30.6.13

Imagens colombianas e outras

Em maio circulou pela internet reportagem sobre um dicionário muito particular, o “Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças” (não há notícia de que tenha sido traduzido no Brasil, e o título é o que consta das matérias). O livro, um apanhado de definições genéricas, foi resultado do que o professor colombiano Javier Naranjo recolheu no seu convívio com crianças ao longo dos dez anos em que lecionou numa região rural de seu país.
Naranjo, autor do livro.
Há coisas realmente surpreendentes. Uma pequerrucha de sete anos, Natalia Bueno, diz que a igreja é “onde a pessoa vai perdoar Deus”. Imagino que o professor catalogou essa “definição” sem fazer nenhum juízo de valor a respeito. Já não sei se, ao sair o livro, a menina não tenha levado um bom corretivo. De seus pais. Do pároco local. Eu considero a frase um soco nas nossas certezas religiosas, o que me apraz, não por ser assunto religioso; de fato me apraz tudo que vá contra qualquer outra certeza. É meu espírito anárquico, e cínico.
Menos controversa é a frase de Duvan Arnnulfo Arango, que, no alto de seus oito anos, definiu o céu como sendo “de onde sai o dia”. Com a mesma idade, Leidy Johanna García afirmou que a lua “é o que nos dá a noite”. Para terminar as citações, com pitada poética e uma ironia desmesurada, ao definir mãe, Juan Alzate (seis anos) disse que “mãe entende e depois vai dormir”.
Ao ler a matéria, me lembrei de Gabriel García Márquez. Se há algo que marque a literatura do colombiano são algumas das imagens que ilustram suas histórias. Boi que sobe escada (“O outono de um patriarca”). Borboletas amarelas que anunciam a presença de Maurício Babilonia (“Cem anos de solidão”). O médico que, ao auscultar um coração, ouve as lágrimas que o paciente derrama dentro do peito (“Crônica de uma morte anunciada”).
García Márquez.

Por pouco não alinhavo uma teoria. Já ia dizendo que o realismo mágico é apenas uma reportagem de García Márquez sobre as entranhas de seu país, haja vista que os meninos do dicionário são tão realistas mágicos quanto ele. Mas aí me curvei às minhas lembranças de pés quebrados. E Kafka, lá doutra banda? E Juan Rulfo, anterior ao colombiano? E os surrealistas? Não encontro razão, mas, nessa viagem rasa, aportei em Murilo Mendes, ele também cheio de imagens brutas. Num de seus poemas mais conhecidos, uma paródia à “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, ele canta: “Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade/ e ouvir um sabiá com certidão de idade!” E noutro momento, em “O homem, a luta e a eternidade”, seus versos finais são estes: “Um dia a morte devolverá meu corpo,/minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins/meus olhos verão a luz da perfeição/ e não haverá mais tempo.”
Murilo Mendes, por Guignard.

Entre o pensamento bruto das crianças colombianas (e de qualquer outra, na verdade) e os trabalhos de García Márquez ou Murilo Mendes, há uma linha estendida, longa; numa ponta, o bárbaro; na outra, a sofisticação, o pensamento profundo e articulado. Mas pergunte a um escritor, os que citei ou outros, o que procuram. Aposto um contra mil que todos querem recuperar a criança que um dia foram, querem abraçar a espontaneidade e a visão assustada e virgem que os pequenos têm.


9.6.13

Hablan Español

         Na década de 80, éramos comunistas, pero no mucho. Na realidade, alguns mais, outros menos, e nenhum metido em lutas armadas. Ficávamos no nível dos comitês de solidariedade. Na PUC, fizemos um pró-Nicarágua. Muitos latinos metidos aí, e entre eles, sim, uns exilados argentinos e chilenos com maior comprometimento político. Líamos Cardenal, o poeta e padre da Nicarágua, país do qual ouvíamos as músicas de resistência. Uma delas nos levava a dançar como só a música de um Tim Maia ou de uma Madona ousam fazer. O refrão desse verdadeiro hit era mais ou menos assim: “los oligarcas de ayer, los verdes claro de hoy”.

       Bem, daí a Borges foi um pulo. Daí aos Parras outro pulo. E tome Cortázar, Garcia  Marques, Sábato, Neruda, Inti Illimani e não sei mais quem.

          Pouco a pouco, foi-se construindo uma geografia inexistente, que definia um país que tinha início no sul do Uruguai e terminava no sul dos Estados Unidos. Tudo isso teoricamente, friso, ainda que não pareça necessário, porque, vocês sabem, ninguém se livra de pequenos rancores. Nem sempre o abraço de um argentino caiu bem num chileno, nem o desse num boliviano ou peruano. Porém, era no mundo das ideias que transitávamos, e nele, uma América só.

         Não sou dos saudosistas de plantão, no máximo sinto falta de quando não tinha barriga e o cabelo era pretinho — bem, mas isso não vem ao caso. O que interessa é que essa nostalgia me veio durante a viagem que fiz a Lima, no Peru.

          Encontrei a cidade em obras, o que aumenta o seu contraste explícito: uma cidade moderna, transitada por veículos — em especial os do transporte público — velhos; uma cidade cosmopolita, habitada por Incas ancestrais.

        Povo hospitaleiro, boa comida, trânsito caótico em ruas de poucos sinais, em suma, várias camadas do tempo num mesmo lugar. Susana Baca, cantora do país, retrata bem essa síntese. Canta seus folclores, canta também a música negra americana e ainda Milton Nascimento. Se não estou enganado, foi, como nosso Tom Zé, uma das pérolas (re)descobertas e lançadas nos Estados Unidos pelo bom líder do Talking Head.

        Minhas visitas a países de língua espanhola sempre se transformam em uma oportunidade para conhecer novos artistas, particularmente os ligados à música. No Peru, foi, graças a uma dica de meu primo Lucas, essa Baca, de voz doce e interpretação contundente. Na Argentina, conheci uma moçada nova, que anda sacudindo o velho e bom tango. O senhor Joaquín Sabina é da Espanha.

          Acho estranhíssimo que se conheça tão pouco a música dessa turma. Sabina, por exemplo, é um espetáculo moderno e antenado com o mundo em que estamos vivendo assoberbados. No Brasil, o único disco dele que encontrei nas lojas foi um gravado com Fito Paez, o argentino que o pessoal do Paralamas nos apresentou. Uma pena! Sabina transita pelo mundo de Almodóvar, artista que conhecemos tão bem, ainda que o cineasta seja mais novo que o músico. Não por acaso, uma de suas músicas é intitulada “Yo quiero ser una chica Almodóvar”. Sabina é engraçado, maldito e, como soam às vezes os hispânicos, um pouco brega — um produto com açúcares de Lobão, farinhas de Chico e baunilhas do Rei.

         Enfim, minha viagem a Lima trouxe de volta a sensação de que estamos longe daqueles que estão aqui mesmo, ao nosso lado, grudados até. Não deveria ser assim.