30.4.18

Estilingues 30

O Estilingues, formado há 30 anos por um grupo de amigos que se conheceu em uma oficina literária, talvez uma das primeiras do Rio de Janeiro, a OLAC (Afrânio Coutinho), pretende celebrar a data este ano. Desde 2012, Cristina Zarur, Marilena Moraes, Miriam Mambrini, Nilma Lacerda, Sonia Peçanha, Vânia Osório e eu, antecipando as comemorações dos 30 anos, lançamos dois livros de contos — Amores vagos (orelha de Luiz Ruffato) e Mapas de viagem (orelha de Maria Valéria Rezende), coletâneas que têm percorrido o circuito não comercial. Entregamos um livro a uma pessoa e pedimos a ela que, uma vez lido, ele seja passado adiante. Isso quando não “esquecemos” um exemplar por aí: num banco de praça, num ônibus, em qualquer lugar. Sonhamos que nossa estilingada literária, em vez de matar passarinho, ressuscite o prazer da leitura na mesma proporção com que, nestes anos todos, nós temos escrito e lido uns aos outros. Ah, meu leitor, você pode imaginar a força que um grupo ganha compartilhando vinho e texto e embates (que não são raros) por tanto tempo, com tanta persistência. Enfim, vem coisa por aí, vocês verão, ou melhor — e é o que espero —, lerão.


No último encontro, entre o barulho das folhas dos originais e o tinir dos copos, me dei conta de que faz dois anos que não escrevo um conto. Tudo que tenho levado são textos antigos, alguns muito antigos, talvez por isso o livro que organizo para a efeméride me faz pensar em um diálogo com o primeiro, Contos de homem (de 1995). Este é um livro duro, no qual corri riscos: com a escrita, com a organização dos contos, com tudo. Um querido amigo já falecido dizia que, depois que eu seguir para outras paragens, tudo que restará de mim será esse primeiro livro. Espero que ele tenha se enganado, mas o fato é que não me envergonho da obra imatura. Aliás, uma das poucas coisas que inflam minha vaidade é o prefácio escrito pelo mestre João Gilberto Noll.

Estilingues em várias fases


Ficar sem escrever um conto não me incomoda. Não sei quantos anos de escrita, um pouco mais do que os 30 do Estilingues, me calejaram. Aprendi que, se falta conto hoje, amanhã virá uma enxurrada deles (a maioria será jogada fora). Ultimamente, minha vidinha de escritor tem sido a desse cara que, de quinze em quinze dias, escreve com alegria suas crônicas para a Rubem e o No Osso. E que, sem planejamento, em jorro, escreve um poema aqui, outro ali. Não sei se um dia deixarei de escrever, mas que tenho sofrido pouco por não escrever o que sempre gostei tanto, os contos, isso sim, eu sei. 

Deixo minhas questões pessoais de lado. O que importa neste 2018 é a coroação de um encontro de 30 anos, um encontro que firmou uma sólida amizade entre sete artistas, pois é o que somos, e que foi facilitado pela Literatura, essa que não morre.

16.4.18

Nem céu nem inferno


O Papa boa gente disse que o inferno não existe, um passo além do que o anterior, homem um tanto quanto antipático, havia afirmado: o limbo, o escuro reservado às crianças que morrem pagãs, não passava de uma invenção. Me pergunto: seria possível existir o céu sem a existência do inferno? O princípio cristão não está atrelado ao bem e ao mal? O céu aguarda os bons; o inferno, os maus.

Se não estou enganado, ao negar o inferno, a Igreja dá indicativos de que o céu tampouco existe, quer dizer, não existiria o tal céu paradisíaco, nossa morada definitiva. (O céu sobre nossas cabeças meus olhos alcançam todos os dias, e com ele — suas cores, sua limpidez, sua escuridão, seus enfeites — me espanto com frequência.)



Estamos à porta de uma revolução, concluo. A Igreja, que tanta influência tem em nossas vidas, de repente diz: esqueçam essa falsa dicotomia e libertem-se do maniqueísmo a ela atrelado. Num momento em que os conservadores arregaçam as mangas e tentam levar o mundo para o ponto em que se sentem confortáveis, o fim do céu e do inferno alteraria a compreensão do que é liberdade. Não seria pouca coisa.

1.4.18

Está tudo nas prateleiras

Digamos que a loja se encontre numa rua no coração de um centro comercial, como é o Saara, no Rio de Janeiro; a Vinte e Cinco de Março, em São Paulo; o Beco da Poeira, em Fortaleza; o Ver o Peso, em Belém, enfim, um lugar movimentado a qualquer hora do dia.

Bem na entrada, soa de uma caixa de som o anúncio das mercadorias, todas com preços camaradas. Ofertas de cair o queixo. Alguns reclames saem de uma voz empostada, que dita um texto sóbrio: a lista do que há de melhor, os preços, as promoções do tipo “leve três, pague dois”. Outros, não, são excessivos, farsescos. O tom resvala para uma ironia agressiva, sexista. Sempre é assim, pouco importa.

A loja está lá. Seus anúncios reverberam pela rua ou pelos corredores do mercado.

Ouve-se de uma locutora comedida: “Senhoras e senhores, hoje aqui a oferta é ímpar. Em nossas estantes, você pode escolher uma execução impecável contra aquela vereadora negra, bissexual e favelada. Não se esqueça e inclua, sem taxa adicional, o assassinato do motorista que estará prestando serviços a ela.” E continua: “À senhora, que passa agora, aviso que podemos embrulhar tudo isso em papel de vilipêndio, a última moda no mundo civilizado.”

Mais adiante, encontra-se um bufão cheio de gestos teatrais, não se sabe se é gay ou se apenas finge. Um exagero só. “Gostosão, meu bofe, entra aí, por qualquer dois contos você garante um extermínio de índios, aquele povo sem pelos, pelo amor do santo Deus, pra que serve aquilo? Ou mesmo dá fim de vez a esses negrinhos que, se ficam por aí, acabarão por fazer aquelas malditas músicas pornográficas que ninguém gosta.” Ele sussurra a um interessado: “Eu gosto, mas sou empregado, obedeço.” Insinua, por fim, que o cliente — macho, faz questão de falar — que adquirir aquela verdadeira ajuda celestial ainda vai ganhar um presente dele, o “anunciante serelepe”, como se autodenomina. Faz gestos com o microfone, e logo fica evidente do que está falando.

Não, não acabou, o mercado está precisando fazer dinheiro, por isso ficará aberto até as dez ou onze horas da noite. Na esquina, quem comanda o microfone já tem certa idade, a voz está cansada, mas ainda é forte e grave. Na lojinha dele, sumiço de religiosos metidos a comunistas, morte de estudantes por bala perdida, ditadura exercida por milicianos ou traficantes na periferia. Tudo coisa fina, o homem fala sem ênfase alguma (contam que uma de suas netas foi vítima de bala perdida comprada bem ali, no seu nariz). “Lá no fundo da loja, tem a mercadoria mais vendida de todas: acobertamento de crime, álibis lindos, verdadeiras joias feitas por ourives renomados.” Ao anunciar esse atraente produto, parece sobrar energia ao velho (novamente contam que, no final do ano, ele pretende comprar um para vingar a neta).

Em outras lojas, a opção é usar cartazes coloridos, gigantes. “Temos feminicídios de vários tamanhos e cores”. “Se podemos ter um mundo com dois policiais corruptos, por que manter um, um só, honesto?” “Por que levar dez por cento se você poder levar cinco de algo com um valor oito vezes maior?”

Essas lojas ficam no Shopping dos Horrores. Onde? Ora, ao seu lado. Ao meu lado. Tão ao lado que qualquer movimento que a gente faça — leste, oeste, norte, sul, direita, esquerda — nos leva a ele.

As promoções estão irresistíveis. Mas, claro, você pode dizer não.