16.8.07

Atacado Absoluto

Nos acostumamos com a máxima de que tudo é relativo, e é. Não sei se a teoria exige que exista, de qualquer forma, um absoluto. Na religião, como me disse há pouco um amigo que perdeu um filho, não se deve cobrar a existência de Deus, pois, de fato, Ele não existe, Ele é.

Outro absoluto é a morte, da qual falo hoje. No dia 10 de julho, ela visitou minha casa e levou minha mãe. Não tardou 48 horas, voltou para buscar o dentista da minha infância, primo de meu pai. Não satisfeita, esperou o relógio cumprir mais 24 horas e derrubou outro primo mais distante. Eu já dizia que ela atuava no atacado, uma comerciante de quantidades, quando morreu o Bolinha, um sujeito pertencente ao meu círculo afetivo, que durante anos, lá no interior de Minas, fez um excelente sanduíche de carne.

Então veio a tragédia de São Paulo. Nem a morte nas mãos do Saramago agiu com tanta objetividade e frieza. Aliás, para dizer a verdade, a morte nas letras do Saramago foi personagem de um romance menor (“Intermitências da Morte”, Companhia das Letras) do homem que deu vida humana a Jesus Cristo em seu belíssimo “Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Mas deixemos a crítica de lado e voltemos à morte. Ninguém volta à morte, bem sei, porém acho que vocês entendem o que quero dizer.

Sem exagero, a tragédia de São Paulo tornou todas as demais mortes coisas menores. Vivos, transitamos no mundo da relatividade. A morte de minha mãe é, em mim, uma dor que, como a deixada por meu pai, amainará hoje para voltar amanhã. Não latejando, mesmo assim será dor, conheço dessa matéria. Porém mamãe viveu quase 84 anos, foi feliz com meu pai, teve quatro filhos que se formaram e nenhum de nós é malandro, escroque ou mau irmão. Enfim, mamãe viveu uma vida e deixou frutos dignos do seu amor. Logo, choro sua morte, mas me conformo, assim como me conformo com a dos outros amigos que se foram logo a seguir.

Difícil é suportar a morte dos que desciam em São Paulo, indo, quem sabe, visitar um amigo, fazer um exame, pegar outro avião para visitar familiares, gente que daria prosseguimento à vida. Decerto morreram por alguma causa que se explicará muito bem (falha humana, falha mecânica, defeito na pista, seja lá o que for), mas que não apagará as questões políticas que estão atreladas à matéria da aviação no Brasil desde o acidente entre o avião da Gol e o Legacy. Torçamos para que se chegue à conclusão técnica e se tomem as providências necessárias para que isso não se repita.





Este julho de 2007 foi mês em que a morte atuou no atacado. Saiu das esquinas, onde estende sua mesinha de camelô e, montada num caminhão de último tipo, desses com letreiro chamativo, foi arrastando as pessoas de roldão. Não há o que discutir com ela; nem com Deus. É preciso, sim, discutirmos entre nós, valorizarmos nossas vidas e nosso convívio comum. Com urgência.


Enquanto isso, vou aprendendo a ser órfão de pai e de mãe, nesse mundão sem fim, cada dia mais apertado.