23.5.22

Aviõezinhos de papel

À Leny e à Yara, minhas primeiras professoras

 

A crônica nos ensinou a perseguir o rodapé dos jornais. Não só ela está lá, como é de lá que extrai seu intento. Num jornal cheio das notícias tumultuadas do mundo, Rubem Braga descobriu, num cantinho, que a flor de maio havia resplandecido no Jardim Botânico e aconselhou os leitores a visitá-la com urgência, pois seria breve aquela vida.

No dia em que outro caso (em 2021, foram quase dois mil) de pessoa escravizada — uma senhora por setenta e dois anos — em lares impolutos vem à tona. No dia em que o mandatário do país se mostra mais uma vez racista e continua com sua estratégia de esgarçar a democracia, certo de que poderá simplesmente sufocá-la, destruí-la e, como déspota, manter-se no poder, desfrutando de toda a proteção contra seus crimes diários. No dia em que a crise econômica deixa de ser uma frase escrita em jornal ou discutida em textos acadêmicos e toma a vida das pessoas. No dia em que se revelam assassinatos bárbaros de civis ucranianos por soldados russos.

Bem, nesse dia, três brasileiros estavam em Salzburgo, na Áustria, para participar do “Campeonato Mundial de Aviãozinho de Papel”. Dois homens e uma mulher disputaram as provas de maior distância, maior tempo de voo e acrobacias. Assim como a flor de maio não perdura muito, os aviõezinhos não voam por um longo tempo (nosso “atleta” da prova de tempo de voo se classificou para a etapa final mantendo seu engenho no ar por 7s61, bem abaixo do recorde mundial, de 27s9). Da brevidade se alimenta o cronista? Não. A beleza, essa sim, sua matéria bruta, é que costuma ser breve. Flor, borboleta, chuva, voo de aviõezinhos de papel, tudo nasce e morre num piscar de olhos.

Torcem o nariz os leitores capturados pela urgência. Maldita alienação. Aqueles em busca de um refúgio aproveitam a crônica e tomam fôlego. Bendita sorte! O cronista não se importa com o julgamento, ele, agora, diante do campeonato mundial, voou para a própria infância, em cujos dias fez aviõezinhos de voos curtíssimos. Aliás, sempre cumpriu mal as tarefas que exigissem habilidade manual e, por isso, em toda sua vida escolar, só foi reprovado uma única vez, justamente no pré-primário, quando se aprendia a cortar e colar, a sentar em roda, a cantar e dançar. Uma vez, esteve com uma de suas professoras daquela fase e, irônico, insinuou que ela era responsável por sua reprovação. Ela riu, mas, passados uns dias, o procurou para dizer que não, não o havia reprovado. Mas deveria. Os aviões do cronista sempre embicaram mal saídos das mãos; seus desenhos foram repetidamente uma casinha com chaminé, uma estradinha e um pequeno lago, tudo sem perspectiva e mal colorido. Verdade seja dita, tinha alguma graça em dançar. Inábil com as mãos, inábil no trato: o cronista, boquirroto e metido a engraçadinho, faria bem se pedisse desculpas à professora pela brincadeira de mau gosto, afinal de contas, ele não foi reprovado. Tendo entrado um ano antes do previsto na escola, esperou mais um ano até completar a idade de ser alfabetizado.

Infância é quando não existem boletos, repete o povo. Mas também é quando não se tem consciência do desejo e não se sabe muito bem o que é a morte. Isso é verdade até o cronista se deparar com imagens de crianças fugindo da Ucrânia. Ou de crianças assustadas na Síria, no Iraque, no Afeganistão, nas favelas do Rio de Janeiro, nas reservas indígenas sob ataque de garimpeiros. Seria bom se, em aviõezinhos de papel, as pessoas chegadas a luares e flores de maio invadissem o coração das bestas à frente das batalhas e lhes devolvessem a infância. Por que não passam o campeonato de Salzburgo no horário nobre das televisões do mundo todo?

Os vencedores, é bom informar, foram um sérvio (distância), um paquistanês (tempo de voo) e um sul-coreano (acrobacias) — este, professor de ciências, aproveitou o palco e pediu a namorada em casamento. 



7.5.22

Enquanto caminho

 

Esta semana foi infame para a História do Brasil, pois não reagimos. (Dorrit Harazim,“Consciência”, O Globo, 1º/5/22)


Escolho o álbum e, com a música no fone de ouvido, desço à rua. É comum, quando caminho, ter uns pequenos delírios, desta vez não é diferente. O que é um clássico, me perguntaria alguém, talvez em mesa de bar ou na preguiça que nos toma depois do almoço de domingo. Não saberia, e não sei, explicar. Como resposta botaria as músicas que ouço para tocar na eletrola, na vitrola, no CD player, num streaming da vida, de repente até dando uma ordem àquele robô com nome de mulher (um ultraje inventar uma máquina de receber ordens e nomeá-la assim): “Moça, toque o disco Cartola, de 1976”. Gosto da frase-clichê: não sei o que é um clássico (serve para outras ignorâncias), mas sei reconhecê-lo.

Passa por mim um sujeito numa corrida estranha, um trotezinho meio desarticulado, e fico com medo de que ele caia de si. Houve uma época em que eu, em vez de caminhar, corria. Um amigo me viu e caçoou do meu jeito, decerto pensou que era um trotezinho desarticulado e que eu poderia cair de mim. De mim, não sei, mas um dia caí. Fui a uma emergência, tirei chapa, estava um coquinho. Coquinho ou não, não corro mais. 

Duas mulheres andam em minha direção, e, quando se aproximam, apesar de meu fone de ouvido, eu as ouço perfeitamente. Uma delas leva o dedo indicador da mão direita à têmpora e diz: tem de cuidar do psicólogo. (Lógico, dos cronistas também, baby!) Um casal cruza à minha frente. Ele leva o cachorro, ela empurra o carrinho com o bebê e chora. É tão difícil ver aquela moça chorando. Tento encontrar uma justificativa branda. É dia de vacinação (contra gripe e sarampo), estamos perto de um posto de saúde, então concluo que a mãe se recupera do sofrimento da criança. Tomara seja só isso. De todo modo, invejo quem chora, invejo mais ainda quem chora por coisas pequenas.

O streaming emenda ao clássico Cartola músicas que julga parecidas. Dorival Caymmi com sua voz entre terrena e etérea canta “é doce morrer no mar”. Nelson Gonçalves toma posse de Carinhoso. Um inesperado Itamar Assumpção insurge entre compositores que decerto o influenciaram e me surpreende e me deixa feliz. No meio de saltos previstos e imprevistos, um violão tímido vai num crescendo só. Paulinho Nogueira toca sua “Bachianinha número um”. Ao contrário daquela mãe, não tenho um carrinho para empurrar e, desse modo, também não tenho como dar a um homem estúpido qualquer que passe pela rua uma justificativa para as lágrimas que correrão dos meus olhos. Homem estúpido sou eu, que seguro o choro. Minto, encharco as vísceras, chorando do olho para dentro. Naquele instante, estaria incapaz de responder ao bom-dia que, um pouco antes, a moça da limpeza havia me dado.

Choro um tantinho por mim e um tantão por nós. A que ponto chegamos! Que desfaçatez é essa que nos governa, ameaça com golpe (já não é mais ameaça, discute-se apenas a data: se antes ou depois da eleição, caso o atual governo perca nas urnas) e é aplaudida e adorada? Luiz Eduardo Soares defende a ideia de que parte dos nossos problemas, ancorados naquele ainda incompreendido 2013, está na melhoria de vida dos mais pobres ocorrida nos governos do PT (me adianto, ele não nega os problemas tão conhecidos). Enfio uma metáfora no pensamento do cientista social: enfrentam-se “a gente não quer só comida”, voz relativamente nova e titânica, e o sempiterno e patético “tem muita doméstica na Disney”. Seja como for, agora tudo parece perdido. Se dançássemos uma quadrilha, o narrador diria “a ponte quebrou” e, em seguida, não desmentiria. Impossibilitados de atravessar o rio e avançar, voltaríamos ao país da fome (estamos quase lá). Nossa elite pouco se importaria (nunca se importa), pois não precisa de pontes, cruza o rio de navio, de avião. Na realidade, ela já está do outro lado, nasceu lá, e permanece feliz quando não encontra doméstica nos aeroportos e parques de diversão dos Estados Unidos, que, claro, estão do outro lado do rio. 

Num primeiro momento, confundo Paulinho Nogueira com Baden Powell, e isso me faz constatar quantos gênios a música popular brasileira produz. Meu choro cessa. É preciso me agarrar ao que não é uma esperança, mas um fato: o artista brasileiro é inventivo e sensível. Seremos salvos pelo Cartola, ou pelo Emicida.