21.12.20

Bafo de esperança

 

“Antes que a crueldade faça / de vítima as crianças” (Murilo Antunes)



As últimas três crônicas falaram de minhas leituras nos primeiros oito meses de confinamento. Escrever sobre os livros foi um exercício de memória para o miolo mole aqui. Ainda que não tenha feito resenha, crítica, qualquer coisa parecida com isso, ao escrever sobre tantas e tantas páginas, quis mostrar como me relaciono com elas. Mas escrever sobre livros foi também um jeito de me manter um pouco fora do assunto que domina o país: seu descaminho.

Ao fazer isso, não detive os acontecimentos, o que é uma pena.

Nesse período:

O assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes completou mil dias, e ainda há muito (tudo?) por descobrir sobre essa pistolagem política. Quem mandou matar Marielle e de enfiada ceifou a vida de Anderson?

As primas Emilly, quatro anos, e Rebecca, sete, crianças inocentes e, não por coincidência, negras foram mortas na porta de suas casas no início de dezembro. Juntam-se a outras dez que, no estado do Rio de Janeiro, morreram só neste ano e em circunstâncias parecidas: Anna Carolina, João Vitor, Douglas Enzo, Luiz Antônio, João Pedro, Kauã Vitor, Rayanne, Ítalo Augusto, Maria Alice e Leônidas. Em muitos desses casos, a morte ocorreu por tiro desferido por um policial.

Em uma cena de horror, dentro de uma loja da rede Carrefour, dois homens que faziam a segurança do estabelecimento mataram João Alberto, um negro. João teve uma morte semelhante à de George Floyd, americano também negro que foi asfixiado pela perna de um policial. No caso brasileiro, uma senhora, de celular na mão, acompanhava de perto os dois seguranças — era a coordenadora deles, soube-se depois — e outros funcionários do mercado auxiliaram no assassinato, por exemplo impedindo a mulher de João Alberto de se aproximar dele. A coordenadora e esses outros foram indiciados.

(Não custa lembrar que, segundo o Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio eram negras. Mais do que isso: entre 2008 e 2018, a cada 100 mil habitantes, o número de negros mortos saltou de 34,0 para 37,8, ou seja, um aumento de 11,5%, número menor do que a redução dos assassinatos entre não negros, que saiu de 15,9 para 13,9 a cada cem mil, redução, portanto, de 12,9%.)

Enquanto escrevia sobre minhas leituras: inventaram a não-queimada amazônica para estrangeiro ver; não renovaram o contrato do teste de genotipagem dos vírus da Aids e da hepatite C, o que impacta a escolha do tratamento; usaram a Abin, órgão público, para auxiliar um dos filhos do presidente a se safar da suspeita de fazer rachadinhas quando foi deputado estadual no Rio de Janeiro; chamaram a China para a briga — quer dizer, um inconsequente fez uma lambança diplomática.

A Covid-19, que havia diminuído, recrudesceu. Claro que não foi pelos ajuntamentos em praias, em festas. Não foi pela falta de máscaras. O negacionismo e a incompetência administrativa dos mandatários da república não têm um dedo de responsabilidade sobre a situação, óbvio que não, foram os inimigos do país que, durante o nosso sono, espalharam o vírus em nossas casas. Para completar, a vacina, que já se aplica lá nas estranjas, aqui é apenas uma palavra na boca da pior política.

Durante vinte e dois dias, um apagão tomou o Amapá. Estando tudo às escuras, o governo federal não viu o estado e empurrou com a barriga a solução, mesmo uma provisória. A população, além de sofrer todas as consequências da falta de luz (conservação de alimentos, comunicação, abastecimento de água e por aí afora), se viu acuada por criminosos.

Para tentar reverter o baixo astral da crônica, cito dois ou três fatos que podem servir de alento.

Trump foi despejado do poder.

Existe a vacina.

Mais uma boa-nova? 

Em 2019, Emicida lançou AmarElo, um disco que serve como ponto de confluência da cultura negra brasileira — que passa, em termos musicais, pelo samba, pelo funk, pelo hip hop, pelo rap — e de onde ecoam a música banhada em toda essa influência e o grito de resistência da gente negra, que não aceita mais tudo isso que temos visto: assassinato de Marielle, Emilly, Rebecca, João Alfredo, discriminação no mercado de trabalho, impedimento de acesso às universidades, exclusão da política, perseguição religiosa etc. E bem agora, enquanto eu falava de minhas leituras, um documentário em volta de um show que Emicida fez no Municipal de São Paulo (no Municipal, sim) foi disponibilizado na Netflix. Disco e documentário fazem de Emicida o bafo de esperança que nos ajuda a atravessar esses dias imerecidos.


3 comentários:

Unknown disse...

Ê desgraceira, heim? Ainda bem que no final você nos deu um alento. Texto, como sempre, cirúrgico e perfeito.Ótimo natal, Alexandre.
PS: não se esqueça do meu prefácio.

Mumu Barbosa disse...

Que venha 2001.

Dag Bandeira disse...

Não posso nem culpá-lo de escrever um crônica tão baixo-astral, afinal é o que temos pra hoje diria algum desses frasistas, mas a arte nos cura, estimula, e nos impulsiona para dias melhores AmarElo da cor, senão da esperança, mas do sol. Melhores dias virão.