14.8.21

Sanduíches, sandices e afeto

Quando eu era bem jovem, me lembro de ter ficado admirado com o que contou um amigo recém-chegado de São Paulo: no cardápio de uma lanchonete não constava uma variedade de sanduíches, mas apenas três: carne; queijo e carne; e queijo, carne e ovo. A carne era de um tipo só, hambúrguer bovino. Meu espanto tinha a ver com o fato de que, na minha cidade interiorana, os sanduíches ficavam cada mais cheios de opção: cebola, alho, bacon, salada, molhos diferentes, linguiça e outras invenções. Diante do que me parecia um retrocesso da lanchonete paulistana, quis saber como o justificavam. Simples, esclareceu o amigo, o dono percebeu que, com tantas alternativas, a escolha se tornava difícil, optar por uma era abrir mão das outras. Frente a um verdadeiro dilema, muitos clientes desistiam de comer, portanto não gastavam seu precioso dinheiro na lanchonete. Moral da história: o excesso nos confunde.





Se a gente esquece o sanduíche e pensa — escolho a próxima palavra também pela rima — nas sandices do captain, their captain, talvez encontre um paralelo entre as duas coisas. Os golpes absurdos, numerosos e disparados simultaneamente por aquele senhor e seu séquito buscam apenas nos confundir. É melhor então sermos objetivos e não cairmos na tentação de enfiar muitos recheios no sandubão; enfim, optar por um clássico. Traduzindo: se taparmos os ouvidos para a verborragia, os xingamentos e as ameaças, o que resta é a incompetência. Na verdade, não existe sanduíche se não se acrescenta queijo ao bife, portanto à incompetência devem-se juntar pitadas de banditismo. Eis então a síntese de quem nos governa.

 

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Para Neném, Carlinhos, Edinho (in memoriam) e o amor de minha vida, Nilzinha

Pena que eu vá misturar essa podridão pela qual temos passado com o nome que direi agora: Dita.

A Dita, negra forte (como são tantas ou todas), viúva ainda jovem e com quatro filhos, foi trabalhar na casa de meus pais e, apesar de ter conseguido, uns anos depois, um emprego muito melhor na Santa Casa, com a segurança da carteira assinada e da previdência paga, nunca nos abandonou. Nunca. Quando meus pais ficaram mais velhos, e o enfisema de meu pai se agravou, ela passou a dormir na casa dos velhos. Sim, ela deixava a família, àquela altura de filhos adultos e netos, para fazer companhia aos seus antigos patrões. Na última internação de meu pai, ao sair de casa, ele sussurrou alguma coisa na direção de minha mãe, e ela não compreendeu, mas a Dita sim. Joaquim declarava seu amor à Haydée. Não fosse a escuta atenta daquela acompanhante tão especial, saberíamos do amor de meus velhos, pois era evidente, mas não saberíamos do último gesto daquele amor.

Agora foi a vez da dona Benedita nos deixar. Eu só posso lhe agradecer — e não só pelo caso recém-contado, uma lembrança que diz muito para mim e não alcança nem de longe tudo que ela foi. Sua grandeza estava na inteligência, no caráter, na força com que lutava e em como sabia ser irônica na medida certa. Conhecer uma mulher assim é um privilégio, e, por ter tido essa sorte, sim, agradeço mil vezes. E agradeço mais uma vez por ela ter me dado a oportunidade de conviver com seus filhos (minha infância não existe sem eles) e netos. Voltando um pouco ao campo da política, devo também desculpas à Dita, pois até o momento não conseguimos, em nosso país, apagar as marcas de um passado escravocrata e erradicar o racismo estrutural. Contribuo para esse fracasso.

4 comentários:

Dag Bandeira disse...

Graças a Deus estou de dieta. Verborragia nenhuma entra nas minha torradas do lanche das tardes. Faço ouvidos moucos e ouço a voz dos poetas e de cronistas sensatos. E viva a literatura. Muito lindo o seu exame de consciência e amor a Dita. Que bom que você é meu amigo.

No Osso disse...

Dag, querida, obrigado pela leitura. Sei que você não me ofereceu, mas aceito uma torradinha com geleia diet.

Branca Maria de Paula disse...

Acertou em cheio, Xande. Mas esqueceu de pontuar que o sanduba está envenenado.

No Osso disse...

Branca, envenenadíssimo. Bem observado.