Ao fugir do castigo
da casa baixa onde imagino ter nascido, descobri que as janelas podem ser um
caminho para a liberdade. Alguns anos depois, num sobrado no Beco dos Aflitos, olhava
a rua pela janela e ouvia minha mãe dizer para eu não me debruçar. Minha mãe tinha
medo, e eu, anseio de ver o mundo. Feito essas namoradeiras esculpidas em madeira,
eu esperava a Elaine, no seu uniforme de secundarista, passar a caminho de sua
casa. Aquela janela me deu a dimensão de que a moça, por ser uns cinco anos mais
velha que eu, era inalcançável, e o correr da vida, estivessem meus cotovelos
apoiados numa janela ou num balcão de botequim, completaria a lição: muitas mulheres
são inalcançáveis. Em compensação, ao pular a janela da sede do diretório acadêmico,
despertei o interesse de uma garota por mim — nos alcançamos.
Quando as
janelas se fecham, os passarinhos, longe de nosso olhar de gaiola, voam plenos
de liberdade.
Recém-chegado
ao Rio de Janeiro, do nono andar de um prédio em frente ao consulado português,
em Botafogo, eu observava a fúria dos que, presos no engarrafamento, voltavam
para casa após o trabalho. Naquela época, ano de 1980, os motoristas não poupavam
a buzina. Alguma coisa houve de lá para cá e, hoje, buzina-se menos, assim como
se fuma menos — as janelas são o paraíso dos fumantes. No caso do cigarro, a
proibição de fumar em ambientes públicos e fechados, auxiliada por uma competente
campanha publicitária, explica a queda no número de fumantes, mas em relação à
buzina não houve nada parecido. Talvez seja uma compreensão espontânea do mal
que a poluição sonora faz. Sociologias à parte, lá da janela do nono andar, e,
depois de uma mudança, da equivalente do décimo segundo andar do mesmo prédio,
o recém-chegado descobria que, para viver no mundo escolhido, deveria descer à rua,
tomar o ônibus, sentar-se, caso desse azar, ao lado de um fumante, enfrentar o
engarrafamento e ouvir as buzinas soarem bem ao lado. As janelas estimulam a reflexão
e nos chamam à vida.
Para muitos, elas
não são a tela de cinema por meio da qual, além da imagem e do som, se
transmite o cheiro; ao contrário, apresentam-se como passagem entre um andar
alto e o chão, entre a vida e a morte. Não se culpam as janelas nem as moradias
tornadas verticais para comportar tanta gente em espaços exíguos. Cúmplice dos
arranha-céus, o salto obedece a comandos de uma alma ferida. As janelas não
julgam.
A evolução humana
se deu única e exclusivamente para tornar possível a construção de janelas e teve,
como consequência inesperada, a invenção, agora esquecida, da serenata. A
arquitetura moderna, com seus prédios de vidro, engana-se ao imaginar que nos
contentamos tão somente em ver o lá fora. Nada disso, queremos janelas.
Minha avó paterna
ficou cega por conta de uma enfermidade que hoje algumas gotas diárias de colírio
e uma cirurgia curariam. Para ela, a janela era fonte de brisa, mas poderia ser
de vento e chuva, logo, havia sempre alguém zelando para que prazer e frescor não
se transformassem em tormento. Se, como Da Vinci afirmou, “o olho é a janela da
alma, o espelho do mundo”, que espécie de janela é o olho decorativo dos cegos?
É este paradoxo que João Jardim e Walter Carvalho, no documentário não sem motivo
chamado de “Janela da alma”, lançam ao colherem depoimento de dezenove artistas
(de José Saramago a Hanna Schygulla, de Hermeto Pascoal a Agnès Varda) com problemas
que vão de limitações medianas de visão à cegueira, como é o caso do fotógrafo Evgen
Bavcar. Chego a um momento delicado, e, sem saber esclarecer o paradoxo, afirmo
apenas que as janelas são uma metáfora de fragilidade e potência.
Morei numa
pequena vila, e a janela principal, bela peça de uma construção do início do
século XX, me dava aos olhos a similar do vizinho da frente. Às vezes eu e ele,
olho no olho e uma ruazinha no meio, travávamos ótimas conversas. Do mesmo
lugar, soltando a voz, anunciava a hora da tarefa escolar ou da refeição e tirava
as crianças do pique-pega.
Falam da existência de janelas capazes de aproximar o nosso mundo de uma quinta dimensão. Não duvido disso, porém, nem em viagens induzidas por néctares vulgares, que me trouxeram aos olhos o que não havia, entrevi qualquer pedacinho do que imagino ser a mais bela visão. As janelas descortinam a quimera.
Manter as janelas abertas é princípio básico de saúde e está em evidência por conta desse maldito vírus assassino. Além de muita gente viver em moradias sem janelas, no Brasil elas foram fechadas, estão fechadas — sim, as janelas estão fechadas. Nem por isso os pássaros têm usufruído de sua máxima liberdade. Por solidariedade a nós? Não creio, devem estar estupefatos por ver a mão visível e incerimoniosa fechar as janelas, à luz do dia, sem que nós façamos nada para detê-la.
3 comentários:
Felizmente as janelas ainda existem! Essa "prisão domiciliar" que estamos, vigiados pelo carcereiro CoVirus19, seria bem mais triste sem elas.
Eu tenho uma janela enorme. Moro no primeiro andar e na janela vejo muitas palmeiras imperiais que habitam a Rua Paissandu, graças a Princesa Isabel, e muitas outras árvores. Posso ver também muitas pessoas indo apressadas em direção ao Aterro ou correndo para pegar o metro ou levando seus cachorrinhos para dar uma volta e fazer suas necessidades diárias. A maioria das pessoas usam máscaras e corretamente. Algumas usam no queixo ou não usam. Torço para que elas tenham sorte...
Ah! Da janela posso ver se a padaria que tem embaixo do prédio vizinho está aberta.
Vermelho
Alexandre, Xandão, surpreendeste-me falando de janelas quão úteis nos são, as janelas.Destas minhas janelas eu via o mundo hoje tão silencioso e vazio de gente na rua.desta janela eu vi ainda há pouco uma nuvem escura vindo..Suspirei, esperei o refrescar deste calor sufocante.Desta janela eu vi a mesma nuvem passar apressada, cuidadosa, com medo de suas gotículas cairem em nossa Passos.O que lhe fiz eu?O que lhe fizemos nós?E a nuvem juntou suas saias e passou correndo.Já não a avisto desta janela na Rua Ouro Preto.Onde terá ido?Acho que foi procurar meu amigo Xandão pras bandas do Rio de Janeiro.
Abraço amigo da Hildinha
Hilda Mendonça
Caramba, meu amigo, janelas sempre foram o meu mundo possível. Agradeço por essa belíssima crônica! Abraço!
Postar um comentário