “Faz de
Conta que NY é uma Cidade” (Pretend It's a City), documentário de Scorsese
sobre Fran Lebowitz. Ela é escritora? Sim, de duas ou três coletâneas de
crônicas escritas na juventude e de um romance inédito que, segundo ela, vem
sendo trabalhado. Apesar da produção escassa, é figura importante no ambiente
cultural e político de Nova York, cidade à qual chegou, no final dos anos de
1960, com dezenove anos. Nos sete episódios disponíveis na Netflix, conhece-se uma
mulher de humor refinado, sarcástica, bibliófila — mantém em seu apartamento dez
mil livros —, dona de uma visão bem peculiar sobre a contemporaneidade.
Esteja certo ou
não, Stein ecoa em Lebowitz. Para além da sagacidade, ambas refletem sobre o
tempo, ainda que de forma distinta. Por estar entre as duas guerras e na ressaca
da Grande Depressão, Stein parece obrigada a acreditar no futuro; Lebowitz, nascida
depois da Segunda Guerra, mostra-se cética em relação ao que sucederá a um presente
cheio de quinquilharias eletrônicas, com pouca interação humana e propenso a
acabar com as livrarias de rua e com a própria leitura.
Stein antes, Lebowitz depois — quando a primeira morreu, a segunda ainda não havia nascido — têm em comum o fato de se ocuparem com qualquer assunto sem o menor pudor. Se aqui e ali demonstram ignorância, preconceito, nunca deixam de olhar o mundo com curiosidade e absoluta certeza de que elas podem e são fundamentais para compreendê-lo.
Stein se considerava gênio, não duvido de que Lebowitz também. Sendo ou não, o que posso dizer é que, flambadas no ego, as duas são deliciosamente instigantes.
4 comentários:
Uma crônica deliciosa. Muito obrigado pela "viagem"...
Que bom que você gostou, Luca. Bom te ter por aqui.
Muito bom, Alexandre.
Pô, Haron, vindo de você, que escreve sobre livros, fico lisonjeado. Abraços.
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