29.7.11

Um vagabundo debruçado sobre livros

Grã, estou no meu quinquagésimo ano de vida e não sei com quantos paus se faz uma canoa ou a cor breve do cavalo branco de Napoleão. Não posso ser catalogado entre aqueles que têm problema cognitivo sério, uma demência de fato. Sou um bocoió com algum grau de periculosidade e outro tanto, maior que o primeiro, se não minto, de inocência e bonomia.
Não saber o sabido por todos me deixa triste, um tom mais triste. Resta-me fugir, não enfrentar na lata a questão. É o que faço — lendo.
Não é loucura? Nesse mundo em que se precisa de tanto suor e trabalho, um chulo como eu lê. Passa horas debruçado sobre livros e, assim mesmo, não é capaz de encontrar neles receitas de canoa ou segredos cromáticos de um cavalo.
A questão, exatamente como dizem os cardeais da objetividade, está no foco. Mas o meu foco não é o mesmo desses caras. Gosto mais de impressões do que de assertivas, de improvisos do que de partituras. Hesitante, acompanho em “Diário de um ladrão”, de Jean Genet (Nova Fronteira), a perambulação de um ladrão, traidor e homossexual não para condená-lo ou absolvê-lo. Não para rir de alguma possível anedota. Ao atravessar o relato de Genet, que se encanta, se apaixona, venera e inveja o marginal, entrego-me amorosamente ao humano — pouco me importa se sublime ou não.

Sou da laia dos que duelam com moinhos de vento (Dom Quixote de la Mancha, Cervantes), ou dos que veem num bigode postiço (Tolo, morto, bastardo e invisível, Juan José Millás, Nova Fronteira) a chance de dar o próprio grito do Ipiranga, libertando-se assim do incômodo de certa existência. Levo na cara como Quixote e o tolo porque tergiverso quando deveria agarrar-me à retidão dos sentidos. Sou o da contramão, vagabundo meu nome.
Deitando os olhos nos livros cuja leitura me dá à mancheia lição sem pedagogia, o que aprendo, ou, com sorte, apreendo — com quantos paus se faz um breve napoleão — vale no máximo o pio de um entre mil pardais que algazarram pousados em fios elétrico de uma cidade qualquer — a minha, por exemplo. 
Abraçado ao que ora descrevo, pergunto ao deus dos idiotas: onde isso vai parar? Ele, sábia divindade herege, dá de ombros e aponta um livro como se dissesse "é lá". O ciclo reinicia. Cavucoleio tal livro para não encontrar resposta. Minha sina é o movimento, faço par com a procura.

9.7.11

Teje preso

Certa vez, vi meu primo Brandão (o sobrenome de uma família inteira foi monopolizado por ele) entrar num camburão em solidariedade ao colega que, por furtar um toca-fitas ou coisa parecida, era pego pela polícia. Houve um tempo em que minha cidade era dada a gírias locais, assim radiopatrulha, RP, era apelidada de Rita Pavone, cantora de sucesso nos anos 1960. A televisão comeu esse tempo numa bocada só — nostálgico, grito essa tese isolada e de pronto volto ao caso da prisão de meu primo: ele entrou na Rita Pavone, mas logo depois estava na rua, não gastou nem um cadinho do cimento da cela. O amigo lalau igualmente curtiu pouco o tal “lar, amargo lar”.
Outra vez, eu e um parceiro, ele da Marinha, parados defronte de uma boate, tomamos uns drinques a mais e, caindo na provocação de duas moças que trabalhavam na noite de Copacabana, fomos um pouco abusados com elas. Dois leões de chácara responsáveis pela segurança local abandonaram o posto de trabalho e enfiaram socos e pontapés no coitado do meu amigo e no coitado de mim. Quando a polícia deu o ar da graça tivemos um segundo de alívio. Na nossa cabeça, não cometêramos crime algum e ainda havíamos sido agredidos. Só que... Meu amigo foi parar na delegacia da Hilário de Gouveia. Quando cheguei lá, pedindo que o táxi seguisse de perto “aquela joaninha”, o delegado já sabia da patente do “preso” e dava dois passos atrás. Ensaiou um tímido pedido de desculpas e sugeriu que ele (e eu, que entrava porta adentro) fosse para casa e descansasse.
Contam que outro primo meu — não julguem minha família por conta de dois casos isolados, mesmo porque os personagens que ilustram essa crônica são de famílias diferentes, um da parte do meu pai, outro, da minha mãe — certa vez passou a noite no xilindró. Teria ficado agarrado à grade da janela, por onde a lua ousa passar quadrada pra dentro da cela, gritando sua mãe. A noite toda assim. A mãe, longe da cadeia, sem poder ouvi-lo, sofreu sem pregar os olhos pelo sumiço do filho. Era infundado seu sofrimento: o rapaz estava seguro, longe do perigo das ruas.

A elite, no Brasil, é presa nos momentos de exceção política. Graciliano Ramos e outros passaram um perrengue quando veio o Estado Novo. Aliás, Graciliano fez de seu diário de prisão uma das peças literárias mais contundentes do século XX. Fujo um pouco do assunto ao me lembrar —  confio na memória, o que é temerário —  que no “Memórias do cárcere” o escritor alagoano deixa clara sua aversão aos homossexuais. Se lhe diziam que o cozinheiro era gay, ele simplesmente deixava a comida de lado. Não tardará muito, Graciliano fará par com Monteiro Lobato. Este caçado por seu racismo (discutível), aquele por sua homofobia (explícita). Quando o sujeito é talentoso, suas imperfeições e até suas monstruosidades mostram apenas quão humano ele é. Ninguém é a bailarina do Chico Buarque e do Edu Lobo.
Na época da ditadura militar recente, a lista dos que dormiram no chão duro é grande. Persio Arida, que foi professor da PUC quando eu ali estudava economia, acaba de fazer, na revista Piauí, um relato sobre sua prisão. Parece que vai virar livro. A minha leitura do artigo me leva a crer que o que tem prendido Arida ao longo da vida são as grades do afeto por seu pai. Todos temos uma prisão assim só nossa, boas e confortáveis prisões.
Por falar na ditadura de 1964, conheço um projeto interessante, coordenado por Carlos Fico, historiador da UFRJ. Ele, que é estudioso do período em que os militares mandaram e desmandaram em nosso país, mantém um blog voltado para a análise do Brasil de agora (a partir do golpe), este que está vivo e pululante. Suas anotações começaram no dia da posse da presidente Dilma. O blog, espaço de reflexão e debate, também prende, no caso a nossa atenção.
Fora os momentos de exceção, que não quero de volta, a elite dorme hoje na prisão e acorda amanhã em casa, quando muito. Há casos de criminosos, larápios e prevaricadores, como o jornalista Pimenta Neves, assassino confesso, que nunca são apresentados à danada da cela.
A democracia precisa aprender a encarcerar, no momento certo e apenas nele, ricos e pobres, pretos e brancos e, usando outra expressão saudosista, geraldinos e arquibaldos. Dessa maneira, pensando num caso hipotético, sei lá onde fui tirar tal ideia, a democracia precisa prender economistas que vendem consultoria em medicina e vice-versa. Sem esquecer os que compram essas benditas consultorias.


(Teresa Cristina Pessoa Brandão é revisora das crônicas deste blog. A foto utilizada é de Doug Berry, e está em Getty Imagines.)