17.8.20

A luta de Emilinho

Se tem alguma coisa que o irrite é ser chamado de Emilinho, tratamento carinhoso que lhe grudou logo na infância e, deixando de ser carinhoso, continuou até depois de ele se tornar um respeitado jovem senhor. Onde já se viu? Tudo bem que o chamassem assim quando era pequeno, afinal de contas Emílio é praticamente sinônimo de circunspecção, qualidade que não se pode cobrar de uma criança, muito menos de uma espevitada feito ele.

Mas, chegado aos 12 anos, isso deveria ter tido um fim. Não teve no seio da família e, pior, contagiou a roda de amigos. Os que frequentavam sua casa ouviram e levaram para a escola, para o futebol. Ainda calhou de ter outro Emílio, bem mais forte e alto, na mesma sala de aula. Emílio era o forte; ele, Emilinho.

E aos 15? Mudança nenhuma, a coisa tinha criado raiz. Ah, Emilinho, me faz companhia. Pô, Emilinho, deixa de ser fominha, passa essa bola. Só faltou alterarem o nome no registro civil. Emilinho GM. Quanta crueldade.

Aos 18, começou a cobrar a mudança. Ao entrar na faculdade, apresentava-se como Emílio e Emílio ficou sendo até que reencontrou, na cantina, a antiga colega de ginásio, Célia; cursariam, naquele semestre, uma matéria eletiva para ambos. Passaram a ir juntos ao cinema, e um levou o outro para conhecer os amigos e, bem, Emilinho saiu da boca de Célia, entrou pelo ouvido de todos e ecoou na faculdade. Emilinho do Direito, isso, aquele crânio. Pois, diga-se a verdade, Emilinho era mesmo um crânio, estudioso e perspicaz. Só não queria ser esse “inho”, mas era “inho” que ele era.  

No estágio, foi Emilinho de cara, veja se um fedelho daquele seria outra coisa. E, se isso é possível, mais Emilinho ficou sendo à medida que todos reconheciam suas habilidades, seu potencial. Nossa, tão novo e tão capaz, eita, Emilinho. Contentava-se com o fato de, na formalidade dos tratamentos no Fórum, chamarem-no de Emílio GM.

A primeira namorada, que não foi a Célia, mas uma amiga dela, vejam só, Tininha, foi responsável pelo pior momento de todo esse imbróglio. Quando os dois chegavam para o chope ou à porta do cinema ou do clube, os amigos logo diziam que os “inhos” haviam chegado, que poderiam então dar início aos festejos, ou entrar na sala, ou mergulhar na piscina. O namoro não durou muito, e Emilinho se distanciou dos amigos para ser Emílio na vida.

Foi, de fato foi, mas não por muito tempo. Passou a ser chamado de doutor Emílio GM por clientes, juízes e advogados em tribunais, acrescido ainda de um vossa senhoria. Fora dali, Emilinho. Até mesmo a secretária — que, no início, cumpria todas as formalidades dispensadas ao chefe — não resistiu quando passou a ter uma segunda função na vida dele, a de namorada e, depois, de esposa. Primeiro nas saidinhas de final de tarde, depois nos primeiros beijos e nos folguedos com que brindavam os corpos, por fim, no próprio escritório, só o chamava de Emilinho. Às vezes, meu Emilinho, noutras doutor Emilinho. Há de se dizer que, apaixonado como nunca havia sido nem jamais seria, esse Emilinho saído da boca de Maria Adelaide soava diferente, nem lhe feria o brio.

Eis que chegou a paternidade, e era hora de dar um basta naquilo. Ninguém é filho de Emilinho. Bilu, bilu, teteia, minha princesa Odalea, este aqui sou eu, seu papai, Emílio GM. A neném deu aquela babadinha típica dos bebês, apertou o dedo do pai e, no que não foi percebido, piscou com ironia os lindos olhinhos. Aos dois anos, chamava o pai de Linho; aos quatro, de Lilinho; aos 15, de monsieur Milinho. O pai morria pela filha, única, soberana, e só via amor em tudo.

A última de Emílio, façamos seu gosto e o chamemos assim, foi pensar que, se na vida comum a coisa fugira de seu controle, no mundo virtual, relativamente novo, em construção, ele poderia fazer-se Emílio GM como de fato era. Criou perfil em todas as redes com um maiusculíssimo EMÍLIO GM. Inteligente, planejou uma estratégia para aparecer. Nadando numa onda que surgia, fez de seu perfil um destilador de falsas acusações a políticos que insinuavam alguma preocupação social. Eram todos comunistas, ateus, inimigos da família.

Sucesso. Sucesso absoluto. Sucesso tão estonteante que em pouco tempo lá estava ele em manifestações conservadoras, às quais ia sempre com uma camiseta verde e amarela com um imenso EMÍLIO GM no meio do peito. O nome — mais que nome, marca — passou a ser gritado por todos e pintado em camisetas, que apareciam, manifestação a manifestação, aos montes. A glória. Mais que glória, milagre. Antigos amigos do então Emilinho, ao se reencontrarem com esse arauto do conservadorismo, passaram automaticamente a chamá-lo de Emílio. EMÍLIO GM. A glória.

Hoje, ao voltar de uma dessas aglomerações, EMÍLIO GM encontrou um bilhete assinado a quatro mãos, as duas de Maria Adelaide e as duas de Odalea. Nele estava escrito: “Emilinho, não gostamos disso em que você se transformou. Passar bem.” 

6 comentários:

Unknown disse...

Delícia de crônica.
Pior foi na minha época de ginásio em que um amigo nosso, por ter as pernas arqueadas, estilo cowboy, ser alcunhado de "cu entre parênteses". Como o apelido ficou muito extenso, a gente encurtou pra "cu". Sacanagem.

Dag Bandeira disse...

Maravilha! Ler essa crônica é um refresco nesses tempos sombrios. Uma pincelada de leve na política atual, ou melhor QUASE de sempre, aumenta a qualidade do texto. Eu mesma tive um tio (como diriam os mais antigos), que Deus o tenha, que era chamado de Neném até na hora da morte. Pode?

Edna Bueno disse...

Que delícia! Quanto se lê/ se vê nesse nome diminutivo/ letras maiúsculas, nessa transformação. Adoro suas crônicas, linhas e entrelinhas

Nilma Lacerda disse...

Nenhuma simpatia por Emilinho, menos ainda por Emilio, enquanto criação. Acho que o tipo nada acrescenta ao seu rico e instigante portfólio de autor. Não terá ficado verossímil, talvez. Ando cética, doída, meu camarada.

Unknown disse...

Eu gostei! Emilinho é um símbolo de muito do que vemos por aí hoje!

No Osso disse...

Obrigado pela leitura, pessoal. Nilma, você sabe que considero muito sua leitura, sempre, e não será diferente dessa vez. Em minha defesa, só diria que os três últimos personagens (Adolfinho, Augustinho e Emilinho... nomes sugestivos e não gratuitos) das três últimas crônicas são caricaturas, ou seja, a ideia é pintar o ridículo, não me preocupei tanto com a questão da verossimilhança.