27.3.22

Cenas de resistência

 O fato é que nem ele nem ela dançam muito bem a valsa. Por sorte, a valsa anda sumida dos salões, e eles disfarçam a inaptidão sacolejando-se em outros ritmos, sem chegar, verdade seja dita, ao funk. Ela por achar que lhe faltam os atributos buzanfânicos, ele por uma certa recusa ao novo. Mas, entre a valsa e o funk, dançam tudo aquilo que é sincopado e que, em certos momentos, os faz até colar o rosto um no outro. De rostinhos colados, o mundo é aquele trem lá fora, complexo, violento, nada musical. O mundo é o que se esquece.

 

Em pleno século XXI, dois meninos resolvem brincar de cowboy. Ninguém entende muito bem, nem mesmo o pai, nascido no último vicênio do século XX, nunca havia brincado daquele modo. Nos tempos do coroa, as aventuras eram extraplanetárias ou vividas por uma coisa entre bicho e avatar, desenho japonês. Como aqueles dois, soltos no quintal, sem celular ou algum controle remoto na mão, brincam daquele jeito? Onde arranjaram os revólveres? E as espoletas?

Um dos meninos cai ao chão. O outro pula, grita, parece feliz. Sopra o cano do revólver, dá meia-volta e sai correndo. O morto se levanta, ri da morte e sai atrás do outro. O bandido virou mocinho e vice-versa. Eles estão brincando é disso, de perpetuar a vida.

 

Na hora da parolagem, levantam uma possível traição da Melina, mulher de Expedito. Alguém lembra que a recíproca também é verdadeira, Expedito não é flor que se cheire. Enquanto o tititi fofocante aumenta e diminui, Melina e Expedito fazem do colchão palco do amor mais sublime e sincero.

 

A velha senhora não é muito chegada a olhar a vida e ter saudade, nostalgia. Vive o dia das seis da manhã, quando se levanta, às dez da noite, quando se deita. Viver está ligado a fazer uma leitura, uma visita, um passeio, um crochê ou mesmo a preparar um prato para receber amigos ou alguém da família. O fato é que, como sempre fez, toca a vida pra frente, não empurrando com a barriga, mas dando um passo atrás do outro, pra frente, sempre pra frente, isso é o que importa. Mas, entre as dez da noite e as seis da manhã, entre deitar-se, dormir, acordar e levantar-se, a velha senhora pensa e sonha. Uma dessas coisas, que é pensamento e, em seguida, sonho, lhe coloca o mundo nas mãos, e ela, sem grande esforço, joga sobre ele três pitadas de delicadeza, o suficiente para o mundo seguir em frente, sempre em frente. A delicadeza faria do mundo um bom lugar para viver, ler um livro, fazer um crochê, um passeio, uma visita, preparar um prato para receber amigos ou familiares sem que fosse preciso modificá-lo.

 

As meninas jogaram suas bonecas no quarto dos meninos. Eles se surpreenderam com aquilo, mas, uma vez recuperados do susto, ninaram as bonecas com todo o amor que guardavam.

 

O trânsito estava horrível. Fazia mais de hora que nenhum carro saía do lugar. Os mais ansiosos haviam recorrido à buzina, mas caíram em si e perceberam que isso não fazia o trânsito avançar. A moça do carro popular desligou o motor. O senhor cujo carro estava emparelhado ao dela fez o mesmo. Os dois logo atrás foram na onda. De repente, a rua era um monte de carros parados e silenciosos. Uma mulher de turbante vermelho e vestido rosa desceu do ônibus, abriu os braços e começou a cantar “Aquarela do Brasil”. Todo mundo saiu de seus carros e acompanhou a afinada passageira do Gávea-Tijuca. Sorrisos, abraços e danças arrancaram do transtorno uma dose de felicidade.


Como todo assaltante, aquele chegou sorrateiro atrás da vítima, que assistia na tela do celular às mais recentes informações sobre a guerra. As imagens o fizeram se lembrar das histórias da fuga de seu avô da Europa durante a grande guerra e seu pensamento saiu em espanto pela boca: outra guerra? Sim, respondeu o desavisado a um passo de perder o celular, outra entre inúmeras espalhadas, naquele instante, mundo afora. O assaltante, com as mãos sobre o rosto, gaguejante, mas dono da voz, lamentou a índole má e corruptível do ser humano. 

12.3.22

Heróis

Você acorda, Petrópolis foi destruída pela chuva. Mais de duzentos mortos, um monte de gente sem ter para onde ir. Você dorme e, no dia seguinte, a Rússia invadiu a Ucrânia. Você começa a ter medo de dormir, mesmo não estando em área de risco, mesmo não estando em zona de guerra. Você está no mundo, e o mundo é um desacerto com belas paisagens e poucos encontros.

Na televisão, as imagens dão a dimensão da catástrofe, enquanto mostram aqueles que, dilacerados, transformam-se em heróis. No Morro da Oficina, um pedreiro, ó, meu Deus, qual é o seu nome? Jefferson? Não sei. Meu esquecimento já mostra como esse heroísmo é efêmero. Mas vamos adiante. Jefferson perdeu mulher e filhos e cavucava o chão atrás da família. Naquele momento, os bombeiros não o ajudavam, e ele usava o que tinha: mãos, unhas, pá e picareta. Seu sonho era dar um enterro digno a cada um dos seus. Jefferson é um herói com todo caráter.

Na Europa, uma brasileira, Clara (dela guardei muito bem o nome), saiu da Alemanha e, dirigindo por mais de dez horas, foi até a fronteira da Polônia com a Ucrânia. Seu objetivo era simplesmente colocar brasileiros em seu carro e levá-los a uma cidade estruturada e capaz de abrigá-los. Depois eu soube que ela não era a única, vários brasileiros, saindo de outros pontos da Europa, faziam o mesmo. Essa carona acabou servindo não apenas a nossos compatriotas e enfrentou problemas adicionais, uma vez que eram impostos bloqueios nas estradas, tornando necessário tomar caminhos alternativos, cruzar outros países. Clara e os demais voluntários também são heróis plenos de caráter.

Jefferson e Clara serão esquecidos.

Einstein teria dito que não sabia como seria a terceira guerra, mas, na quarta, as armas seriam tacapes e braços, uma tremenda briga de rua. Sem rua. Se o conflito entre Rússia e Ucrânia não se difundir e o mundo não se acabar, ao fim da guerra, como sempre acontece, os heróis da morte serão eternizados em estátuas, nomes de rua, de praças etc.

Já em Petrópolis, nenhum monumento exaltando os heróis ou homenageando as vítimas será levantado. Os que sofreram perdas estarão marcados para o resto da vida, e os que podem mudar a situação permanente de risco, depois de discursos e promessas, voltarão a não gastar a verba nas obras de prevenção, se é que não a excluirão do orçamento. Até que nova chuva caia e eles chorem, em alguns casos até arregacem as mangas e se misturem aos despossuídos como se fossem um deles. Não são. Nunca foram. Eles acham que a culpa da tragédia é de quem construiu a casa lá na ribanceira.


Guerra, 1942
Lasar Segall
Óleo sobre tela, c.i.e.
270,00 cm x 185,00 cm
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (SP)