18.2.19

Lima Barreto e os dias de hoje

Em “Diário do hospício”, primeira parte de “O cemitério dos vivos” (Planeta), Lima Barreto fala de uma das internações que teve, na realidade, a última, dois anos antes de seu falecimento. O problema do homem era a bebida, pelo menos era o que ele mesmo dizia. Tudo bem, ele dizia mais. Reproduzo suas palavras: “De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura, deliro.”

Quadro de Wagner Castro, 2009*.
Apesar de todo o campo que se abre para discutir sobre a visão que o escritor tinha de si mesmo, um dos motivos que me levam a falar do livro é que, durante a leitura, encontrei a palavra geena, segundo o Houaiss, “local de suplício eterno pelo fogo, inferno” ou, por extensão de sentido, “sofrimento intenso, tormento, tortura”. Antes de buscar o significado do substantivo, me lembrei da amiga Stella Maris Rezende — escritora, colecionadora de prêmios Jabuti e verdadeira adoradora de palavras esquecidas — e a marquei no Face com a intenção de saber se ela o conhecia. Não, ela não conhecia. Concordamos que a sonoridade era bela, já o significado...

Henrique Fendrich, editor da revista Rubem, comentou que geena “era um vale fora de Jerusalém onde se jogava lixo e cadáveres” e que “Jesus usa muitas vezes a palavra como metáfora para o inferno”. Vera Moll — autora de “Meu adorado Pedro” (Bom-Texto), livro baseado na vida da imperatriz Leopoldina — reforçou a linha do Henrique ao perguntar: “não era desse modo que muitos eram condenados à morte segundo um dos livros da Bíblia? Na Geena.” Geena é uma palavra bíblica, que Lima Barreto usou com precisão ao escrever sobre seu calvário de viver num hospício, esse cemitério de vivos.

A ironia à postagem veio do Marco Túlio Costa — outro colecionador de Jabuti — ao fazer o seguinte comentário: “do modo que as coisas vão, alguém nascido na cidade do Rio de Janeiro poderá dizer ‘sou carioca da geena’”. Trocadilho digno de prêmio, reagiu o Henrique. Faço coro, quanto mais agora — um agora que não é de hoje — que o estado está à deriva. O autor de “O mágico desinventor” (Record), digníssimo Mago Túlio, como o poeta Antonio Barreto o chama, lacrou.

Volto ao diário da terceira internação de Lima Barreto. O interesse em lê-lo ainda hoje está não só no fato de que os “loucos” continuam por aí e são sempre personagens curiosos (quando são apenas personagens e não nossos familiares, sejamos honestos), mas na precisão com que Lima Barreto mostra que uma instituição dessas é a síntese do próprio país. Barreto fala de loucos ricos, com enfermeiros contratados, em contraposição aos despossuídos de juízo e dinheiro. Fala de médicos que não vão além daquilo que apregoa sua ciência, quer dizer, médico que está ali para receitar o mesmo tratamento para qualquer espécie de doente. Mostra enfermeiros pacienciosos, que, vivendo entre os loucos, sem o distanciamento reservado aos médicos, suportam todo tipo de maldição e impropérios.

Olhar arguto, Lima Barreto documentou um país que insiste em manter-se o mesmo. O Brasil, e não só o Rio, está jogado à geena. Ah, sim, e os escritores continuamos, como tem sido desde o início dos tempos, assoberbados pela falta de grana, com o que nos quedamos loucos mesmo sem a bebida e sem o delírio.

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* Wagner Castro, nascido em Franca, foi um importante artista plástico que residiu até a sua morte, perto dos 100 anos, em Passos.

4.2.19

Tragédia e Férias


Aos familiares das vítimas da Vale


Paisagem, de Marcelo Albuquerque*

O rompimento de uma barragem da Vale, outra vez ela, aconteceu quando eu estava de férias, em Tiradentes. O intervalo entre esta tragédia e a anterior (a de Mariana) foi pequeno, sinal de que a mineradora e todo o aparato de fiscalização não se empenharam em evitar uma nova catástrofe. O que aconteceu nos arredores de Brumadinho foi similar à atuação de um psicopata que entra na escola, mata quem vê pela frente e, por fim, se mata. É e não é similar, já que a Vale vai continuar por aí, rachando de ganhar dinheiro com o minério, descarte aqui, descarte lá os rejeitos desse minério. A empresa ressuscita no terceiro dia, embora não se possa associá-la a Cristo.


Muitos apontam a privatização como a razão de tantos rompimentos. Não concordo. A questão, me parece, está mais associada à forma como o capitalismo funciona por aqui: empresas viciadas em dinheiro público; fiscais que fiscalizam mais a própria conta-corrente; legisladores e membros do executivo que atuam com a mão (nem tão) invisível de interesses alheios aos de seus eleitores ou do próprio Estado. Desmontar essa engrenagem é que são elas.

O Ipiranga do novo governo promete fazer e acontecer para oxigenar o capitalismo tropical. Muita coisa que diz me soa bem, mas, claro, o sistema não é altruísta, regras e fiscalização são imprescindíveis. Tenho a impressão de que o homem forte da economia, um liberal puro-sangue, não acredita muito nisso e acha que as forças da economia — alicerçadas no egoísmo nosso de cada dia — nos levarão por si só ao equilíbrio. É aí que a vaca morta na lama, feito a porca, entorta o rabo.

O Brasil tem nós não desatados desde a primeira infância: a escravidão; a elite que não raro toma de assalto o poder e manda às favas os suspiros democráticos; a injustiça econômica e social. Eu pelo menos já não me assusto com essas jabuticabas (coitada das jabuticabas!), em compensação, me entristeço. A tragédia humana e os danos à fauna, à flora, às águas e a tudo mais me deixam na miséria. Somos inconsequentes e ponto.

Em Tiradentes, estava rodeado de amigos, alguns artistas, outros não, mas todos com alma cunhada no amor ao próximo. Sofremos juntos, e, por estarmos juntos, nos fortalecemos. O brinde levantado de forma recorrente na cidade histórica era muito mais que um desejo de saúde particular, era como se, no alegre tim-tim, transferíssemos ao outro uma força, pequena, mas resistente, capaz de fazer cada um de nós acreditar na melhora deste país e, principalmente, acreditar que, escrevendo, executando uma peça musical, talhando a madeira, preparando um bolo, inventando um drinque ou um prato, enfim, trabalhando, seremos protagonistas da mudança. 

Porque é importante, digo que, além da minha, esta crônica ecoa as vozes de uma Beatriz, duas Veras, uma Margarida, um Márcio, um Murilo, um João, um Celso, uma Lilian, uma Maria Helena, uma Fernanda, um Cléber, um Antonio, uma Graça e, como regentes, as vozes de uma Tereza e um Marco. Quando muito somos um bando de saltimbancos ou músicos de Bremen, mas, por isso mesmo, somos fortes no afeto e solidários na dor. No caso, na dor das famílias que viram seus entes tornarem-se vítimas de mais uma irresponsabilidade institucional brasileira.


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* Encontrei essa imagem num post de Antonio Barreto, poeta, conterrâneo e amigo do peito, não resisti e ilustrei minha crônica com ela, uma obra de Marcelo Albuquerque, cujo site pode ser visitado por aqui