Fim do tempo
Quando enforcarmos o tempo na árvore do silêncio, mamãe, antes de nascer, servirá torradas aos seus descendentes, enquanto uma menina, quilômetros de séculos depois da segunda vinda de Cristo, passará esmalte no corpo sem função procriadora.
Seremos alegria e também um cêntimo furado do nada, aquilo que cheira à felicidade ligeira dos drogados bastante rodados. Olharemos pela perspectiva da viúva branca. Cantaremos como carpideiras depois do enterro do próprio filho. Deitaremos sobre a relva de cetim e de lá sairemos pinicando, com a pele marcada por comichões da mentira. Esquentaremos, no bafo, o sol já cansado.
Relógios continuarão a marcar o que não se saberá ao certo o que seja. Alguns dirão: marcam o silêncio. Outros: maculam o silêncio. E outros ainda: essas peças são a entranha das paredes. Uma coisa só, o tempo e o espaço.
Não abençoaremos as crianças, pois terá passado a distância em que precisávamos de religião. A morte, por isso mesmo, usufruirá sua pensão vitalícia gastando seus dias, justo eles, que não farão mais sentido: um lixo como tantos outros esquecido nos dicionários. Molharemos o sono com a lágrima da eternidade.
A bola correrá para cima. O rio chupará gelo. As gaivotas voarão sob o chão. E as formigas terão seu valor como brocado usado para tampar a vergonha da escuridão. Ninguém dará a mão ao despenhadeiro. A criança zero quilômetro embalará a lucidez do sono, cantando-lhe murmúrios de marré deci.
Quando enforcarmos o tempo na árvore do silêncio, Nero regará Roma até submergi-la. Alheios, surfistas brincarão com as ondas de fogo do Vesúvio. Um poeta analfabeto rirá da aurora. E a aurora, ela mesma, rirá escarlate da cara do céu de brigadeiro de chocolate. Não se saberá mais o que é criação e o que é acaso. Seremos arquétipos de deuses em desuso. Fumaremos cachimbo de melancolia e, com isso, nos largaremos ao riso: frouxos de tanto tentar matar a distância.
2011: prognósticos
O ano que se inicia terá nuvens no céu, com o que podemos afirmar que o céu não despencará em nossas cabeças mais ou menos sensatas. Nós ficaremos aqui embaixo, e o capeta, caso exista, mais embaixo ainda.
Morrerá um padre. Morrerá um pastor. Ninguém reportará a morte de uma flor, mesmo daquela cuja cor flor nenhuma jamais ousou ter. Um comprimido estancará a pior das dores de cabeça, porém não será em 2011 que conheceremos a invenção da pílula contra a dor causada pelo fim de um amor.
O preço da carne oscilará. O preço do açúcar oscilará. Só mesmo o preço de viver a vida correta continuará estável, naquele nível altíssimo induzido pelo excesso de demanda em um mundo de facilidades e seduções.
Crianças sem infância. Infantilizados perpétuos. Lisos no bisturi. Enrugados na esbórnia. Todos na parada dos dias de 2011.
A lua pisará o céu distraída. A lua presenciará uma série de crimes. A lua não iludirá os ratos.
Não sei quantos crédulos viverão 2011 como a véspera do fim do mundo. Todavia sei que o mundo acabará para muitos, crédulos ou não, em 2011.
Lâmpadas serão trocadas. Ministros serão trocados. Alianças serão trocadas. Trocaremos olhares como sinal de interesse, porém com menos frequência do que no passado. Os “emoticons” serão a coqueluche da sedução.
Nascerá um Caio. Nascerá uma Anita. Nascerão um Paolo e um John. Também uma Ingrid. E ainda um Frederico. Alguns não conhecerão o pai. Outros, a mãe. Incerta avó bordará uma fralda de pano que ninguém usará.
2011 será um ano inesquecível. Ou quase.
13 comentários:
Amigo querido,
Que maravilha! As vezes o escritor Alexandre Brandão se supera e neste texto você foi em todos os ossos, até nos meus!Quanto talento fazendo indicadores de indústria pra essa corja de desumanos!!!
Beijos
Lili
Lili, você é uma graça, amiga de verdade. Te digo uma coisa: o fazedor de indicadores de indústria é o cara que sustenta o escritor Alexandre Brandão (esse vive de favores), portanto, não falemos mal nem dele nem da corja de desumanos.
A pedido de minha amiga, Maria Balé (leia suas crônicas em http://www.primeiroprograma.com.br/site/website/default.asp), coloco seu comentário à crônica.
"Alexandre, seu texto remete às 'Crônicas Marcianas' de Ray Bradbury, você conhece?
Essa aí, sou eu: 'Seremos arquétipos de deuses em desuso.'
E, please, quando souber da pílula que cura dor de amor perdido, avisa... Lindo texto! Feliz 2011!
Beijo marciano, Maria."
Xandão, podem não inventar a pílula contra as dores eternas, em 2011, mas vc acaba de inventar o remédio pra isso: é só ler o que vc escreve! Que lindo texto! Dos melhores que já li! Antológico! Obrigado!
Barretancha
Barretancha, meu nobre, só posso ficar feliz com seu comentário. Apesar disso, discordo dele: meu texto não cura dor de amor, ao contrário até, deixa a ferida mais sangrenta ainda... quer dizer, eu acho.
Obrigadooooo!
Caro Xará, sou seu leitor. Mas esse "Dois tempos" vale por dois. Cada um dos dois. Ou mais. Que beleza! Grande abraço. Que venham outros!
Xará Marino,
Você sabe que é um dos leitores que moram dentro de mim?
Quando escrevo, batuco na cozinha do pensamento: MR. Marino gostará? Agora que você sopra esse seu gostar aos quatro ventos ósseos, sabe o que faço? Não bebo, bem, você sabe, nunca bebo, mas me embriago.
Obrigado.
Adorei ter que pensar com este texto!
Gosto da ideia de repensar o pensado,rever filosofias de vida individual e social...
Vivemos numa vida de opsoos e contradições em q o principio maniqueista sempre nos põe em pelo de cordeiro. Seu texto faz cócegas em nossas falsas verdades, põe em xeque imposições sociais de conduta, além de ser propicio p pesar a temporalidade.
bjs :)
Paula, putz, tô até sem palavras. Fico feliz em ver que o textinho trouxe você à reflexão. Acho até que ele vai ficar todo prosa, mas sem perder a poesia jamais.
Obrigado pela visita. Volte sempre.
Não conhecia esse seu lado meio surrealista: Bonito, obrigada,
bjs e abraços
Andrea
Andréa, surrealista, é? Caramba, nem eu conhecia... Acontece. Obrigado pela visita. Venha quando quiser, o café está sempre servido.
Beijos
Xará,
Quanta coisa misteriosa se apresenta: você escreveu este texto pouco antes das catástrofes que se precipitaram dos céus, neste início de 2011, do tipo devastadora.
A data da publicação do texto em si só já é sinistra enquanto concreta, pois podem ser vistos qual chuva que cai: 11111.
E caiu.
Falou bem quem achou surreal.
Sob esta nova e condoída perspectiva, são prognósticos reduzidos à escombros, esmigalhados pela verdade que sobre eles caiu.
Para o ano que se iniciava; além da injustificável falta de advinhos e videntes, naquela hora nimguém sabia o que viria a seguir...
É surreal e ... não sei..., me fugiu a palavra. Foi arrastada pela violência da enxurrada. Ficou soterrada sob toneladas de lama junta ao tempo que passou.
abraços do xará.
Caro Xará,
Você, homem das imagens, viu o que ninguém viu, a chuva precipitando a partir da data (11111). É... estava ali... o que só aumenta a dor da tragédia que viria.
Abraços.
Postar um comentário