Os dias depois daquilo foram longos. Como se as horas se esquecessem de passar (Wish you were here, Sônia Peçanha).
Eu sei que o Brasil está de cabeça para baixo. A última
semana foi terrível, ou mais terrível que as anteriores, que já haviam sido
terríveis. Somar terribilidade a terribilidade faz parte de uma matemática
menos acessível, aquela na qual a concretude da aritmética básica é trocada
pela abstração. Faço essa comparação e me arrependo. A matemática é linda,
quase sagrada, mesmo que não a entendamos em toda a sua complexidade. Acho que
foi Galileu quem definiu a matemática como o alfabeto usado por Deus para
escrever o Universo.
Seja como for, hoje deixo de lado o Brasil de cabeça para
baixo, dou de ombro para o desastre coletivo e falo de uma perda particular, a
da Sônia Peçanha. Na semana terrivelmente terrível do Brasil, fez um ano da
morte da escritora, da amiga. No último dia 8, acordei e havia no zap uma
mensagem da Marilena Moraes, outra escritora do nosso grupo — o Estilingues —,
com um link para a música do Pink
Floyd, Wish you were here, numa gravação
de Dime Nineteen. Com esse título, Soninha escreveu um conto — está em seu
último livro, “Relógio d’água” (Editora Patuá) — que é prova irrefutável de seu
talento. Não fosse a literatura tão maltratada no Brasil, e viesse à luz não só
o que as grandes editoras alardeiam, ela seria lida por muita gente, estudada
de norte a sul; enfim, reconhecida. Mas não é assim. Azar de quem não a lê,
sorte a minha de ter acompanhado sua trajetória desde o início, de ter lido
seus textos ainda em estado embrionário. Azar o meu de ter perdido uma amiga desse
porte, grande artista, grande ser humano.
Sim, Soninha era uma mulher gigante. Nunca, em mais de trinta
anos de amizade, a presenciei em atitude vaidosa, arrogante ou coisa que o
valha. Ao contrário, a vi alinhada a lutas por justiça social e se desdobrando
para ajudar crianças pobres. Vi ainda, inúmeras vezes, aquela mulher calada
abrir a boca para uma pequena ironia, para dividir seu sorriso com os mais
chegados, também para falar com toda a segurança e paixão sobre literatura.
Semana passada, o Brasil ficou muito pior do que estava, mas
nem todos sabem que a falta da Soninha o piora ainda mais.
Para terminar, deixo um poema dedicado a ela.
Sônia
Espichar pela ponta da tristeza
espichar até que, solto,
o fio permita confeccionar
o agasalho com que me protegerei
de tua ausência - de tua presença
em outra dimensão,
como é o teu modo de entender o fim.
Tricotar esse fio e, aos poucos,
ver a lã de cor aguda
mesclar-se à plácida
como duas vozes
em canto
em oração
em luta
como a tua voz
leve e presente
irônica e assertiva
sábia e humilde.
Tricotar os fios de tua cabeleira
num colete de gola em V de vigor
numa saia justa de poesia
numa lembrança de teu
sorriso, de teu olhar pronto
a reinventar o mundo, para o qual reservas
água, ar, intensidade
azeite, pão e o gesto
solidário carregado pelas mãos
: as tuas.
Tricotar o frio no fio
a presença na ausência
a alegria na tristeza
a saudade na comunhão
a espera na fúria
tricotar, com cuidado,
teu estilo no meu
teu brilho no da Cristina
teu segredo no da Marilena
teu amor no da Miriam
teu silêncio no da Nilma
teu aprendizado no da Vânia.
Ver a luz
— atirada do Estilingues
(tua e nossa palavra de vida) —
acertar o pássaro amoroso
que, em pios de conforto, assume
a tarefa de cuidar de ti
: aceitar teu voo.
3 comentários:
Saudade imensa!!! Ao mesmo tempo, enorme gratidão por ter recebido a graça da amizade de Soninha!!!
Que lindo Xande, que alegria de a ter conhecido a e a tristeza de não ter convivido mais com ela. Por esses versos, me sinto mais próxima da Sonia que as meninas do Estilingues e você tanto gostam. Beijos a todos/as e meu sincero pesar por essa perda. Que a saudade que vocês sentem por ela seja a forma de aproximá-la de seus corações.
Prima Valéria, amiga Dag, obrigado. Soninha era uma força, mas disso vocês sabem.
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