30.11.24

Na onda

Tenho um compromisso fajuto e injustificável comigo mesmo: evito as grandes aglomerações. Não estou dizendo só de não ir a grandes jogos, shows ou eventos. Fui ao comício das Diretas Já, aqui no Rio, a shows históricos no Maracanã – Sting e Rolling Stones – e no Nilton Santos vi, no ano passado, Roger Waters e acompanho de vez em quando o Botafogo. Se na minha juventude comparecia a tudo meio empurrado, agora só na força bruta. Uso com alguma liberdade a palavra aglomeração e a associo ao movimento que leva todo mundo a ler o mesmo livro, a ver o mesmo filme, a ouvir a mesma música. Nem li “O nome da Rosa”, do Umberto Eco, nem vi o filme inspirado nele. Não fui assistir ao Paul McCartney, nunca pisei no Rock in Rio. Tenho uma penca de exemplos dos quais não me orgulho. Sofro porque perco boas coisas e, pior ainda, por me ver numa postura bem elitizada. Um entojo de gente. Arre!

Mas não me furtei a pegar a onda do momento. Não, amigos, ainda não foi o último lançamento da Anita, uma figura bem interessante, mas cuja obra desconheço quase completamente. Me refiro ao filme do Walter Salles, “Ainda estou aqui”.

Não faz muito tempo, bati um papo com um amigo estudioso da atuação dos militares no nosso país, em especial do golpe de 1964. Ele me chamou a atenção para o fato de que muitos livros, filmes e séries voltados à ditadura e seus desdobramentos carregam um alto grau de manipulação e esgarçam a história para pegar o leitor ou espectador no contrapé emocional. Usam as artimanhas das novelas televisivas, quase sempre forçando a tinta de histórias românticas ou tentando levar o público às lágrimas. É um ponto a se considerar. De todo modo, tenho como leitura recente “O corpo interminável”, da Cláudia Lage, livro que, a partir das “descobertas” de um jovem casal sobre os estragos da ditadura na vida de seus antepassados, trafega pelo caminho distante do apelo sentimental.

Meu amigo Rafael Conde, cineasta de Belo Horizonte – onde tem havido uma cena audiovisual muito interessante, particularmente no polo de Contagem (de lá saiu “Marte Um”, de Gabriel Martins, talvez o mais conhecido, mas não o único bom) –, está percorrendo o país para divulgar seu mais novo trabalho, “Zé”, baseado em livro de mesmo nome, de Samarone Lima. O filme narra a história do líder estudantil José Carlos Novais da Mata Machado, um mineiro bem-nascido, que aprofunda a visão crítica do pai sobre o golpe e passa a viver, em péssimas condições e clandestinamente, a serviço do movimento de resistência. Ele acaba preso, torturado e assassinado pela ditadura. Rafael também não faz truque dramático para conquistar o espectador. Ele expõe, com habilidade cinematográfica, uma faceta daqueles tempos sombrios.

Comecei a falar do filme arrasa bilheteria do momento (ah, como é bom ter um brasileiro nesse lugar!), aquele que, vencendo meus tolos preconceitos, fui assistir, e me perdi. Não, não me perdi, só rememorava obras que revisam a ditadura e fogem ao dramalhão, numa espécie de elaboração de resposta a meu amigo.

Em “Ainda estou aqui”, o diretor teve a chance de fazer uma senhora novela mexicana da história da família de Eunice Paiva. Afinal é uma mulher que, com cinco filhos menores, teve de dar conta de viver sem notícias do paradeiro de seu marido – o ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Paiva –, um dia arrancado de casa e, soube-se depois, bem depois, logo assassinado pela ditadura. O cineasta, inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, passou longe desse caminho e, contando com pelo menos três interpretações fora do comum, de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro, enfrentou um dos piores momentos de nossa história dosando muito bem o drama pessoal e o coletivo. Sem apelação, nos dá a chance de mais uma vez reconhecer as atrocidades da ditadura, o que pode nos ajudar a vencer uma tendência brasileira de, em intervalos marcados, agarrar-nos a propostas autoritárias, inimigas do complexo convívio democrático.

Foi assim que inventamos um caçador de marajás na reta de largada da democracia; quando esta parecia estável, saímos pela rua pedindo para prender todos os corruptos. Bem-intencionados e inocentes, caímos na esparrela desse discurso que não para em pé. O movimento nos levou a um governo incompetente, desatinado e, soubemos há pouco, não só inimigo da democracia, mas também capaz de fazer qualquer coisa para jogá-la no esquecimento, inclusive matar os candidatos vitoriosos da última eleição e um juiz que segurou na careca as investidas antidemocráticas. Teremos aprendido? Não sei, mas o público dos filmes do Walter e do Rafael ou os leitores da Cláudia criam um calo, ficam esperto, não caem em conversa mole de quem vira as costas para a ciência e cultiva o ódio.

16.11.24

Avisos

Os muros falam, isso qualquer um vê ao andar nas ruas de cidade pequena ou grande, no Brasil ou fora. Minha amiga Nilma Lacerda coleciona essas falas, reflete sobre elas.

Gosto especialmente de uma para a qual já dediquei uma crônica: “Não fui eu”. Ao lê-la pela primeira vez, numa parede de Botafogo, meu bairro no Rio de Janeiro, fui imediatamente arremessado àquele período entre a infância e a adolescência, quando já não temos a inocência daquela nem a pretensa sabedoria desta. Enfim, naquele momento em que eu e meus amigos não passávamos de uns bobocas, muito mais do que continuamos a ser (me curvo ao lugar comum de que não há pós-doutorado que arranque de mim e de todos os representantes do gênero masculino a sétima série). Normalmente o não fui eu era a mentira dita por um dos amigos que deixara escapar, por distração ou de caso pensado, uma fedorenta ventosidade. No muro, não sei se inspirado nessa bobagem, o registro escancara uma característica muito brasileira, a de ninguém querer se responsabilizar por nada. É triste, mas, vamos lá, nem tão verdadeiro assim.

Venho reparando, recentemente, não na voz anônima das ruas, mas em avisos de origem clara afixados por aí. Por exemplo: no banheiro lá do trabalho, há vários papeizinhos nos lembrando que: não se deve urinar no chão nem jogar papel higiênico no vaso; é obrigatório dar descarga; é inaceitável deixar a torneira aberta. Gosto muito de um: “Por uma questão de educação e respeito, mantenha a porta fechada”. Imagino que a escolha por essa linguagem solene responda a uma crença de que as pessoas obedeçam a esse tom e não a outro. Não vou discutir isso, mas mães e pais mandam um verbo mais direto: “Tranca a porcaria dessa porta”. Enfim, num ambiente de trabalho, é melhor ser cortês.

Usamos banheiros todos os dias, e, se em nossas casas prezamos a higiene e nos comportamos dentro do que é esperado, então os banheiros públicos deveriam prescindir de avisos que bisam, de fato, as regras básicas da civilidade. (Antes de prosseguir, deixo anotado: para muita gente, água encanada, banheiro e esgoto são um sonho.) A existência desses bilhetes mostra que, no ambiente comunitário, agimos como feras. Que se danem os outros, não fui eu, mesmo que tenha sido. Comportamento triste, uma demonstração clara do que somos na vida cidadã, quer dizer, não cidadã.

A minha experiência diz que, apesar dos bilhetes – às vezes pequenos, tímidos, às vezes em letras garrafais –, os banheiros, no final do dia, estão pela hora da morte. Todos os avisos foram descumpridos. Não se deu descarga, a urina tomou conta do chão, as toalhas de papel usadas ocuparam não só a lixeira, mas também o mármore da pia, o piso, o vaso, o mictório. No sanitário masculino – não sei como é no feminino –, os bilhetes não se criam, são um borrão na arquitetura que, nas entrelinhas, mesmo as inexistentes, documentam parte de nosso fracasso.

Esses dias fomos tomar chope eu e quatro amigos, três escritoras (uma vive fora do Brasil) e um escritor. Não nos víamos havia um tempo. Aliás, a moradora de Portugal e uma das que aqui vivem se encontravam pela primeira vez. Essa distância não tem nos impedido de manter uma troca intensa e honesta de nossa produção literária. O mundo virtual, cheio de perigos, permite aproximações como esta. O importante é que fomos tomar chope e a qualquer instante teríamos de, como se diz, tirar a água do joelho. Chegada a minha vez, um pouco antes de abrir a porta e correr ao mictório, me deparei com a reprodução de um documento timbrado, afixada numa parede lateral. O aviso não tinha a ver com normas de higiene voltadas aos cervejeiros. Está ali, porque, a meu juízo, o cômodo amplo que antecede o banheiro convida a outros usos. Em cópia ruim, lê-se: “Proibido dormir neste local. Administração”.

Nesse caso, não vejo um transbordamento de alguma de nossas mazelas sociais, me parece, isso sim, que é comum alguém se deixar ficar naquele lugar. Pode ser um bêbado, um morador de rua, um trabalhador longe de casa, uma pessoa que não quer mais voltar à vida de sempre. A administração deveria rever a norma, acolher essa gente.




4.11.24

Nudes literários

 

A neta

Escamoteada, fazendo-se de boba, de quem estava ali distraída, lendo um livro, olhando a janela, a neta devorava a avó fazendo crochê. As mãos manufatureiras pareciam determinadas, incapazes de um vacilo. Pareciam, não, eram. Coisa mais linda dessa vida. De vez em quando perguntava alguma coisa sobre o planejamento daquela passadeira, daquele colete, da peça em desenvolvimento. A avó dizia que tudo ia brotando na cabeça aos poucos. Decidia começar pelo ponto corrente, depois via que cairia bem uma parte central em picô, do qual sairiam outros pontos. Aí sentia que estava iniciando um enfeite de almofada, uma touca de frio, o que fosse. O importante, reforçava, era, na composição, perseguir o equilíbrio. Sob essa influência, a neta, tímida e atenta, começou a crochetar uns versos, de início baseados naquelas cenas cotidianas, depois, fora do ambiente domiciliar, fixando-se nas coisas da natureza e nas urbanas – a angústia dos carros, a tristeza do asfalto, a neurótica solidão da única árvore da rua. Havia em tudo a lição da avó: os poemas não poderiam ser livres, insubordinados, ao contrário, seguiriam uma receita (ainda que introjetada), no caso, as formas rígidas. Tornou-se uma sonetista deslocada, antiquada, que nunca seria reconhecida. Aliás, isso nunca a frustrou, empenhava-se em tecer, em palavras, coletes ou echarpes para frios domésticos.




 

O belo

Os poetas são muito asseados: banham-se, escovam os dentes e tiram o excesso de cera do ouvido. Às vezes se acidentam, é preciso correr a um pronto-socorro para extrair o algodão que ficou preso ao canal auditivo, ou quase lá. Mas isso é raro, assim como é raro – é conhecido um caso – o poeta, depois da limpeza do ouvido, usar a cera para lustrar os dentes.

O compromisso com a higiene é tão arraigado que se repete à exaustão a seguinte máxima: de sujo bastam os versos. Talvez por isso, ou seja, por coerência, todos os versos escritos sejam imundos. Enaltecem de forma magnífica o lixo, a lama, o pus, o excremento. Impactados, os patrícios, fiéis leitores, súditos de certo modo, se utilizam dessa poesia para definir o belo.






Marcas de leitura

Pagou um bom dinheiro pelo parecer da escritora de nome, frequentadora de festas literárias, detentora de importantes prêmios. Pagou bem mais que um bom dinheiro, recorreu a um consignado a ser quitado em noventa e seis meses. O retorno de sua autora predileta seria o empurrão a levá-la adiante, a chave do mundo encantado.

Seis meses depois, um e-mail de poucas linhas: “Seu livro tem potencial, trabalhe as passagens, retoque um pouco a personagem da mãe. Sugiro que leia Virgínia Woolf”. Cada palavra lhe custou um salário-mínimo. Cada palavra lhe custaria meses e meses – oito anos – de desconto na folha de pagamento. Palavras opacas, genéricas, anódinas. Valeria uma reclamação comercial, mesmo tudo tendo sido feito na informalidade? Expunha a parecerista em rede social? Enfiava o rabo entre as pernas e deixava de ser besta?

Passados uns dias, novo e-mail: “Esqueci de lhe dizer, o título é bem ruim”.




 

Distração

Andava na rua com uma pergunta martelando a cabeça: pra que você escreve? Por que escrever? Era melhor não ter se metido nisso, mas foi uma força avassaladora que a pegou no contrapé da passagem da infância para a adolescência. Uns amigos foram se drogar; ela, escrever. E ler. E escrever. Por que você escreve? O que a escrita lhe traz? Nem tudo se explica. Ela não criou uma personagem de si mesma, a escritora que sabe tudo. Escrevo para mudar o mundo. Escrevo em nome dos desvalidos. Escrevo para levar conforto ao leitor. Nada disso, escrevia e ponto. Comer, escrever: necessidades orgânicas. Mas quem entenderia isso? O mundo só quer saber daquilo que surge com uma intenção. O mundo é nutrido de certezas. Caminhando assim distraída, perdeu a chance de ver um neném, no colo da mãe, fazer um bruuuuuuu, babando-se todo. Perdeu a chance de ver a vida principiando.

 



A pequena alegria

Comprou o jornal de domingo, sentou-se no café. Na sessão de cultura, uma resenha de seu primeiro livro. Um petardo sem dó, que não deixou nada em pé. Pouco importava, estava no jornal. Foi o domingo mais feliz da vida.




18.10.24

Japona de napa

 Depois que as editoras independentes, pequenas guerreiras, passaram a armar suas tendas em Paraty durante os quatro dias da festa pioneira, pode-se dizer que a Literatura definitivamente hospedou-se na cidade histórica. Aos best-sellers, inclusive ganhadores do Nobel, aos que têm agentes literários e bons contratos, aos que disputam espaço nas livrarias e academias, junta-se a plêiade dos que correm por fora, alguns almejando pertencer à elite, outros menos preocupados com isso. De uns tempos para cá, Paraty tem lá sua diversidade a despeito de os proprietários da festa inventarem moda. Este ano tentaram – por sorte, sem sucesso – proibir as pequenas editoras de venderem seus títulos. Em uma ação deliberada em prol de algum grande grupo, como se fosse preciso, uma festa literária impedir a venda de livros, a estrela do evento, é um acinte, um ataque, quiçá um haraquiri.

Enfim, no Dia das Crianças deste ano da graça de 2024, a Literatura estava em Paraty. Eu não. Como sou parte desse mundo, se estou lá, ocupo meu espaço, se não, deixo de pertencer a ele. Assim como ocorre com qualquer famosão ausente. Isso não é lamento, é matemática. Se, nesses dias, não posso dizer que sou um escritor e que não largo as mãos da Literatura, tenho de me conformar. No entanto, segredo aqui o que aconteceu desta vez: quando a madrugada recolhia os últimos boêmios em Paraty, a Literatura batia suas asinhas, fugia momentaneamente de lá e cantava na árvore do meu prédio. Nesses momentos, dei-lhe de comer.

Um jeito de alimentar esse pássaro, ora corvo, ora pintassilgo – mas nunca pombo, nem o da paz –, é pensar na vida. Ter saudades. Cutucar o passado. Mister Brandão, o que o senhor fazia no glorioso ano de 1966? Decerto não estava preocupado com o terremoto no Usbequistão. Nem com a independência da Guiana Britânica. Pode ser que, metido entre meus irmãos mais velhos, ouvisse “Revolver”, lançamento dos Beatles daquele ano, embora só viesse a ser um beatlemaníaco (nem tanto) algum tempo depois, não com meus cinco aninhos. Tampouco me preocupava com os atos institucionais da Ditadura Militar. Em 1966, minha gente, eu batia bafinha em frente ao Cine Roxy. Aprendia a andar de bicicleta sobre os paralelepípedos do Beco dos Aflitos. Chutava bola em qualquer canto. Dava tiros de espoleta. Confesso: namorava. À porta da casa dos avós de minha namorada, ela e eu nos sentávamos e conversávamos, não passando disso nosso namoro. Eu pousava como um herói capaz de enfrentar qualquer monstro, humano ou não, ela dava trela, gostava. Não sei como o namoro acabou, mas, taí, fomos felizes.

Lembro de mim de calça curta. Calça curta não era só um jeito de nomear o short, mas o corte e o tecido usados na sua confecção se assemelhavam aos de uma calça, só que curta. Eu andava com essa roupa e cabelo penteado para o lado. Naquela época havia muitas regras. Cabelo repartido de um lado para os meninos, do outro para as meninas. O cinto também deveria ser inserido da esquerda para a direita, na calça dos rapazes; o contrário, na cintura das moças. Como foi possível sobreviver a tanto? Olho alguns religiosos atuais e tenho a impressão de que estão naquela mesma batida, com um agravante: seus pastores estão no poder. Bem, a Igreja Católica estava em 1966, esteve desde priscas eras, está agora e estará amanhã. Nos meus cinco anos, as calças eram curtas, minhas ideias igualmente curtas e o mundo já se esmerava em ser um rascunho posto em pé sobre um lamaçal.

Cinquenta e tantos anos atrás, fazia muito frio na minha cidade. Logo cedo, mamãe olhava o termômetro pendurado do lado de fora da casa, perto da cozinha. Um dia, ali pelas seis e meia da manhã, ela me mostrou: zero grau. Destemido, tomei o rumo da escola. Vestia uma japona que podia ser usada dos dois lados. Era chique. Espere um pouco, eu não tinha mais cinco anos, talvez oito. Já cultivava alguma vaidade, como a de me exibir naquela japona. Ainda existe japona? Sumiu do mundo como a calça curta. Que garoto bonito cruzava as ruas, coberto pela peça de napa. Isso, amizade, era de napa, ou seja, uma combinação de poliéster e poliuretano. Não sinto falta do casaco sintético, até condeno seu uso, mas sinto saudades de trajá-lo – apesar de proteger pouco do frio (por baixo da camisa do colégio, metia uma peça de lã) –, de me sentir tão ajeitadinho, de acreditar na vida. Havia visto um homem descer da Apollo 11 e andar na Lua. Aquilo me dava esperança. Não pensava nesses termos, é verdade, mas que coisa fenomenal, que capacidade de irmos tão longe. Como éramos inteligentes! Somos. Dia desses saíram os ganhadores do Nobel de Física, Hinton e Hopfield (no Brasil, formariam uma boa dupla sertaneja, universitária, por suposto), um britânico, outro americano, ligados a pesquisas que abriram campo para a Inteligência Artificial. Um deles disse que, como todo avanço, a IA tem o lado bom e o ruim. A gente sabe disso, a humanidade aprendeu isso, mas a Rússia solta bombas na Ucrânia; Israel, menos por justiça, mais por vingança, bombardeia Gaza e Líbano. Maldição. Que saudades da japona sem avesso, do menino que ia dentro dela.

– Ó, Lítero-pássaro, está bom assim de alpiste ou quer mais, seu faminto?

– Nevermore.

7.10.24

Um passeio à praça inexistente

Há trinta anos, não se encaminhava à editora o texto do futuro livro em arquivo, nem se recebia ao final da revisão o PDF enviado à gráfica. Sendo assim, com o objetivo de organizar meu primeiro livro, “Contos de homem”, lançado em dezembro de 1995, obriguei-me a digitalizá-lo, tarefa que levou um ano, um ano e meio. A sorte é que essa operação, para quem não tem pressa, pode ser feita com um celular e uma ferramenta de uso descomplicado. Basicamente fotografa-se a página, que de pronto é transformada em texto. É preciso corrigir alguma captação imprecisa, mas funciona.

Com os vinte e quatro contos à mão e tomado por um espírito crítico, resolvi revisá-los. Quem faz esse trabalho é um sujeito com mais de trinta anos dedicados à literatura, o que não é uma garantia de qualidade, pois não necessariamente me tornei um escritor melhor, embora tenha hoje mais consciência do que faço. Nessa empreitada, me pergunto se, num possível relançamento, descartaria alguma coisa. Minha resposta é não. Mesmo não gostando de alguns contos, vendo que houve os que envelheceram mal, deixaria o livro exatamente como está, afinal é o reflexo do homem de trinta e quatro anos que eu era, do qual não me envergonho. Apesar disso, faço pequenos ajustes aqui e ali. Um necessário: corrigir os erros.

A andança pela praça inexistente começa ao corrigir os erros. Quando lancei o livro, enviei-o a Manoel Lobato, escritor mineiro, já falecido. Eu o conheci por intermédio de minha irmã Patrícia, ambos trabalhavam na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Lobato me deu grandes aulas – sem estar vestido de professor. Seus apontamentos são primorosos e, mais que isso, homem de controlada vaidade, altruísta da melhor estirpe, sua conduta era a de um escritor e intelectual exemplares. Recebi suas anotações, indicando erros de digitação e uma ou outra escorregada gramatical e tecendo alguns elogios, em carta, que, passado um tempo, fotografei. O resultado ficou bom, está legível, mas faltam o cabeçalho, a saudação e a despedida. Fui então procurar o original com o objetivo de refotografá-lo e juntá-lo ao material que está na pasta do livro – além dos contos, os arquivos do prefácio de João Gilberto Noll e da orelha de Nelson Vasconcelos, e as matérias de Bernardo Ajzenberg (Folha de São Paulo) e Duílio Gomes (Estado de Minas). Até agora não achei, mas...


Imagens do caderno de Haydée


Na caixa onde guardo essas coisas, encontrei fotos antigas – umas 3 x 4 de amigas, namoradas adolescentes que mal me davam a mão –, desenhos dos filhos, uma Placar de 1989, quando, depois de uns vinte anos, o Botafogo sagrou-se campeão carioca e meu filho mais velho, que se tornaria um botafoguense fiel, nasceu. Ainda do pequeno museu, um caderno de recordação de minha mãe em formato de livro, capa aveludada e seu nome escrito, com falhas, em letras douradas. Folheio o caderno. No início, algumas páginas em branco, depois amenidades que seus colegas escreveram em dois momentos. Em 1938, quando ela morava em Belo Horizonte – uma das colegas a chama de carioquinha por conta de minha mãe (nascida em Ponte Nova, Minas) ter vivido no Rio antes. De 1939 até 1941, período em que ela estava de volta ao Rio, estudando no Bennett. Os amigos registravam o que já foi tão comum entre os jovens: declaração de amizade eterna, transcrição de poemas, elogio à dona do caderno. Reproduzo a primeira coisa escrita ali: “Todos os homens são mentirosos, traidores, hipócritas e petulantes; todas as mulheres vãs, artificiais e pérfidas, mas há no mundo algo de sagrado e sublime – a união dessas duas criaturas imperfeitas”, uma citação (não consegui confirmar a autenticidade) de Musset – escritor francês do século XIX – feita pela amiga Yóle Sotomaior (se bem desvendei a letra) em dois de setembro de 1940. Há de se dizer que as entradas não respeitam uma cronologia, a essa primeira seguirão outras de 1938, 1939, 1941. Apesar da confusão temporal, é bom saber que aquelas meninas de dezessete anos lançavam um olhar crítico sobre o mundo, sem – o que já não sei se é bom ou ruim – desacreditar na harmonia da vida conjugal.

A partir de um ponto, somem as intervenções dos amigos, e minha mãe se dedica a transcrever poemas e pensamentos. Poetas brasileiros – Vicente de Carvalho, tio-bisavô das queridas Rezende, a escritora Maria Valéria e suas irmãs Viviana e Valentina, é um dos mais presentes – prevalecem sobre os demais, ainda que, no caso dos pensadores, sejam os gregos e os franceses os mais citados. Ela registra de Victor Hugo: “O riso é um camarada às vezes tão útil como o saber”. Desta vez, minha pesquisa confirmou a fonte, ainda que, recorrendo a uma inteligência artificial, tenha encontrado a frase um pouco distinta: “O riso é o começo da sabedoria”. Preciosismos à parte, minha mãe cultivou o riso, mesmo escondendo-o nas muitas horas bravas da vida.

Na noite que sucedeu meu contato com o caderno, sonhei com mamãe. Mas antes com a Patrícia. Encontrava minha irmã nas escadas do prédio onde moro. Era tudo tão alegre, bem poderia – e pode – ser verdade. Depois aparecia minha mãe. Na realidade, uma mulher sem nenhum de seus traços – nem de ninguém que eu conheça –, dizendo-se minha mãe. Não sei, acho que hackearam as redes sociais do céu ou dos sonhos. Há uma impostora no lugar da dona Haydée.


21.9.24

A porta

 

Logo de manhã, um amigo me envia o link de uma matéria em jornal que não assino, portanto, não consigo ler. Acesso a manchete: uma carioca foi eleita Miss Vagina. Soube ainda que foi o segundo ano do concurso e que as pretendentes se inscrevem diretamente.

No mundo que exalta a simetria, lábios vigorosos, de coloração suave e encerrados em um desenho harmonioso devem ser os aspectos apreciados. Isso se um discípulo de Picasso – e aqui não há segundas intenções de um menino da quinta série – não pertencer ao júri. Os cubistas, sabemos todos, veem beleza na assimetria.

A existência de uma disputa assim abre a possibilidade para que também entrem em concorrência o pênis, o dedinho do pé esquerdo, a nuca, o M da mão. Não a bunda, que tem seus milhares de concursos diários, oficiais, oficiosos ou frutos de solitárias fantasias. Muito menos a bunda da mulher farta de tanta objetificação. Hoje, não somos nós que desejamos a bunda da Anita, é a bunda da Anita que nos deseja (ou não). A bunda tem poder. Talvez, por isso, se busque, em concursos nos quais a candidata se aceita como puro objeto, carne fatiada sobre a mesa – comum ou ginecológica? –, a beleza oculta e menos óbvia.

A medida perfeita sempre foi um requisito perseguido nos concursos de misses. Aliás, isso marcou essas disputas no Brasil, já que nossa primeira Miss Brasil, eleita em 1954, a baiana Marta Rocha, teria perdido o título de Miss Universo por duas polegadas a mais no quadril. Ao que parece, tudo não passou de uma invenção de um jornalista, e o motivo da derrota seria outro. Seja como for, nas competições tradicionais, é valorizada também a vida social da candidata, com especial atenção ao modo como se distrai. Todas leem “O Pequeno Príncipe”, então, pesa na avaliação se o leem deitadas, sentadas, em pé; se atentas apenas ao texto ou, ao contrário, só às ilustrações; se leem tudo ou saltam páginas. Enfim, a beleza é um dos pontos observados. Já à Miss Vagina não se pergunta nada. Imagino que nem o rosto se revele, pois conhecê-lo adulteraria o espírito julgador ou o faro de quem julga. O faro seria outro fator a perturbar a neutralidade, logo é melhor desconsiderá-lo até em seu uso figurado.

Com o avanço da tecnologia, antevejo prêmios para os órgãos internos. Teremos em breve a Miss Fígado ou o Mister Rim, a Miss Intestino ou o Mister Baço, além dos genericamente exclusivos Miss Ovário e Mister Próstata. As possibilidades são inúmeras. Carótidas, corram à academia, malhem o bíceps, estejam prontas.

Esta crônica passeia entre a falta de noção e o devaneio, com pretensa e destemperada ironia. Tento corrigi-la conjecturando o real significado de um concurso como esse vencido pela carioca. Podemos pensar em narcisismo exagerado, ou, como já disse, em sujeição máxima a um machismo ultrapassado. Mas também pode ser que, à moda de um personagem bukowskiniano, só queiramos voltar ao útero, à origem, abandonar essa vida cheia de boletos, guerras, desastres ecológicos e luz, excessiva luz. Como nos conforta a beleza, estamos à procura da porta mais atraente para esse retorno. Se é assim, fiat tenebrae.

 











9.9.24

A leveza do ser já era




Como o silêncio não entra na prioridade das políticas públicas, os ônibus continuam fazendo seu barulho metálico nas ruas. Aliás, quais seriam essas prioridades? Ninguém discute. O que vemos por aí são candidatos vestidos da antipolítica agarrados a um humor de baixo nível, o que parece fundamental para angariar votos. Saudades do macaco Tião, voto de protesto, sim, mas incapaz de entregar a coroa aos patifes que a querem só para si.

Atualmente, novos patifes. Ou canalhas. Gosto tanto desta palavra. Salve Nelson Rodrigues, um de seus cultuadores. Volto ao raciocínio. Os novos canalhas não querem apenas roubar o erário, mas, em nome – e só em nome – de não roubar, anseiam destruir o que é público. E por razão nenhuma. Quer dizer, alguns candidatos não têm a menor ideia do que querem. São eficientes em manipular o mundo virtual, embora ideologicamente não passem de títeres em mãos para lá de gananciosas e poderosas. E só. O presidente anterior foi o que foi, um desastre. Mas isso não parece depor contra ele e seus seguidores amestrados. A cidade de São Paulo corre o risco de ser entregue a um sujeito que, na pele de um coach, meteu seus seguidores numa fria, perdidos na floresta. Não fosse o corpo de bombeiro. Mas ele, se chegar à prefeitura, acabará com o corpo de bombeiro. Quer dizer, acabaria, caso fosse de sua alçada. É a turma do incêndio. Dos que aumentarão o subsídio aos que investirem no barulho metálico dos ônibus e promoverão o fim das campanhas de vacinação. Dos que permitirão a volta dos cigarros em ambientes públicos fechados. Tudo em nome de Deus, contra o qual, desconfio, lutam, pois, não sendo nem ateus nem agnósticos, estão na trincheira do diabo.

Disse a uma amiga que sou um cara leve. É verdade, as coisas estão ruindo – pessoal ou socialmente – e estou fazendo graça, fiel à ironia. Aprendi a ser assim. Meu pai e o mundo em torno dele eram assim. Paciência. Mas ultimamente transpus a fronteira. Piso agora o solo do pessimismo (não ainda o do mau humor). Os ônibus continuarão a fazer seu barulho metálico, às nove da manhã, às três da tarde, às dez da noite e, quando passam, em plena madrugada. Que se dane o sono dos justos e dos injustos. O meu, antes tão profundo, hoje com o pé na insônia, não é interrompido pelos ônibus, pelos tiros nas comunidades mais ou menos perto – nas quais, devo confessar, os conflitos não têm sido tão comuns –, pela saída noturna do filho, pela cirurgia que a prima fez, pelos perrengues dos amigos e os meus. O meu sono picotado responde ao fato de minha leveza ter ido para o vinagre, e com ela lá vai indo minha saúde (não se assustem, por enquanto é uma metáfora).

26.8.24

Uma semana de cão

 



Para Helena e Luan


Helena e Luan viajaram, então passei uma semana cuidando da Kira e do Yuki, os cachorros que me conhecem como seus auvô. Fomos felizes, creio, ainda que eles parecessem melancólicos e donos de um vazio evidente. Como também mergulho em poça nem rasa nem funda, fomos felizes também por compartilhar, em silêncio, nossas garatujas existenciais.

Em minha casa, no interior de Minas, sempre houve cachorros. O que marcou minha vida foi o que temia tanto a água quanto a palavra água. Era só dizê-la para o Zorro sumir do mapa. Nunca tomou um banho que não fosse dado pela chuva, da qual não tinha como fugir, pois não frequentava o interior da casa, vivendo no seu, e todo seu, quintal. Assim, o corpo a corpo com meus aunetos foi um aprendizado e me obrigou a me desvencilhar de preconceitos. Os dois dormiam ao meu lado, às vezes me fazendo de travesseiro. Aí está uma ideia a se pensar: nascemos, crescemos, formamos família e, não mais que de repente, nos transformamos em travesseiros. Num mundo em que muitos mal conseguem abrir ao afeto um mínimo espaço dentro de si, não é ruim ser um travesseiro – para cachorro ou não.

Durante aqueles dias, aqui e ali torcia por nossas equipes nas Olimpíadas e, final do dia, início da noite, via ou revia filmes. Houve uma certa decepção com a seleção feminina de futebol – quem ganha a medalha de prata perdeu o jogo final – e a alegria promovida pela dupla feminina de vôlei de praia. Entre as medalhistas de ouro, descobri Bia Souza (1), do judô. Só de olhar para ela, dá vontade de ser seu amigo, de compartilhar daquele sorriso esplendoroso. E principalmente de abraçar aquela mulher que, diante de um repórter sem noção que lhe pede, enquanto ela desce do pódio, uma opinião sobre Teddy Riner – o judoca francês que conquista tudo –, responde que o cara é bom, mas ela, com a medalha de ouro no peito, quer saber é de comemorar a própria vitória. Isso, garota, falo sozinho. Kira balança o rabo, igualmente solidária à Bia. Indiferente, Yuki rói o osso.

As disputas em Paris inspiraram vários memes. Ciscando um aqui, outro ali, cheguei a duas conclusões: não há vida sem memes e Minas está em alta. Graças à inteligência artificial, Simone Biles e Rebeca Andrade conversam, e a americana pede à nossa atleta que leve a Los Angeles, em 2028, um queijo brasileiro bom. Rebeca responde que tem amigos em Minas, que irá arranjar o melhor. Aí Simone comenta que na terra dela também falam uai, e a brasileira, meio surpresa, diz que jurava que sua adversária era mineira. Bobagens saborosas, que Kira e Yuki ignoram, preferindo, em momento de tédio profundo, partir para uma brincadeira mais vigorosa: encaram-se, avançam um sobre o outro, trocam mordidas e latem com ganas de calar o mundo. Com isso, quem não se anima sou eu e, depois de tentar sem sucesso repreendê-los, me abstraio daquela balbúrdia e vou preparar meu café das 16h, que não é boca de pito para aquele cigarrinho das 16h20m.

Sou daqueles que gostam de uma boa e velha sala de cinema, mas quem não tem cão, caça com gato. No caso, eu tinha cães, que, aliás, gostam de caçar pernilongos e não soube nem sei – por sorte – como fariam se, por acaso, um rato nos visitasse. Sendo assim, como se adentrasse uma floresta de raposas, na companhia de meus ferozes cães farejadores, explorei os streamings da vida.

Entre as revisões: “Terra estrangeira”, de Walter Salles e Daniela Thomas, se passa na época de Collor e me faz suspirar: “ah, o Brasil e seu habitual retorno ao abismo”; “Meia noite em Paris”, de Woody Allen, nostálgico e leve, dá uma chave de braço em nossa perspectiva: a utopia está no passado, quer dizer, esteve, ou seja, além de nostálgico e leve, um tantinho pessimista. “Encontro e desencontro”, de Sofia Coppola, é, como minha memória retinha, um ensaio delicado sobre a solidão. Por fim, “Priscilla, a rainha do deserto”, de Stephan Elliott, um filme com vinte anos e atual, é uma deliciosa ode à diversidade sexual, ali representada por duas drag queens e uma transexual.

Vi “Belfast”, de Kenneth Branagh, e “Clube de compra de Dallas”, de Jean-Marc Vallée, pela primeira vez. O primeiro é um olhar sobre a infância numa cidade que vai sendo tomada pelo embate violento entre protestantes e católicos. Nos créditos finais, o filme é dedicado aos que ficaram em Belfast, aos que partiram e aos que se perderam em meio ao conflito. E é isso que essa história de formação evidencia: não é covarde quem vai embora, não é herói quem fica e muitos se perdem, tendo ficado ou ido. O segundo, além de pontuar um momento tão cruel da história recente, o do surgimento da aids, mostra, sem panfletarismo, como a ciência e a indústria em alguns momentos defendem interesses próprios, nem sempre em sintonia com os da população. 

Se os memes não interessaram aos irmãos Kira e Yuki, os filmes, muito menos, ainda mais por nenhum deles colocar em cena um gato, um cachorro, peixinhos no aquário; um rato que fosse.


(1) Uma entrevista com a atleta, feita por meu filho, o jornalista Pedro Werneck, pode ser vista aqui.

12.8.24

Longe do algoritmo

É dada como certa a leitura de nossa mente pelos algoritmos.

Já não é surpresa que, depois de pesquisar sobre um produto, suas propagandas brotem em todo canto da internet a que se vá, das redes sociais à caixa do correio eletrônico.

Cogita-se que as conversas em torno dos celulares sejam ouvidas e associadas a mercadorias condizentes com elas, que são logo oferecidas à roda de amigos. Troca-se uma ideia sobre fotografias de infância e, ao acessar a internet, estão lá vários modelos de câmeras (hoje embutidas em celulares), scanners para digitalizar fotos antigas e espaços em nuvem para armazenamento de arquivos. Não falta ainda, para adular os fiéis ao mundo tátil, uma série de links para a aquisição de álbuns físicos e endereços onde fotografias ainda são reveladas, quer dizer, impressas.

Pincelei as consequências comerciais, mas há possibilidades políticas e de espionagem, além, claro, do treinamento da inteligência artificial, um mundo em expansão. Sugiro, como fazem os políticos – não sei se estou, ao contrário deles, sendo inocente –, desligar o celular quando for tratar de assuntos sensíveis ou desfrutar de momentos íntimos.

Temos chamado essa situação de coincidência, o que não é. Está mais para uma intromissão na vida privada, uma invasão violenta, inclusive. A coincidência, de fato, acontece no mundo real e existe desde sempre. Quem não tem uma história para contar?

Ao lançar meu primeiro livro, “Contos de homem” – que no ano que vem completará trinta anos –, fui convidado para uma conversa em uma faculdade em Belo Horizonte. Fiz uma fala e, em seguida, os alunos, a partir da leitura de um semestre, teceram comentários, encenaram algumas das histórias e ainda me entregaram pequenas cartas escritas sob o impacto da leitura. Um troço lindo.

Um dia antes, havia ido ao cinema com uma de minhas irmãs. Na saída, tomamos um café ali mesmo, no saguão. Na mesa ao lado, duas mulheres conversavam, e certa hora jurei ter ouvido meu nome. Ficou por isso mesmo, já que elas não me reconheceram (porque não me conheciam) nem fui até elas saber se ouvira bem.

O evento ao qual eu iria fora organizado pela professora Marisa Fortes Ribeiro, amiga e colega de trabalho de minha outra irmã, com quem comentei sobre a impressão de ter ouvido meu nome. Num mundo sem internet, apenas no outro dia fui ter a confirmação de que, sim, falaram de mim. Quem estava no café era outra do trabalho, e ela comentara com sua companhia sobre a ida do irmão-escritor da colega a BH. Uma conversa trivial, acrescida de certa curiosidade sobre a figura dos escritores.

Li "A dor fantasma", de Rafael Gallo, livro bastante premiado. O personagem central, um pianista cuja carreira é cortada por conta de um acidente, é um sujeito egoísta, um pouco ridículo e de fato doentio – narcisismo patológico, segundo minha amiga Vânia Osório. Terminada a leitura, parti para outra, um romance de Simenon, "O burgomestre de Furnes".

Há muito tempo, ganhei – do saudoso Horácio, fã do escritor – dois livros de Simenon, o criador do comissário Maigret. Li um deles, uma das histórias protagonizadas pelo inspetor, e supus que o burgomestre também o fosse, mas não, ele é de uma outra categoria explorada pelo profícuo escritor belga, a do romance psicológico, se é que pode ser chamado assim.

Simenon, do mesmo modo que Gallo, coloca em cena um egoísta terrível, com o agravante de o seu prefeito ser poderoso, ao contrário do pianista do brasileiro. Ambos têm filhos com problemas mentais (a filha do burgomestre em grau maior que o filho do pianista). Ambos têm uma mulher com a qual a convivência é praticamente destituída de afeto (mais no caso de Gallo do que no de Simenon, ainda que este seja mais abusivo que o outro). O burgomestre tem mais nuanças que o pianista, é menos linear, mas considerações como essa fogem ao meu objetivo, que é apontar a coincidência entre os romances distantes no tempo em mais de oitenta anos (o de Simenon de 1939, o de Gallo de 2023) e o fato de eu, sem saber disso, lê-los em sequência.

Saquei da pilha que fica na mesinha de cabeceira uma coletânea com quarenta e sete contos de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio. No prefácio, Antonio Muñoz Molina diz: "Onetti, leitor fervoroso dos romances do comissário Maigret, conhece como ninguém um recurso admirável de Simenon, o das repetições de hábitos, lugares e gestos". Por encontrar os mesmos artifícios nos contos de Onetti, a literatura do uruguaio se avizinharia da de Simenon.

Fecha-se assim um ciclo de coincidências. Coincidência verdadeira, raiz – manipulação do acaso em nossa vida –, e não a forjada pelas mãos maliciosas que vêm dominando o mundo de uma forma nunca vista, o tal algoritmo.

29.7.24

Crônica numa hora dessas?

 Ao Xico Sá

Meu amigo Marco Túlio Costa me inventou como cronista em 2000 – quando ele foi editor da Gazeta de Passos, jornal que a família do antigo dono voltou a circular por algum tempo –, e, desde então, venho perseverando nesse gênero tão brasileiro. É difícil ser cronista depois de Machado de Assis, João do Rio, Raquel de Queiroz, Rubem Braga, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Luís Fernando Veríssimo (de quem me servi ao dar título a essa crônica), mas é igualmente difícil ou, mais ainda, escrever, simplesmente escrever, depois de Cervantes, Shakespeare, Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar... O escritor é antes de tudo um cara de pau, e eu sou. Além de contos e poesia, tenho dois livros elaborados com crônicas publicadas em sua maioria aqui na Rubem.

Sinônimo de crônica é liberdade. Ela pode ter contornos poéticos, um jeitão de contos, pode até esbarrar no ensaio, tudo isso com pouca seriedade. Quer dizer, ela é séria, mas descompromissada. A crônica é uma melodia assobiada por acaso. Às vezes, é uma verdadeira assobiofonia. Às vezes, não passa de um vento sibilante.

Nada disso importa. Quer dizer, importa, mas não aqui e agora.

Quero ir por um caminho novo, de reflexão. O leitor pensará: quanta pretensão e ignorância. É verdade, a crônica não faz outra coisa que não seja refletir, ainda que, no mais das vezes, sobre as minudências da vida. Apaguem então essa coisa de caminho novo. A crônica é humilde; seus escritores, nem sempre.

É o seguinte: nós – os cronistas também – não tivemos uma vida fácil durante os quatro anos nos quais o Brasil foi governado pela extrema-direita – a onda não passou, bem sei, mas estou pensando na escuridão que se estendeu de 2019 a 2022. Na realidade, fomos sequestrados por aquela gente. Em vez de olharmos o passarinho bicando a cacunda de um pedestre de cabeça baixa atraído pelo celular, tínhamos de lidar com as mentiras criadas aos borbotões. Em vez de nos determos na conversa da mesa ao lado, subíamos pelas paredes com as pretensas piadas do despresidente. Em vez de acompanharmos a beleza juvenil do casal que andava balançando suas mãos dadas, engolíamos seco as estatísticas de morte pela Covid (uma bobagem, segundo eles).

Se eu fosse fazer o terceiro livro de crônicas, teria uma dificuldade adicional. Digo adicional porque um livro de crônicas sempre nos coloca uma dúvida: elas sobreviverão? No futuro – que pode ser imediato –, os possíveis leitores compreenderão o quê de poesia, de graça, de reflexão o texto carrega? Eis o perigo. Mas, depois dos quatro piores anos da vida pública brasileira pós-democracia, montar um livro com as crônicas daquela época pode resultar numa antologia mal-humorada, revoltada, chiliquenta: tudo que a crônica não é ou não quer ser.

O Xico Sá, por exemplo, lançou recentemente, pela e-galáxia, “Cão mijando no caos”, uma reunião de crônicas escritas ao sabor da indignação. A meu ver, o livro não sofre dos problemas que antevejo porque seu autor recorre ao humor, sem cair numa espécie de fuga, além de se valer de uma escrita rica, inteligente, surpreendente até. Xico Sá nasceu no Crato – uma das cidades do Cariri, Ceará – e, ao assistir a seus parentes receberem o canudo universitário, ouve os ecos do discurso de David Foster Wallace lido em uma formatura nos Estados Unidos. É nesse cruzar de mundos e referências que suas crônicas fogem do lamento, ganham estilo e se sustentam.

A julgar pela crônica-prólogo, Xico também se preocupou com essa coisa de reunir a escrita “daqueles tempos”. Começa assim: “O cão é a crônica da ressaca cívica”. Mais adiante afirma: “Em alguns momentos, o presente volume pode lembrar certos relatos de náufragos. (...) É simplesmente uma narração, quase radiofônica, de como sobrevivemos ao desespero”. É explícito aqui: “Contém, e fica a advertência, fragmentos do discurso de amor & ódio, além de um rastilho de ressentimento”. E esclarece finalmente: “Aqui estão os textos escolhidos para recontar esse tempo agonizante que durou um século. Na política, nos relacionamentos, nos costumes, no amor, no sexo, na falta de erotismo, na sacanagem propriamente dita”.

Quando olho o que escrevi naqueles quatro anos com peso de cem, na boa medida do Xico, não me parece que equilibrei os pratos tão bem quanto ele. Que “Cão mijando no caos” (título tirado de um poema de Drummond) fique como testemunho incerimonioso e lamúria contida de nossa dor coletiva. Vou olhar para a frente, sei lá, vai que passa aqui uma menina conversando com uma borboleta, que por sua vez conversa com um pernilongo, que por sua vez não fala nada, resguardando-se para os zunidos noturnos. Eu vivo melhor – e quem sabe escreva melhor – quando posso, sem culpa, voltar minha atenção para essas trivialidades.




13.7.24

Casa 11

Para quem não é do Rio de Janeiro ou está por fora, preciso dizer o que é a Casa 11. É um sebo. Começou como um sebo e, em seguida, passou a vender livros novos, portanto é uma livraria. Mas, antes mesmo de se materializar, foi pensada como um centro cultural. Logo é um centro cultural.

O espaço fica em Laranjeiras, a cem metros do Instituto Nacional do Coração, um hospital público. A história começa quando uma médica, num momento de folga, bate perna pelo bairro. Ela encontra, numa galeria antiga e aconchegante, uma pequena loja vazia, o que a faz se lembrar da livraria que manteve por longos anos em Santa Teresa. Nostálgica, volta ao hospital e comenta com outros médicos o ocorrido e os provoca: por que não abrir ali um sebo em sociedade? Poderiam formar o acervo inicial com livros que tivessem em casa e receber doações. O custo de manutenção da loja, por sua vez, seria cotizado entre eles. Logo havia um bom número deles disposto a embarcar no sonho. E não demorou muito para não médicos também se incorporarem ao grupo. Não sei quantos são ao certo, mas a Casa 11 tem mais de cem sócios (algumas cotas são compartilhadas por mais de uma pessoa).

Vai dar errado, vaticina a pessoa que tem na cabeça sociedades ambiciosas por lucro e eficiência, a métrica capitalista. Na Casa 11, não se busca o lucro, que, claro, vem. Basta vender um livro e há uma sobra, não é? Mas, no caso, essa sobra ou cobre os custos (que os sócios estão dispostos a bancar) ou se transforma em novas compras. Mais que vender livros, a ideia é movimentar a cena.

A inauguração foi um festão. Havia música, vinho, abraços, encontros. Vez ou outra, promovem festas e já são uma referência em matéria de lançamentos e mesas de bate-papo. Além disso, o nome passou a circular pela cidade, parou em jornais, enfim, a maioria das pessoas já sabe o que é. O antinegócio deu tão certo que alugaram a sala ao lado, a ser inaugurada em breve, provavelmente com festa.

Como se não bastasse, a Casa 11 promove eventos em outros lugares, como foi a recente Festa Literária de Laranjeiras, da qual falo em seguida. Antes pontuo que o tema do empreendimento nefelibata é “mais livros, menos farmácias”, uma cutucada no fato de que no Brasil as farmácias prosperam a olhos nus. A doença pode ser curada com leitura, contrapõe a sociedade dos médicos amantes dos livros.

Com esse espírito, a Casa 11 organizou a festa literária, na qual livreiros vizinhos (como os do Jacaré Livros) e um pessoal ligado à gastronomia se juntaram. As palestras privilegiaram a experiência com mediação de leitura em lugares normalmente excluídos dos investimentos culturais, as favelas, em particular, deram destaque à literatura indígena e, fiel ao slogan, à relação entre saúde e literatura. Ainda que um amigo tenha criticado a ausência de referência a escritores locais – Machado de Assis, do Cosme Velho, bairro adjacente a Laranjeiras; Sérgio Sant’anna, de Laranjeiras, entre outros que têm os pés no bairro –, o que é uma boa observação, isso não diminui o caráter inovador da proposta.

Passei por lá, embora não tenha podido ficar muito tempo. Vi a mesa sobre mediação de leitura e ouvi o coral do São Vicente (escola do Cosme Velho, que fica defronte ao prédio erguido no terreno da casa de Machado). Já conhecia o coral, pois filhos meus estudaram lá, mas, entre a última vez que o ouvira e a recente, percebi uma evolução impressionante. É verdade que havia um elemento emotivo muito grande: foi a primeira apresentação do grupo depois de duas de suas cantoras terem falecido, uma delas muito minha amiga. Além disso, cantaram Milton Nascimento.

Antes do coral, assisti a uma parte da mesa “Mediação de leitura e cidadania: use sem moderação”, organizada por Bia Serra, com os palestrantes negros Vanessa Soares, Otávio Junior e Maria Chocolate. Quando cheguei, Vanessa Soares terminava sua fala. Ouvi então os outros dois. Otávio Junior é bem conhecido, e sua experiência está contada em “O livreiro do Alemão”. Morador do Complexo do Alemão, fominha de bola, com sonho e capacidade de ser jogador de futebol, seu caminho sofreu uma inflexão ao encontrar um livro abandonado no campo da pelada. Não custou muito a se perguntar por que os livros não narravam histórias de meninos como ele – o que lançou na feira é sua tentativa de ocupar esse espaço. Otávio é um sujeito objetivo, ainda que fale com emoção. Já Maria Chocolate, uma senhora assim da minha idade, sessenta e alguns anos, é puro transbordamento. Filha de pais analfabetos, ouvia a profecia da mãe de que seria professora, o que parecia um disparate – como, no meio de tanta penúria? Pois aconteceu. E foi além: um dia montou, na varanda de sua casa, num bairro pobre de Caxias, uma biblioteca, onde orienta crianças em suas leituras. Dona Maria Chocolate, que também lançava um livro, se espanta com a própria trajetória: acabou reconhecida (seu espaço foi visitado por Ziraldo, entre outros), mesmo fazendo tudo de forma precária. É um depoimento comovente. O que veio a seguir, o coral, a ausência de minha amiga e a música do Bituca elevaram aquela comoção inicial ao quadrado de mil, a ponto de eu não conseguir esconder minha emoção e de uma das cantoras (outra minha amiga), lá do palco, percebê-la.




29.6.24

Ônibus em festa

 

Para Shirley


Como ando bastante de ônibus, coleciono suas histórias e transformo algumas em crônica. Mais de uma vez, estive nas mãos de um motorista que não sabia o caminho e dependia da boa vontade dos passageiros. Ouvi diálogos estranhos e até um monólogo sui generis: uma mulher, assim do nada e falando com ninguém, passou a chamar a atenção de Lula, em seu primeiro ou segundo mandatos, para o fato de que, quando aqui é manhã, no Japão já é noite. Na avaliação da passageira, um atraso para o qual o presidente deveria abrir bem os olhos. Durante uma chuva de verão, vi a água entrar pela escada de acesso ao ônibus – um modelo moderno, rebaixado de modo a facilitar a entrada de idosos, mas que não vejo mais em circulação –, como se fosse um passageiro que, em vez de pagar, passa por baixo da roleta. Na crônica anterior a esta, comentei sobre o casal que, ao descer de um ônibus, se mostrou perdido em Botafogo.

O ônibus, mais uma vez ele, dita a crônica de hoje. Aconteceu no dia em que o Chico Buarque completou oitenta anos, o Botafogo arrancou, no último segundo dos dez minutos de acréscimo, um empate contra o Athletico Paranaense e eu havia ido ao lançamento do novo romance do Haron Gamal (“Lucarna”, editora Cajuína). Aliás, uma reunião agradável, com seus cálices de vinho e uma conversa afiada que nos levou a Tomas Mann, cuja mãe, Julia, nasceu no Brasil, em Paraty. Nos lembramos de “Ana em Veneza”, romance no qual João Silvério Trevisan nos conta, a partir da mudança dos Mann do Brasil para a Alemanha, o encontro de Julia, de Ana, a escrava levada daqui para lá, e do compositor brasileiro Alberto Nepomuceno. Embasado em vasta pesquisa, Trevisan, ao confrontar o fim dos séculos XIX e XX e manobrando ficção e ensaio, produziu, a juízo de Haron e meu, um clássico.

Na saída do lançamento, peguei o 435, Gávea-Grajaú. Mal entrei, o motorista falou alguma coisa que não captei o que era. Na continuação da viagem, supus que havia feito alguma graça, pois ele brincava com todo mundo. Prestei mais atenção quando entrou um vendedor. Antes de anunciar seus produtos, ele se aproximou da roleta e, como é de praxe e em agradecimento, ofereceu um doce a quem lhe franqueara a entrada. Os dois trocaram um dedo de prosa. Como tudo foi falado em voz alta, soubemos que o condutor por dezoito anos esteve naquele corre do vendedor. Terminada a conversa, os produtos foram anunciados sem que ninguém tivesse comprado uma mariola sequer. O vendedor desceu ouvindo as palavras animadoras do colega – “vai com Deus, tudo vai dar certo”. Em seguida, um menino sentado à minha frente abriu a janela e muito educadamente foi repreendido. O ar estava ligado, alertou o condutor. O menino entendeu o que era para ser feito, e a mãe, que estava noutro banco, ouviu um tremendo elogio – “que orgulho de garoto!”

Entraram, então, duas mulheres vestidas para festas juninas – uma de vestidinho de chita florido, a outra de chapéu de palha, cavanhaque e bigode pintados a lápis e, como se dizia na minha infância, calça rancheira. O motorista as recebeu com entusiasmo. Num instante os três cantavam músicas de São João, Santo Antônio e São Pedro e, no instante seguinte, éramos informados de que Nilson – acho que era esse seu nome – fazia anos. O ônibus inteiro entoou o Parabéns. No ponto seguinte, o motô – como são carinhosamente chamados pelos cariocas – se levantou, chamou a mulher mais tagarela, a vestida de homem, abriu os braços para ela, que não furtou de se aninhar no abraço, e disse que nunca havia dirigido num dia tão bom, que a vida era mesmo bela. Ela, por sua vez, confessou que seria difícil abandonar aquele mundo e externou seu desejo de continuar com ele naquela viagem e nas próximas. Antes de voltar à direção, ele fez uma imitação de Silvio Santos e nos autorizou a chamá-lo pelo nome do apresentador, uma vez que os amigos assim o faziam. As mulheres desceram no próximo ponto, mas antes deram o endereço de suas casas, novamente em voz alta e sem a menor preocupação. Uma vive no Tabajaras, a outra na Figueiredo Magalhães. Essa coisa do endereço foi importante porque uma delas esqueceu uma marmita, e Silvio Santos – em versão melhorada, negra, gorda e risonha – se prontificou a deixá-la na portaria da casa da passageira quando repassasse por lá.

Naquele dia, eu carregava uma tristeza profunda, que cresceria ainda mais na manhã seguinte: a dona do abraço mais expressivo do mundo desceria dessa espécie de transporte que apanhamos por acaso, não sabemos para onde nos levará e do qual, de supetão, somos atirados fora: a vida. Aquele alvoroço radiante da pequena viagem serviu de contraponto a meu pesar. Ainda no ônibus, revi a visita ao hospital no dia anterior. Minha amiga me deu um abraço quando cheguei, outro quando fui embora. Como sempre fazia, como nunca mais fará. Dessa vez, além do costumeiro acolhimento, repousou sobre meu corpo um conselho: que eu perseverasse na alegria, no molde do motorista do 435, das festeiras de Copacabana, dessas pessoas de quem minha amiga não teve tempo de ouvir falar.

28.6.24

A Ribeirinha (*)


(Antonio Barreto)


No mundo, disso não há semelhança:

enquanto vou vivendo de esperança,

por ela vou morrendo – e... ai!

 

Minha senhora clara e rosada,

como queria descrevê-la, e tanto

só eu sei quando a vi sem manto!

 

Infeliz do dia em que me levantei

e a vi assim tão bela, tão corada!

 

Minha senhora, desde aquele dia, ai,

me senti bem mal, comigo ausente.

 

Ela, filha de Dom Paio

Moniz, bem parecida

por seus modos, de luxo assim vestida.

 

E eu, minha senhora, um presente

de si nunca poderei ter, nem dar:

a não ser alguma coisa reles,

sem valor, insignificante!

Ay!


(*) BARRETO, Antônio. A ribeirinha. [Adaptado da obra do poema de] TAVEIRÓS, Paio Soares de.

15.6.24

Perdidos em tempos eletrônicos

Espero no ponto o 409 ou o 410. Se há alguém que me acompanhe e que, me acompanhando, retenha algum detalhe de minhas crônicas, ele ou ela talvez saibam que estas são as linhas de ônibus que uso em meu trajeto casa-trabalho-casa.

Depois de me acomodar numa ou noutra condução, saco um livro da mochila ou chafurdo no celular ou simplesmente aprecio a paisagem e, não demora muito, desço na primeira parada da Lapa, ando uns 500 metros e chego ao trabalho. Costumava alterar o jeito de voltar para casa, em vez de ônibus, tomar o metrô, mas a tarifa deste está pela hora trágica da morte sofrida e súbita, três reais mais cara que a do ônibus. Pasmem, o metrô – de extensão tímida numa cidade com tantos problemas de transporte público – tem o mesmo preço do trem que circula entre a Central e o subúrbio, ou seja, a turma que mora longe, que ganha menos, se virando em trabalho pouco qualificado, gasta o mesmo que os mais afortunados. Somos uma nação cruel. Seja como for, tenho voltado de ônibus para casa, opção, aliás, muito boa, pois dele se pode ver gente, assim como no metrô, mas principalmente pode-se apreciar a paisagem, um privilégio de quem vive nessa cidade que, de tão bela, faz cair o queixo até de um Noel Rosa e arranca lágrima dos menos emotivos.

Peço a compreensão de quem passou pelas linhas inúteis anteriores e uma segunda chance, não era nada disso que gostaria de dizer, me perdi mal comecei a crônica, mas, uma vez dito, dito está. Continuem comigo, por favor.

Espero no ponto o 409 ou o 410. Antes de um deles chegar – será o 410 – encosta o 309. A viagem nesta linha leva, do início ao fim, mais ou menos 1h30m – num percurso, entre o terminal Alvorada, na Barra, e a Central do Brasil, com mais de 70 paradas – e nela vão verdadeiros estrangeiros. Digo isso porque a pessoa que toma o coletivo na Barra – às vezes vindo do Recreio, de Curicica, de Santa Cruz, sabe-se lá de onde –, não conhece muito bem São Conrado, Gávea, Jardim Botânico, Humaitá, Botafogo, Flamengo, Glória e o Centro, os bairros pelos quais o ônibus passa. Essa parece ser a situação do casal que, ao saltar, se vê largado na rua e não na calçada. A senhora logo sobe para o espaço dos pedestres, o senhor fica no dos veículos, coladinho ao passeio. Ele olha abismado para um lado e outro. Vê um supermercado ali, um banco aqui. Uma perfumaria à esquerda, uma lanchonete à direita. Experimenta o mundo como se acabasse de chegar a ele. Já a senhora excede em objetividade. Olha para cima, olha para baixo e pronto: aponta o sentido da praia, para onde começa a caminhar. O senhor dá umas cabeçadas antes de segui-la.

Fico espantado por não terem tirado um celular do bolso e consultado o mapa. Ou mesmo já descerem com a lição tomada, numa consulta prévia feita no percurso que, da Barra a Botafogo, deve ter consumido mais da metade do tempo total da viagem ponta a ponta. Pode ser que não tenham intimidade com o aparelhinho que controla a nossa vida. Duvido. A julgar pelo jeito aéreo do senhor, imagino que, se tivesse um, mesmo folheado a ouro, o teria sacado e, na rua, não na calçada, começaria a consulta. Um homem daquele, que faz pouco caso de um atropelamento, não há de temer trombadinha, nem os de terra estrangeira. Ou teme tanto que deixou o celular em casa. Fica o mistério: por que não fizeram uma consulta rápida e eficiente, antes ou naquele momento?

Vão pelo faro da mulher, é o que sei dizer. Meu 410 chega, entro, pago, consigo me sentar, sacar o livro do Leonardo Almeida Filho, Berro (Editora Patuá), e começar a lê-lo. Em um segundo, a leitura me deixa encantado com a engenharia amorosa usada por meu amigo na construção de seus contos – já lhe deram um prêmio? Pois deem. Preso ao texto, nem namoro o Aterro, ou seja, abstenho-me da paisagem. Se não desfruto da beleza, poderia ter optado pela rapidez do metrô, embora, claro, de ônibus economize três pratas, o que, na atual circunstância, faz diferença.

Depois de saltar da condução e antes de me ajeitar na mesa do trabalho, volto a pensar no casal e, a partir dele, nas formas que inventamos para nos localizarmos em território desconhecido. Antes da facilidade do mapa eletrônico, havia o mapa em papel – tenho dificuldades em consultá-lo – a bússola – essa, que a meu juízo continua a falar mandarim, não deve levar ninguém da Torre Eiffel ao Museu Rodin ou do Recreio a uma rua de Botafogo – e, antes deles, as estrelas. A história humana talvez possa ser contada a partir da evolução das ferramentas de localização. No meu caso, no tempo anterior à traquitana eletrônica, sempre apostei na intuição, igual ao casal. Orgulhoso, nem perguntar a um estranho perguntava, o que já gerou conflito aos que, com espírito científico, caminhavam comigo. Nunca deixei de chegar ao destino, não sei se pelo melhor caminho, mas isso não importa.




3.6.24

Paul Auster e eu

No dia 30 de abril, aos setenta e sete anos, Paul Auster morreu em Nova York. Diante da notícia, me dei conta de que havia lido apenas um de seus livros, talvez o mais incensado, “Trilogia de Nova York”. Não bastasse a lacuna, nada me lembro daquela leitura, que deve ter ocorrido no final dos anos 1980 ou no máximo no início da década seguinte.

Na bagunça das minhas estantes, busquei seus livros e, para minha surpresa, não só tenho alguns, como estão na parte organizada da biblioteca. Peguei “Invenção da solidão” (Companhia das Letras, com tradução de Rubens Figueiredo) e li de uma sentada.

Na primeira parte, Auster conta como viveu o momento da morte do pai, relembrando a figura um tanto quanto ausente ao longo de sua vida. Em contraposição, mergulha na sua relação com o filho, buscando saber se cometia os mesmos erros do pai. Terminada essa narrativa reflexiva, passa a escrever um misto de romance e ensaio. Sua escrita então – distribuída em treze partes a que chama de livros da memória –, valendo-se de outros escritores, de obras como a Bíblia e Pinóquio, de suas memórias e a de seus familiares, lida com a questão da coincidência, que de forma muito própria reforça e é reforçada pela solidão.

A coincidência é o fio que une as peças soltas da memória, o que o leva a dizer: “Memória: o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez.” Aproveitando a deixa, abandono o caminho de uma resenha ou coisa que o valha para contar   uma coincidência entre uma parte do romance de Auster e um conto meu. Ele escreve:

 

Não se tratava exatamente de estar morto, mas sim de que ele ia morrer. Isto era certo, um fato imanente e absoluto. Estava deitado em um leito de hospital, acometido por uma doença fatal. Seu cabelo tinha caído em certas partes do crânio e sua cabeça estava meio careca. Duas enfermeiras vestidas de branco entraram no quarto e lhe disseram: "Hoje você vai morrer. É tarde demais para ajudá-lo". Eram quase mecânicas em sua indiferença em relação a ele. A. chorou e implorou às enfermeiras: "Sou jovem demais para morrer, não quero morrer agora". "É tarde demais”, responderam as enfermeiras. “Agora temos de raspar sua cabeça." Com lágrimas escorrendo dos olhos, ele as deixou raspar sua cabeça. Depois elas disseram: "O caixão está logo ali. Vá até lá e deite-se dentro dele, feche os olhos e logo você vai estar morto". A. queria fugir. Mas sabia que não era permitido desobedecer às ordens delas. Foi até o caixão e entrou. Fecharam a tampa sobre ele mas, uma vez lá dentro, ficou de olhos abertos.

Então acordou pela primeira vez.

 

Em março de 2024, quase dois meses antes da morte de Auster, escrevi o pequeno conto a seguir.

 

Olha, a enfermeira falou. Aflitos, meus olhos começaram a procurar alguma novidade naquele espaço tão exíguo. Ela fez um sinal para que me acalmasse e a escutasse. Olha, na realidade, era ouça. Respirei fundo tentando deter a excitação momentânea e rara. Mirei os olhos da enfermeira e de lá entrei em seu interior. Seu fígado não tinha marcas de excessos, bactérias ruidosas percorriam o longo caminho do intestino e o coração era uma criança cujos braços estavam estendidos pedindo o colo da mãe. Com sua voz suave, mas impositiva, ela me devolveu ao exterior. Olha, repetiu, você vai morrer hoje à tarde. Morrer hoje à tarde, morrer hoje à tarde, ecoou nos meus abismos. Morrer hoje à tarde. Tomei uma de suas mãos. Ela sobrepôs a sua outra sobre a minha, e eu levei a minha ainda solta para junto das demais. Poderíamos começar uma brincadeira dessas que se fazem com as mãos, mas não, não brincamos. Reunidas, nossas mãos formaram um pequeno totem sem adoradores. Uma lágrima brotou no cantinho de um dos meus olhos e, sem que nada a detivesse, foi serpenteando minha face, escorreu pelo pescoço e, fina, nem gelada nem quente, não demorou a sumir. A enfermeira pegou uma toalha de rosto, enxugou um pouco minha testa e as pontas do cabelo que se espalhavam sobre ela. Meus cabelos, eu via pela manhã, quando pedia um espelho para me ajeitar um pouco, estavam pastosos, evidenciando a sua permanente quase sujeira. A enfermeira por fim repousou os lábios em minha testa e a beijou com ternura. Meu longo suspiro talvez tenha rompido os limites do cômodo e chegado a um pássaro, a alguém no corredor, ou simplesmente se perdido no ar como todo som. Não posso morrer na quinta? Ela pareceu se assustar, mas logo seu semblante distendeu e anunciou um sorriso que não veio. E o que você fará com essas quarenta e oito horas? Ou melhor, trinta e seis, você ainda tem as doze de hoje. Fechei os olhos, como se assim me liberasse de respondê-la e ela entendesse aquilo como um último pedido. Eu a ouvi afastar-se da cama, mexer no sofá, recolher coisas, abrir e, em seguida, fechar a porta quase sem fazer barulho.

 

Auster não defende tese alguma, mas se encanta com a realidade e se espanta com o convulso mundo da escrita. Compartilho da mesma sensação e sigo. Este texto é seu, Mr. Paul.

20.5.24

Morte de famosos

 

I

Quando Senna morreu, eu comprava pão numa padaria que não existe mais.

II

Zé Luís chorava como se houvesse perdido a pessoa mais íntima e amada. Sem chorar – era o tempo de minhas securas, que de certo modo continua –, mas dilacerado, me curvei à dor do amigo. Depois, bem depois, fui viver o meu luto pela morte da Elis.

III

Lennon, Lennon, e agora?

IV

A morte de Tom Jobim botou fim à minha ilusão de tomar um chope com ele e João Ubaldo no Leblon. Naquele dia, perdi grande parte de minhas pretensões e fui ser escritor, poeta capenga, a meu modo.

V

No dia da morte do Ziraldo, pensei muito em Drummond.

VI

Paul Auster me ensinou a ver diferente o lugar sempre igual.

VII

Como ficaram as baratas que Clarice Lispector herdou de Kafka?

VIII

Não chorei a perda de Cássia Eller, pois estava ocupado com a morte de um amigo. Assim, penso que, apesar de um pouco recolhida, ela está viva.

IX

Sem Philip Roth, a que tamanho desamparo foi lançada a literatura!

X

Itamar Assumpção não escapou ileso da vida, doeu-lhe tudo, até o dom. Não são palavras minhas, mas dele. E eu, o que digo? Nada. Danço e me espanto com seus achados, sua poesia.

XI

Sem ter conhecido Chico Mário, fui ao seu velório porque a história dos irmãos hemofílicos e com Aids nos sensibilizava a todos e, além disso, amigos trabalhavam no Ibase, que eu frequentava, conhecia o Betinho.

No velório, não me lembro de ter encontrado conhecidos. Caminhei incógnito entre as pessoas. O filho do Mário puxava o cortejo, e, em suas mãos, um gravador tocava repetidamente Ressurreição, música do pai.

XII

Afonsinho — craque do meu Botafogo, o sujeito que, em tempos ditatoriais, lutou pela profissionalização dos atletas — chegou de ônibus a Santos, pegou, sem nenhum privilégio, a fila imensa dos que velavam Pelé. Ao passar pelo caixão, despediu-se do Rei com palavras que só Afonsinho sabe quais foram.

XIII

Gal Costa levou de roldão uma voz, uma boca, um quê ainda sem nome.

XIV

Rita Lee foi minha primeira namorada, ainda que ela não fosse um porquinho-da-índia nem eu um cadinho Bandeira.

XV

Um dia, numa conversa com alunos do ensino médio, uma menina que parecia a porta-voz da turma me perguntou se eu conhecia algum escritor famoso. Talvez esperassem o nome de um desses youtubers ou de escritores que por alguma razão se tornam celebridades. Mas eu só tinha você, João Gilberto Noll, para oferecer a eles. Assim mesmo não o tinha mais.

XVI

Não há morte de famoso que tire meu luto pelo Rio Grande do Sul.