22.11.20

O que fiz das minhas leituras de confinamento: II

Dando sequência à crônica de quinze dias atrás, falo um pouco mais sobre minhas leituras do confinamento.

Apesar do que dizem — e acertadamente tem sido contestado —, somos um país racista e nós, os brancos ou criados como tal, temos de nos perguntar todos os dias, como fazia uma antiga campanha na TV Brasil, onde guardamos ou escondemos nosso racismo. A leitura de negros me ajuda nessa busca em mim, que, assim espero, logrará que eu apague o que resta, o que está incrustado. “O crime do cais do Valongo” (Malê), de Eliana Alves Cruz dialoga diretamente com “Um defeito de cor” (Record), de Ana Maria Gonçalves, uma leitura de 2019. Escritos por negras, ambos tratam da escravidão no século XIX e dão voz a escravas ou ex-escravas, mostrando as dificuldades para sobreviver num mundo violento não só por conta da escravidão, mas também do machismo. Os dois, cada um com seu estilo, trazem à tona a complexidade daquela sociedade em reverberação até hoje e que vai muito além do ensinado na escola, pelo menos na minha do final dos anos de 1960, início dos de 1970.

Noutra linha, caminha “Rio Negro, 50” (Record), do também sambista Ney Lopes. Ney fala de um Rio de Janeiro negro, absolutamente negro, arrancando 40% (número aproximado de negros e pardos na década de 1950, segundo o IBGE) da população da cidade da condição marginal com que aparecem na “literatura branca”. Num romance que eu chamaria de coletivo — não há um foco direto e permanente na vida de um ou de outro, o interesse é pela comunidade —, vemos passar, em dois bares do centro da cidade na época do vexame da Copa de 1950, intelectuais, atrizes, cantoras, vendedores de amendoim, jogadores de futebol, ativistas, advogados, bicheiros. Negros, todos negros. A forma narrativa escolhida pelo autor é, a meu ver, uma aula.

Li também autores não negros. Um deles, Leonardo Almeida Filho, fala, em entrevista, das influências sofridas na escrita de “Nessa boca que te beija”, romance lançado pela Patuá. De um lado Graciliano Ramos (“Angústia”), de outro Augusto dos Anjos, em cujos versos Leonardo buscou o título. Engana-se quem pensa que pesa sobre o autor a consciência dessa influência, pois sua personagem, um escritor atormentado, improdutivo, entregue a uma paixão um tanto quanto obscurecida, tem camadas próprias. Esse escritor em crise escreve um romance, e, no romance, a personagem escreve um poema. Enquanto lia o livro, eu gravava uns poemas e espalhava-os por minhas redes sociais, e o escrito pela personagem da personagem (e que aparece como peça autônoma em outro livro de Leonardo, “Babelical”, também da Patuá) foi um deles.

É também um autor improdutivo a personagem de “Um romance de geração” (Companhia das Letras), de Sérgio Sant’anna. Nos livros de Sérgio, não raro, outras artes — nesse, o teatro — têm um papel importante. As situações que o autor explora são sempre muito atuais, no caso o embate entre o escritor (homem) e a repórter que o vai entrevistar (mulher), entre o escritor decadente e seu ego, entre a repórter insegura e seus próprios limites, enfim, irônica, inteligente, controversa, a literatura do Sérgio, uma vítima da pandemia, é das mais impregnadas pelo assombro contemporâneo. 

Apesar de o dramaturgo decadente de Sérgio ser um perfeito exemplo de filho privilegiado do patriarcado, o romance não o defende, o expõe. Se falo da questão de gênero, me lembro de “6 contos da era do jazz”, de F. Scott Fitzgerald (L&PM), outra leitura atual. Fitzgerald é visto como aquele que deu voz à juventude e soube captar a efervescência dos anos de 1920 ao perceber o novo rumo tomado pelas mulheres. Apesar desse reconhecimento, Frances Fitzgerald Lanahan, sua filha com Zelda, anota no prefácio que, embora se encontrem no livro duas mulheres mais ousadas, “ninguém, nestas histórias, beija ninguém, a menos que haja entre tais pessoas laços matrimoniais ou paternos”, e completa: “o livro é inteiramente destituído de sexo, tal como presumimos encontrar nos escritos modernos”. Ou seja, Fitzgerald não foi muito além de colocar mulheres em festas cheias de excessos e em carros dirigidos por playboys, ainda que sua literatura não se resuma a isso. Já Virginia Woolf, lidando com um mundo bem mais conservador — também sem beijos e cenas de sexo —, avançou naquilo em que Fitzgerald não. Em “V. Woolf — contos completos” (Cosacnaify), fica patente que sua literatura é um espaço de reflexão sobre a mulher. Woolf tem um repertório técnico incrível, seus contos são muito diversos, às vezes circunspectos, noutras, atirados. São tristes, filosóficos e, em direção oposta, engraçados. Um vestido pode provocar numa mulher o sentimento mais profundo e obrigá-la a uma exploração vertiginosa do que ela é. Um embate com o marido — a quem a esposa via similaridade com um coelho, percepção que passa a fazer parte da vida íntima do casal — pode fazer a mulher seguir por caminhos próprios. A escritora inglesa, sensível perscrutadora da alma feminina, também conta a história de um casal que se tomou de amores por um cãozinho vira-lata.


10.11.20

O que fiz das minhas leituras de confinamento: I

 Enquanto passava os olhos na lista dos livros que li de março até agora, período de total confinamento, a lembrança e o esquecimento começaram a briguinha corriqueira. Resignado súdito do esquecimento, desconfio de quando a lembrança levanta a voz cheia de si e, então, para evitar virar joguete na mão dos dois, me concentrei na lista pensando no que fiz de todos aqueles livros. E é disso que falo nesta e nas próximas duas crônicas.

O espanto ao ler “Pinóquio”, de Carlos Collodi (Cosacnaify), veio do equívoco de reduzir a história do boneco ao crescimento de seu nariz depois de contar uma mentira. A leitura atual mostrou que essa é a menor questão, Pinóquio nem passa por aquela situação tantas vezes. A história, pra lá de violenta, expressa, na verdade, a forma como somos modelados para servir a um sistema hostil, e Pinóquio só ganha corpo humano quando aceita ser parte daquela engrenagem. Esse entendimento do clássico italiano foi parar em uma personagem de um conto que escrevi; rascunhei, melhor dizendo. É uma jovem que vai viver na rua e, depois que seu pai morre e os irmãos somem no mundo, volta a viver com a mãe. Pinóquio é o que ela não quer ser. E não será.

Num outro conto, o narrador vê na frase “se é para ser, é, e não tem qual é”, pensada pelo menino protagonista, um Hamlet deslocado do Reino Unido para a Maré. Penso que o narrador se referia a “ser ou não ser, eis a questão”, e não seria por um desvario desses que eu enfrentaria a peça de Shakespeare. Decidi por sua leitura quando, ainda no conto, uma senhora, ao proteger o menino que fugia de tiros da polícia, diz outra frase, que, na minha intuição (e não na do narrador), era puro Shakespeare, novamente “Hamlet”. Li o livro para concluir que não, o bardo inglês passava longe dali. A leitura de um livro por conta de uma frase lançada numa história, assim é, às vezes, a vida de um escritor.

As leituras serviram também para ver do que tem falado a literatura brasileira. Ronaldo Guimarães, em “Barbárie em cena” (Miguilim), escreve, como o título sugere, um texto teatral, ainda que não na forma, ao narrar a internação de quatro pessoas de nenhum modo loucas no famoso hospital de Barbacena. O manicômio da cidade mineira, mesmo fechado, continua uma ferida exposta, e Ronaldo, límpido e “leve”, nos ajuda a não nos esquecermos disso. Ádlei Carvalho (“As nove páginas de Alberto Silva”, Coralina) e Claudia Lage (“O corpo interminável”, Record) usam a ditadura como pano de fundo. Ádlei, baseado em um trabalho de pesquisa cuidadoso, conta uma história de amor entre uma mulher de família crítica ao golpe e um soldado do exército vítima da estupidez do regime. Um casal de jovens, no livro de Claudia, busca a história de suas famílias — em uma de suas linhas, o livro lida com os limites da escrita. O corpo interminável começa lá, torturado por aqueles que nosso país mal resolvido ainda aceita como dignos de vivas, e continua, no presente, no homem, na mulher, no filho a caminho. A dor é uma herança corpórea.

No livro de Claudia desponta também a questão feminina, pois quem sumiu nos porões da ditadura foi uma mulher, uma guerrilheira. Branca Maria de Paula, em “Nanocontos” (Quixote +Do Editoras Associadas), como tem sido sua literatura, acompanha a mulher em casa, na rua, no amor, no abandono. O texto miúdo (de onde o nano) é uma tarefa de difícil execução, e Branca faz bonito ao enfrentá-la. Elvira Vigna, em “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (Companhia das Letras), explora suas habituais personagens femininas, fortes e raras, que fogem a padrões ou a não padrões. A desse livro, por uma série de razões, torna-se confidente de um interventor de uma editora que está prestes a fechar e que adora contar suas aventuras com prostitutas. Ela, que poderia ou até deveria repelir o assunto, o aceita, gosta de ouvi-lo. Não só por isso, uma típica mulher de Elvira Vigna.

A partir de um livro infantojuvenil, “Sete Orelhas”, de Silvinha Meirelles (Ôzé Editora), fiz uma viagem a um mundo que em parte acabou. Comprei o livro ao ver, na página da editora, a autora e suas filhas (uma fez as ilustrações, a outra, o projeto gráfico) contarem como a história, repetida à exaustão na família, chegou até elas. A história de um matador que coleciona orelhas de suas vítimas também se conta em minha cidade, no caso, situando-a nos tempos dos “contendores da morte”, que, em Passos, na primeira década do século XX, culminou com a intervenção do governo de Minas, num episódio conhecido como “a matança do fórum”, que serviu de base para um romance de Mário Palmério, “Chapadão do Bugre”. Li “Chapadão” há muito tempo;  no confinamento li, do autor, “Vila dos Confins” (José Olympio Editora), livro que não se faz mais no Brasil, em grande parte porque o país mudou, a vida rural, apesar da importância atual do agronegócio, não é mais a dos anos de 1950, mas também porque já não temos a esperança daquele momento entre a ditadura de Vargas e a Militar. Por outro lado, não duvido de que, nesse mundo de milícias e exércitos de contraventores, matadores ainda colecionem orelhas arrancadas de suas vítimas.