Com o realismo
mágico, García Márquez reportou o mundo a sua volta, em particular o de sua juventude
vivida no interior da Colômbia. Sim, era uma espécie de reportagem sobre o
extraordinário embutido nas histórias narradas por seus avós e de modo algum criado
por ele. Na minha infância, eram comuns os casos situados na fronteira entre o
real e o imaginário, entre o visível e o invisível. Eu também — e muita gente de
sessenta anos ou mais — poderia ter inventado, se me fosse dado talento, o
realismo mágico, bastava registrar, ao lado de mulas sem cabeça e sacis, as
peripécias de meus antepassados. O avô materno de minha mãe colocava maçãs na
cabeça de suas filhas e, de uma certa distância, atirava na fruta. Verdade? É o
que sei. Nas mãos de Gabo, suspeito, as maçãs seriam para lá de rubras e as
meninas, apesar de pálidas, esperariam os tiros de olhos abertos.
O escritor colombiano
não só registrou as histórias de seus ancestrais, falsas ou verdadeiras, o que ele
não poderia atestar, como também espalhou, a seu gosto, ervas e pimenta sobre
elas. Não fosse assim, não seria um escritor, mas um contador de causos. Nem
contador de causos, já que esses, ao relatar o que viram ou ouviram, dão um
jeito no inverossímil da realidade. Não sendo escritor nem contador de causo, García Márquez talvez pudesse ter sido um contabilista com talento para esconder
do fisco parte da renda de seus clientes. Sempre projeto sobre o Nobel de 1982
a pecha de mentiroso. Creio que lhe cai bem.
O boom da literatura
fantástica ficou para trás. Entretanto esses dias tão cheios de assombros parecem
propícios à exploração do mágico. Sendo assim, sugiro três argumentos, que
podem ser explorados em diferentes nichos de mercado, àqueles que nalgum canto
do universo escrevem sob a bênção do velho Gabo. Corram à cozinha, separem os
temperos mais picantes e mãos à obra.
Distopia:
no lugar dos coronéis déspotas, velhos e sozinhos, o personagem é o
homem orgulhoso da própria ignorância e fiel à violência. Ele tem o olhar
vidrado, não como o de um louco, mas como o de uma besta. Recusa o passado,
encantado ou não, por ser um tempo morto. Seu foco são o presente, para
desfrutar as benesses da fortuna, e o futuro, para garantir a boa vida dos descendentes
e perpetuar o próprio nome como um herói da pátria. Ambicioso e gabola, apresenta-se
numa versão mais que requentada do velho caudilho. O déspota atualizado percebe
a passagem do real para o virtual, no qual age. As fake news, sua mão sobre
o novo mundo, trocam o acaso e a riqueza do contraditório por algoritmos que escravizam,
inicialmente, aqueles que o escolheram como libertador e, em seguida, os demais.
Humor: o olhar vidrado do poderoso expressa o assombro de quem não entende uma vírgula do que está se passando. Ele é o menino do “A vida é bela” que, ao crescer, continuou a enxergar o real como um jogo. Em vez de viver, joga, e tudo para ele — inclusive ou principalmente o horror — é encantamento e beleza. Envolvido em sucessivas situações vexatórias, como a de negar a ciência, bradar contra a democracia e babar de medo, vê-se transformado num palhaço sem graça e sem circo. Quando chega ao limite da tolerância, ao apontar o dedo contra seus detratores e ameaçá-los de morte, causa mais riso que medo. Não fosse, apesar de patético, perigoso, seu desatino seria comovente.
Terror: o novo Messias teria voltado à terra para acabar com a corrupção original, o passo em falso de Adão e Eva, e com a alimentada pela cobiça. Seu discurso enaltece um passado em nada similar ao fantasmagórico e recorrente de García Márquez, mas um que nunca existiu, aquele no qual, sob ditadura, homens e mulheres foram felizes. Encontra seguidores fanáticos, no entanto, quando o discurso messiânico se transforma em idiotice política, surgem os desiludidos, que, em número crescente, fogem para lugares distantes, se ajeitam em pequenos sítios e abandonam o mundo virtual, praça de guerra do líder. O até então ídolo se vê incapaz de manejar a tecnologia a seu favor, perdendo assim o poder de influir com suas mentiras na vida de todos, seus partidários ou não. Abandonado, meio milhão de almas penadas o visitam e o aniquilam. Enquanto isso, os fugitivos se agarram à única ideia do falso Messias com a qual ainda concordam, a de o passado ter sido o melhor momento não exatamente de suas vidas, mas da existência humana. Empenham-se, então, em reerguer montanhas, replantar florestas, desinventar a agricultura, sobreviver da caça, enfim, dedicam-se a arrastar suas vidas cada vez mais para trás. Até que chega a hora de enfrentar os dinossauros.
3 comentários:
Pois é...
Parece que estamos mesmo vivendo tempos trevosos de realismo fantástico.
Como diria o nono: - Porca la putana!
Luca, se o que estamos vivendo não são esses tempos, então esses tempos não existem ou não passam de um delírio de um escritor humilhado por não ser deus.
Perfeita a descrição daquele olhar vidrado: não de louco, mas de besta.
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