29.10.17

Aprendido, reaprendido, por aprender


Nos últimos dias, aprendi que as estrelas se formam por meio de gases, o que não é novidade para ninguém, mas para mim era até bater os olhos naquela tela de TV existente no elevador do prédio no qual trabalho. Nem bem li o enunciado, e o texto em si era apenas o enunciado, pensei: meu deus, nossos puns de hoje serão as estrelas de amanhã. Ao mesmo tempo, me lembrei de que o metano é um dos maiores responsáveis pelo efeito estufa. Qual o balanço afinal: mais estrelas ou mais buraco na camada de ozônio? Incapaz de responder, resta-me rogar aos céus para que caiba na cozinha do universo algum espaço para o delírio dos incautos.

Não que eu não soubesse, sabia e sei faz tempo, mas nos últimos dias reaprendi, a duras penas, sempre é a duras penas, que uma ideia se esvai facilmente. Havia fechado o livro que estava lendo ("Tirza", de Arnon Grunberg, publicado pela Rádio Londres) e me ajeitava para dormir quando uma insinuação de verso me tirou o sono. Poderia ser o início de um poema. O verso ligava o silêncio à imagem de um cão sem lua. A questão é que, sem ter me levantado e anotado a ideia, do possível verso só guardei essa ligação tênue entre o silêncio e um cão sem lua. O verso em si, se houve, foi perdido, um poema que poderia ter sido escrito foi abortado, ou melhor, nem foi concebido — ah, Onã, deus da infertilidade! Se minha ignorância permite até fazer piada com essa evidência de os gases formarem as estrelas, no caso da perda de um verso, eu — esse escritor calejado (ah, Onã!) e preguiçoso, colecionador de versos perdidos — transito além da lamentação e me puno. De que maneira? Não conto, não quero que alguns leitores sintam alegria por isso.

Dados o aprendido e o reaprendido, o que ainda pode aprender um burro velho feito eu? Ganhar dinheiro. Vestir-me bem. Arrumar o cabelo. Cortejar uma dama. Rir sem motivo. Engraxar os sapatos. Falar inglês e/ou javanês. De todo modo, falar pouco e na hora certa. Pescar. Ter espírito crítico. Aderir a uma causa. Cantar no tom e sem errar a letra. Piscar um olho só. Chutar de canhota. Chutar no gol. Dançar de olhos fechados. Beijar de olhos abertos. Ler Ulysses.

Caramba, faltam muitas coisas, vou precisar de mais umas três vidas. Filho de mascate, mascatinho, portanto, proponho uma barganha: aceito morrer no espaço desta vidinha mesmo, mas, em troca, exijo que os ratos que roem os nossos queijos, sapatos, calcanhares, calças, que roem as nossas vergonhas, cuecas, barrigas, camisetas, que roem os nossos queixos, brincos, cabelos, chapéus, que roem nossa decência, enfim, roam uns aos outros até se consumirem. Como isso não acontece assim, de graça, cada um que arme sua ratoeira, recolha seus ratos e os envie para aquela gaiola, o xilindró. O voto (ou o não voto) bem pode fazer esse papel de armadilha 



16.10.17

Tomates e liberdade

É metafórico: um grupo que defende a devolução do poder aos militares jogou tomates num senhor que parece determinado a não deixar o presente cumprir sua sina de vir a ser futuro. Em permanente embate, o Brasil lançou ao ringue dois adversários que carregam em si o pior deste país cheio de piores. Vendo-me obrigado a torcer nas várias porrinhas do nosso dia a dia, dou de ombros, mas não lavo as mãos, e saio para caçar alguma esperança.

Encontro na Maré um pouco dela. Um pouco, eu disse. A solução não está inteiramente ali, claro que não, mas na Maré (nas favelas) há uma juventude que resiste sem fuzis e lamentações a isso que temos chamado de guerra às drogas. Essa juventude busca, por meio da palavra, da música, das artes plásticas, se meter entre o tráfico e o Estado para dizer que não aceita o papel que reservam a ela. Há ali uma força descomunal que, por sorte, encontra espaços de acolhida, como o Observatório das Favelas e o Centro de Artes da Maré (para ficar restrito à Maré). Aquela turma não vai se calar e vai cobrar seu espaço. Os passadistas e os que não querem perder o status quo serão engolidos por movimentos desse tipo, pois há um país novo brotando deles. Um país que é jovem, negro, feminino e elegante. O “Poetas Favelados” é a síntese disso tudo.
Silvana Mezenes, do site do Mulherio.


O Mulherio das Letras, cujo primeiro encontro se deu nesta semana em João Pessoa, é mais que um grupo de escritoras que busca chamar a atenção para o fato de que a presença das mulheres na literatura — e não só nela — tem relevância diminuída. Ao acontecer num estado do Nordeste e ao adotar um modelo no qual não há exatamente palestras, o encontro questiona várias coisas ao mesmo tempo, entre elas, a centralidade Rio-São Paulo e a verticalização num mundo — o da literatura e das artes de modo geral — no qual os artistas devem se posicionar a favor da igualdade e da proximidade.

Perspectiva da exposição "Faça você mesmo sua Capela Sistina"
A reação que os artistas — e não só eles — têm tido aos ensaios (em alguns casos, bem mais que ensaio) de censura é outro canto de esperança. Ouvi relato de uma mulher que, diante da manifestação ruidosa de alguns religiosos inconformados com a exposição “Faça você mesmo sua Capela Sistina” — de Pedro Moraleida, um artista plástico que morreu muito jovem —, resistiu à presença ameaçadora percorrendo, ainda que assustada, a sala do Palácio das Artes de Belo Horizonte de cabo a rabo. Logo depois, grupos faziam ato de protesto em defesa da exposição e, claro, da própria liberdade. Outros movimentos, com adesão de artistas conhecidos, têm se organizado para fazer frente aos censores.

Termino contando o que li em Frei Beto — num artigo n’O Globo, em 9 de outubro. O religioso diz que no século XVI a inquisição obrigou Daniele de Volterra a cobrir todos os nus que Michelangelo, seu mestre, havia pintado na Capela Sistina. João Paulo II mandou restaurar os originais uns quinhentos anos depois. Não sejamos os novos inquisidores. Não precisamos concordar com tudo, é até bom que não, mas vamos exigir que uma coisa só seja respeitada: a liberdade. 

2.10.17

Nem para o passar do sol

Meu tio Wellington, o tio Elin, costumava dizer: “hoje não estou para nada, estou apenas para o passar do sol”. Falava como troça, zombeteiro que era. Não sei se a frase é de outra pessoa, mas que meu tio poderia ser seu autor não resta dúvida. Ele era desses sujeitos inteligentes, que desprezam a inteligência sisuda, preferindo levar a vida ao rés do humor. Foi uma das figuras mais marcantes na minha vida, e morreu cedo, muito cedo, mais ou menos com a minha idade hoje.

Não vou falar de meu tio, mas aproveitar o gancho da fala dele para dizer: amigos, hoje não estou para nada. Não estou para as minhas queixas. Não estou para as minhas limitações. Não estou nem mesmo para a tragédia que desaba sobre todos nós, neste Brasil que, apesar de não sei quanto em reservas cambiais, está falido. Falido de caráter. Falido de futuro. Não estou para nada disso.

Se um pássaro canta, meus ouvidos se fecharam antes. Se uma luz brilha, meus olhos se fecharam antes. Se um abraço me alcança, meu corpo se petrificou antes. Não estou para nada.

Não estou para o sorriso da moça. Não estou para a cerveja com o amigo. Não estou para o pôr do sol. Não estou para a lua.

Guerras não me interessam. O drama humano não me interessa. A festa não me interessa.

Não estou para o gol, nem para a grande defesa ou o erro do juiz. Não estou para a desfaçatez dos políticos. Não estou para a escrita. Hoje. Tudo isso hoje.

Mas eu sei, sei bem, sou um galo sozinho, todos vocês estão atentos e potentes. E como dizia João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece a manhã: / ele precisará sempre de outros galos.” Acrescento: não tece a manhã, tampouco a noite. Melhor assim.