Para o Matheusinho
Cansado do
trabalho usual, o japonês Shoji Morimoto inventou de vender sua maior
habilidade: "comer, beber (com responsabilidade, claro) e dar respostas
simples". Ele, a uma diária de uns quinhentos mangos, livre das despesas
de locomoção e alimentação, atende àqueles que querem companhia. Shoji fica lá
quieto, comendo e bebendo, e, a pedido e não passando disso, pode dar um adeusinho
numa estação ferroviária. Consta que tem faturado o suficiente para pagar as
despesas de casa. Se pudesse, eu o contrataria para ouvir suas respostas
simples, coisa rara neste mundo em que sobram respostas simplórias.
Há alguns anos,
havia lido sobre serviço similar, oferecido no mesmo Japão. Na reportagem,
enumeravam algumas demandas: alguém para se passar pelo pai num jantar com a família
da namorada; homem ou mulher para chorar um morto (nossas velhas carpideiras); uma
pessoa para, ao chegar a um bar, abordar o contratante assim meio por acaso, como
se fosse um desgarrado à procura de um amigo. A solidão também vai ao mercado.
Alguns amigos
de São Paulo me contaram que na firma na qual trabalhavam havia um sujeito bom
de conversa, verdadeiro sedutor, característica que dava a ele certa desenvoltura
no negócio. Descobriu-se com o tempo que era um mitômano. No dia de seu
aniversário, ele contratava um serviço para espalhar, pela rua da empresa,
faixas enaltecendo seu nome e deixar sobre a sua mesa de trabalho uma magnífica
cesta recheada de guloseimas, além de balões e fitas enfeitando os quatro cantos.
Havia até bilhete de quem enviava os mimos, alguém fictício. O espantoso para os
meus amigos paulistanos é que a estranha figura casou-se com uma juíza. Se era
sedutor, por que não haveria de se casar com juíza ou com quem quer seja? Difícil
é manter o casamento, mas ninguém nunca soube me dizer se foi o caso, pois o colega
pediu transferência, foi para o interior e não deixou nem endereço nem
telefone.
Quando, no
início dos anos 1980, eu e Carlos fomos à Bolívia, dentre as várias experiências
interessantes, uma me marcou de modo especial. Não sei se estávamos em Totora,
perto de Cochabamba, ou em Potosí. É provável que estivéssemos na primeira,
pois ali convivíamos com as pessoas do local e éramos convidados para visitar
suas casas. Numa cidade ou noutra, era um almoço, e eu, depois de me servir, não
havendo mesa e cadeira suficientes, fui para um canto do cômodo e me agachei.
Comecei a comer e em determinado momento percebi que todos me olhavam. Meu
espanhol era (e é) sofrível, então recorri à ajuda de Carlos, chileno, e soube
que todos estavam encantados com a minha posição. Não era comum uma pessoa ou
um homem de cócoras, ou de cócoras comendo, ou um não boliviano acomodar-se
daquele jeito na hora da refeição. Um montanhês de Minas não é um andino.
Na minha cidade,
havia os irmãos Máximo e Mínimo. O Máximo se chamava Máximo, e Mínimo talvez fosse
apelido. O primeiro, expansivo e mentiroso, conseguia, mal chegasse a qualquer
lugar, ficar rodeado de gente interessada em sua conversa interminável. O
segundo entrava mudo e saía calado, e entre uma coisa e outra, sentava-se na roda
que tinha seu irmão como centro e o ouvia, atentamente o ouvia. Numa síntese
rasteira, o Máximo era o máximo, e mínimo era o Mínimo. Um dia, eles sumiram da
minha vida, e, desconhecendo o paradeiro e o destino dos dois, só me resta
especular. Foram para Serra da Saudade, lá envelheceram e se esqueceram do
passado. O Mínimo virou barbeiro e o Máximo, jogador de truco a dinheiro. Pode
ser que hoje o Mínimo fale pelos cotovelos e o Máximo chore, inconformado com a
velhice. Talvez sejam solitários e tristes, ou, ao contrário, são eles que
garantem a alegria da menor — e de nome mais bonito — cidade do Brasil.
Em outubro de
1991, dois meses antes de minha filha nascer, por conta do trabalho, fui a Helsinque.
Estava sozinho e gostava de caminhar à toa depois do compromisso. Meu olhar
estrangeiro se espantava, por exemplo, com o fato de ninguém atravessar a avenida
sem carros quando o sinal estava vermelho para os pedestres. Uma bobagem de espanto,
principalmente diante de um outro que eu teria numa das andanças. Ao chegar a
uma praça, como se por encanto, o sol apareceu, atravessou a copa das árvores e
elevou a temperatura de dez graus para doze, não mais que isso. Uma mulher, que
ia à minha frente, sentou-se num dos bancos, tirou a blusa, o sutiã e deu-se ao
sol. O sol não ficou por muito tempo, e assim que ele se foi, a mulher se vestiu
e tomou seu rumo.
Na república em
que me hospedava em Freiburg, na Alemanha, o chuveiro ficava na cozinha e o vaso
sanitário, na área comum do prédio. Quando os moradores iam ao vaso, andavam
nus pelo prédio. Quando queriam tomar banho, despiam-se na cozinha, tivesse ou
não outras pessoas por lá — e, em torno da mesa, sempre havia amigos e amigas. Eu
tomava banho no descuido do sono de todos.
Esta crônica começou quando Matheusinho, ao ser questionado sobre por que havia feito uma coisa e não outra, respondeu assim: “Não tive tempo de fazer as duas ao mesmo tempo”. A frase pouco comum disparou meu circuito de associações e me levou às histórias recém-contadas. Sabe, gente, o cronista é, antes de tudo, um carro que só pega no tranco e, uma vez em funcionamento, tergiversa pelas ruas.
4 comentários:
Xandão, tervigesaste, enrolaste, e o melhor, agradaste,uma de suas crônicas atemporais, amei.Beijão da Hildinha(Nada de apelido, viu?)
Hilda Mendonça
Queria saber tergiversar assim. Que inveja! Vermelho
Histórias deliciosas, Xande! Até animou minha terça sem carnaval. Continue assim, tergiversando à revelia. Fazes bem. Saudades.
Hildinha, Vermelho e Branca, obrigado pela visita carnavalesca. Às vezes, contar uma história ou um punhado delas é tudo do que precisamos. É assim desde os tempos das fogueiras.
Postar um comentário