3.12.22

Eternos baianos

 O sujeito que xingou Gilberto e Flora Gil, lá no Catar, já deve ter dançado ao som das músicas feitas pelo baiano (quem não?). Seu ódio é importado de grupos insanos, coisa a que se apega contra a própria história. Um dia, essa turma acordou dizendo não gostar daquilo que nos é próprio, neste país cuja formação destruiu a genuinidade original — difusa, múltipla e heterogênea —, criando outra, amálgama das culturas dos dominadores e dos dominados. Gil é a África arraigada no samba, no blues, no reggae, no jazz, no rock, mas ele também é a leitura e a apropriação dessa África pelos jovens, brancos e inquietos, da Europa e dos Estados Unidos, que salpicaram os sons de pretos com um caldo da música que, por pura imposição do dominador, chamamos de clássica.

Seria pedir demais ao rico agressor — está na Copa gastando rios de dinheiro — que pense sobre sua incivilidade a partir da História. Estranho, no entanto, é vê-lo rechaçar a vida miúda que na certa leva desde sempre. Por que se esquecer de que dançou de olho naquela paquera ao som de “Palco”, “Andar com fé”, “Toda menina baiana”, “Nos barracos da cidade”? Ele deve ter sua razão. Todos eles têm, mas imagino que muitos apenas encenem e, ao chegarem em casa, liguem o som e ouçam Gil por horas. São uma espécie de clandestinos em si mesmos, sendo assim infelizes ou, me aproveitando do octogenário baiano, “gente estúpida, ô,ô, gente hipócrita”.

 

O primeiro disco de Gal Costa a me marcar foi “Índia”, de 1973. Ali se juntavam vários mundos, de tal modo que eu, com meus 11, 12 anos, meus irmãos, um pouco mais velhos, e meus pais podíamos nos reunir e ouvi-lo. A guarânia “Índia” era cantada nas festinhas de família, e a gravação da baiana mantinha o espírito da canção, o que agradava os velhos, mas também o revolucionava, alcançando a mim, então atraído por Pink Floyd e por tudo aquilo que eu, renegando a bossa nova, o samba, o choro e os sons latino-americanos, chamava de música. Graças a esse disco, mas também a outros, como “Milagre dos Peixes ao Vivo”, de Milton Nascimento, entendi que música é música e que a MPB é tão linda quanto o rock progressivo. Essa certeza se consolidou ao me apaixonar por outra gravação de Gal, “Água Viva”, de 1978. Ali estão pequenas maravilhas, como “Folhetim” e “Pois é”, ambas de Chico, a segunda em parceria com Tom, “Paula e Bebeto”, de Milton e Caetano, a deliciosa “O gosto do amor”, de Gonzaguinha, além da canção mais bonita já feita em homenagem às mães, “Mãe”, de Caetano Veloso.

Como se vê, Gal faz parte da trilha sonora da minha vida, e eu, ao contrário dessa gente ressentida e invejosa (como o truculento agressor de Gil), não preciso me esconder para escutá-la, o que é um jeito de ser feliz. Feliz, mas me sentindo desamparado com a morte repentina de uma pessoa dessa dimensão.

19.11.22

Anotações de improviso

— O que é o mercado?

— Aquele lugar onde, entre outros, o João Sílvio vendia um Canastra daqui, ó. Oferecia também arroz, feijão, até sardinha — em lata e nacional, é verdade. E tudo, veja bem, anotado em caderneta.

— Mas é esse que anda nervoso?

— Ah, não, o nervosinho é de outra categoria. Ele não vende nada, muito menos fiado, mas ganha muito e pressiona que só.

 

Ó, Deus que não existe, dou-te algum contorno, um vulto, quiçá mãos e braços, e me aconchego em ti. Agradeço-te então a existência de Milton Nascimento. Reclamo da subtração repentina de Gal, mas também agradeço por ter-nos dado essa voz, essa beleza.

 

Estar no meio de uma torcida de futebol talvez seja a coisa mais animalesca que existe. As torcidas são violentas e comportam-se como se estivessem em guerra. Dito isso, estar no meio da torcida faz um bem danado, pois liberamos os ácidos da violência, que precisam ser descarregados de uma maneira ou outra, afinal somos violentos.

 

Será que, quando os portugueses desembarcaram aqui nesta terra, que na realidade não era uma, mas muitas, cada uma ocupada por um povo indígena diferente, houve um olho no olho entre eles e o grupo nativo com quem mantiveram o primeiro contato? Aposto que não, a espoliação requer o fingimento, e este não suportaria o enfrentamento imposto pelo olhar recíproco.


Vi um sujeito parado numa esquina, e sua postura era de quem vivia uma angústia, talvez não soubesse como chegar ao endereço a que deveria se dirigir. Resolvi ajudá-lo. Ele me disse que não iria a lugar nenhum, na realidade esperava um amigo. Já ia me retirando, quando ele me chamou. Me olhou de cima a baixo. Era a mim que esperava. (Ou a qualquer outro.)

5.11.22

Teoria e tensão

Em momentos de tensão, faço teorias sem serventia e não passíveis de testagem.

Dia desses, fiz uma que relacionava as etapas da vida ao volume de chaves que uma pessoa carrega. Até os dez anos – um pouco mais, um pouco menos – ninguém tem uma. Quando eu tinha essa idade e morava no interior, as portas estavam sempre abertas. Hoje, com o perigo em todos os lugares, as crianças nunca saem sozinhas ou, quando saem, vão ao play, de onde voltam cedo, apertam a campainha e são recebidas. Dirão que estou com visão classe média alta de cidade grande. É verdade, alguns lugares ainda são seguros, e as crianças entram e saem de portas sem chaves. Em outros, a violência é tanta que elas têm sido impedidas de ter infância. Mas não vamos por aí, fiquemos no mundo idealizado. É só uma teoria.

Entre os doze e dezoito anos, dependendo de onde se vive e da personalidade dos pais, o adolescente ganha uma chave e pode ir às baladas despreocupado, não terá de incomodar ninguém ao chegar de madrugada, embora, mal comece a destrancar a porta, encontrará a mãe (principalmente ela) ou o pai plenamente despertos. Ouvirá então, enquanto se afasta da porta: “Filho, filha, tudo bem?”. Digamos que ele ou ela esteja bem – inteiro está, claro, mas que esteja em estado de quem não bebeu demais e pode responder sem culpa: “Tudo ótimo, voltem a dormir”.

Chega-se à vida adulta, e o trabalho enche o molho de chaves: a da mesinha, a do armário, a da sala. Além das chaves do carro ou do cadeado da bicicleta e a da casa dos pais, que, à medida que envelhecem, exigem atenção especial e prontidão para socorrê-los em caso de uma emergência. Há aquelas pessoas que têm a casa do amante ou da amante, embora, nesses casos, as chaves fiquem noutro chaveiro, guardadas no fundo da pasta, bolsa ou mochila, que, por sua vez, também têm as suas chaves. Hoje existem as eletrônicas, logo o volume – se uma delas servir a muitos propósitos – pode ser menor, mas o número de portas, mesas e carros continua grande.

Um dia, a coisa regride. Aposenta-se, e muitas chaves tornam-se desnecessárias. Os pais morrem, e outras perdem a utilidade. Chega-se a uma idade na qual não se pode mais dirigir, nem bicicleta. Mesmo os amores tórridos e clandestinos acabam.

Assim, quando somos mais potentes (mas não tão sábios), carregamos muitas chaves. Eis a teoria. Tão estúpida, imagine o grau de tensão que me levou a elaborá-la (palavra forte demais? Podem trocá-la, mas dela eu não abro mão). Concebi essa risível teoria na semana anterior às eleições, então é fácil imaginar a que tensão estava submetido.

Se estou mais calmo? Os problemas estão aí, travaremos imensas batalhas para recolocar o país no rumo, em campo democrático e civilizado, mas, de todo jeito, as chaves reabriram a porta do futuro. Podemos entrar.

24.10.22

Todos os latidos o latido

Estive em Tiradentes dias atrás e, entre fantasmas rebeldes reunidos na casa de Padre Toledo e amigos mais vivos que tudo, encontrei muitos cachorros soltos pela rua. Contaram-me que um turista assim feito eu, depois de uma temporada na cidade, expressou o desejo de se reencarnar ali como cachorro. Ele não está errado, os cães são bonitos, fortes, bem tratados. Até mesmo um husky siberiano visitou a mesa em que eu e os amigos mais vivos que tudo também tramávamos revoluções, ainda que a nossa passe pelo voto que expulsará do poder o incompetente e má pessoa que desgoverna o país.


Kira e Yuki
Ando sensível aos cachorros desde que minha filha adotou dois, a Kira e o Yuki. Por conta de uma viagem que ela fez, convivi bastante com eles. Foram dias intensos. Num deles, o Yuki fugiu da minha mão, atravessou a rua sem olhar e, não fosse um menininho de uns nove anos, é possível que ocorresse uma tragédia. O garoto foi para o lado do Yuki e o tocou para perto de mim, enquanto seu avô já estava com uma toalha na mão, pronto para jogar no cachorro e fazê-lo parar. Ufa. Mas, fora essa excepcionalidade, estive a mercê do jeito de ser dos caninos. Dormem, pulam no colo, pedem às vezes carinho e o tempo todo comida, se atacam uns aos outros (brincando, imagino). Latem, claro, mas tem hora até que parecem prontos a falar (conheci um que só andava sobre duas patas, achando-se bípede). Ouvir, ouvem, e com atenção (Freud deveria conviver com cães). Não é raro também enfrentarem (querendo brincar?) aquele sujeito — no caso, eu — que está sentado o dia inteiro, com os olhos no computador, trabalhando. Na verdade, eles não sabem o que é trabalho.

Tive cachorro na minha infância e depois mantive relações razoavelmente distantes daqueles que viveram ou vivem na casa de meus pais e de meus irmãos. Gosto dos que desfrutam dos quintais, com espaço para correr, dormir sob uma árvore, caçar uns bichinhos menores. Acho que desse modo se aproximam do que na essência eles são, sem a humanização forçada no convívio dentro de casa.

Em sua crônica do dia 15 de outubro, ao contar a cena a que assiste numa praça em Lisboa, enquanto trabalha em um café — uma crônica em que enaltece a segurança naquela cidade, naquele país —, Antonio Prata inicia o último parágrafo assim: “O objetivo final da civilização deveria ser o tédio. O tédio é o antípoda da barbárie.” Kira e Yuki (também os finados Tilu e Pirro e os velhinhos Popesco e Tobias) vivem entediados, não tenho dúvida disso. Sempre associei esse tédio a sofrimento, mas, depois do Prata, revejo meu ponto de vista: os cachorros já estão onde um dia almejamos chegar.

10.10.22

Cortando prego

No domingo passado, o resultado das urnas deixou meio mundo abestalhado. No caso da presidência, a ordem dos candidatos seguiu o que vinham apontando as pesquisas, mas o percentual do atual ocupante do cargo foi maior do que o esperado. Não creio que tenha sido um erro, assistimos, isso sim, a um antipetismo abandonar na última hora a terceira via, particularmente a canoa de Ciro Gomes, que teve menos votos do que se indicava. Nas casas legislativas, particularmente no Senado, a extrema direita chegou com força, dando mandato a figuras que parecem mais caricaturas do que outra coisa, razão pela qual são perigosas. A pauta moralista terá representantes vociferantes.

Na segunda-feira, oscilando entre o desânimo do resultado e a necessária força para encarar os dias até o segundo turno, passamos a trocar conversas, nos fazer afagos, nos empurrar adiante. Haja prego para cortar! Os últimos quatro anos foram trágicos, este mês não será nada fácil, e os próximos quatro anos, independentemente de quem seja o vencedor, serão igualmente difíceis. É claro que, se o mandatário de plantão ganhar, seu projeto de destruição se alastrará, pois os boquirrotos da extrema direita ajudarão a passar a boiada enquanto nós estaremos lutando para nos manter vivos (fugindo de bala das armas que estarão espalhadas por aí), em pé, com alguma força que nos leve ao futuro.

Tenho filhos jovens e, no embalo da desilusão momentânea, soltei um “caiam fora”. É uma saída covarde, mas viver num país que já é pária mundial — e será pior ainda num possível segundo mandato do despresidente — é duro demais.

Se a oposição ganhar, com todos os problemas a serem enfrentados (a situação social herdada, um congresso hostil e as pressões das várias forças coligadas), travaremos embates que poderão clarear o futuro imediato (combate à fome, às diferenças de renda, definição de uma política de segurança e tantas outras) e — colocando a questão ambiental como o ponto nevrálgico das decisões políticas — também o mais distante. Nesse cenário, gostaria de ver meus filhos, também a mim, incluídos.

Os jovens têm papel preponderante no que está em jogo, no que virá depois e devem pensar bastante antes de escolher. O atual despresidente não deu sinais, foi claro e evidente: não gosta de trabalhar, menospreza a vida (basta observar suas atitudes durante a pandemia, ou sua crença de que as armas diminuirão a violência, uma inverdade que a ciência tem demonstrado à exaustão), faz do espaço laico do estado um altar para várias religiões, que, por sua vez, cultuam um deus terreno demais e se aprazem com as benesses do dinheiro. E, ainda que a economia dê sinais de melhora (inflação e desemprego em queda), sua gestão lançou quase metade da população do país na fronteira da fome (impossível fazer as três refeições do dia), da qual trinta e três milhões não têm o que comer. Ele alardeia muito o auxílio dado aos mais pobres, mas foi uma ajuda arrancada a fórceps (assim como a compra das vacinas contra a Covid-19), com empenho do legislativo e pressão da sociedade. A situação da educação, por sua vez, é calamitosa.

Os mais velhos, além de considerar tais aspectos, temos de nos lembrar de que o caminho trilhado por este país tem sido árduo. Carregamos passivos históricos (a escravidão que é presente no racismo, a impunidade aos que transgrediram as leis e, em nome de uma ditadura, torturaram e mataram), então não é mais justificável que demos a direção do país àqueles que exaltam a sombra e por ela transitam. Menos justificável ainda fazer isso por meio do voto, direito conquistado a duras penas.

E a corrupção? Nosso sistema político, em vez de inibir, facilita os desvios. O PT transgrediu, e muita gente foi punida. Lula é inocente (e não há meio termo nisso, a despeito do que eu ou você possamos pensar). O despresidente também é, ainda que haja casos de corrupção em seu governo (na compra de vacinas, no Ministério da Educação, no tal orçamento secreto) e sobre ele e sua família pesem suspeitas fortes, quase evidências. Portanto essa questão grave, da corrupção, será combatida aos poucos, com a nossa pressão. Acreditar que, nesse aspecto, o lado hoje no poder é bom e o outro, ruim, é ser ingênuo demais. Eleitores ingênuos geram déspotas, e não queremos mais isso. O voto não é tudo na democracia, mas é o seu feito simbólico e o momento evidente de nossa participação. Se vamos votar entre o obscuro e aquele que pode nos dar chance e fôlego de mudar as coisas, vamos com o segundo, o que está na oposição.



26.9.22

Sobrevoo em Poços de Caldas

 Aos poucos, vou dando meus passinhos fora de casa. Ainda uso máscara e mantenho os braços prontinhos para uma nova dose da vacina contra esse vírus furibundo. Venha quando quiser, garota. Montado nessa coragem contida, fui à décima-sétima edição da Flipoços (Feira Literária de Poços de Caldas), cujo patrono foi, no aniversário de 50 anos do antológico Clube da Esquina, Milton Nascimento.

Gosto de ver os ônibus escolares desembarcarem meninos e meninas pequenos e outros já adolescentes e acompanhar a sua movimentação. Falam muito e se encantam com tudo. Em Poços, com um vale-livro nas mãos, eles foram à compra. Sem me apoiar em nenhuma ciência, acho que a moçada correu para os livros de fantasia e cards de não sei quê. Ah, não vou reclamar de suas escolhas, exigir que prestigiem a alta literatura, prefiro deixá-los na deles. Se são picados pelos livros, hoje leem isso, amanhã aquilo.

Festas e feiras literárias se fortalecem com mesas pensantes, convocações e compartilhamento de beleza. Na Flipoços, houve encontros importantes, como aquele que reuniu os responsáveis por eventos similares espalhados pelo Brasil. A Fli do Xingu, a de Pernambuco, a do Cerrado de Minas, o Fórum das Letras de Ouro Preto, a (quase septuagenária) Feira do Livro de Porto Alegre e a Bienal de Minas estavam lá na companhia de Gisele Ferreira, a idealizadora da feira anfitriã. Levantaram como proposta criar uma espécie de federação e, assim, ganhar força política para pressionar as várias instâncias do Estado e se aproximar da iniciativa privada.

Na Flipoços, tive notícias do Polígono Sul-Mineiro do Livro, esse entrelaçamento de pessoas e instituições que, naquele espaço de Minas, a minha Minas, faz um esforço tremendo em prol da leitura. O Polígono armou mesas para pensar a leitura e premiar leitores da região que se destacaram ao longo do ano. Acompanho o que essa turma faz, é espetacular.

A grande estrela da feira em ano musical foi Ney Matogrosso. Ele participou, num dia, da mesa de lançamento de sua biografia e, no outro, acompanhou a exibição do documentário sobre sua trajetória, feito por Felipe Nepomuceno, e respondeu a algumas manifestações da plateia. Diante de uma figura que, mais que um ídolo, parece um farol, sobrou emoção, e muita gente não conteve as lágrimas. Alguns, como eu, estavam assim porque esse senhor de oitenta anos carrega uma ideia de país pela qual lutamos e que, hoje, está ameaçada. Outros tinham em Ney a força que lhes deu ar e coragem. Um homem, no meio do caminho entre a juventude e a velhice, pediu a palavra. Não queria dizer nada, apenas que Ney o autorizasse a se aproximar (de máscara, porque Ney anda de máscara) do palco e beijar sua mão. Naquele beijo, de um, o beijo de todos.

Em feiras e festas, os bastidores são tão importantes quanto os eventos. Na secretaria, onde tomávamos um bom expresso e beliscávamos um delicioso docinho de leite, trocávamos ideias e livros, firmávamos amizades, prometíamos encontros. Não há como não registrar como as responsáveis (equipe feminina, o que é digno de registro) pela organização do evento nos acolhiam de forma eficiente e amorosa. Coisas de Minas, posso garantir.

Tive encontros com gente não ligada diretamente à feira. Procurei o Pedro César, músico e ativista de Poços, que eu havia conhecido no ano passado no Rio. Tomamos algumas cervejas, e ele me apresentou a outros jovens – à Carol, por exemplo, que papeou comigo enquanto eu tomava um chope num dia e, no outro, papeou comigo também tomando um chope  – e me aproximou da esperança, esse sentimento que nos estão sequestrando. A intermediação da mesa de que participei foi feita pela Cacá D’Arcadia, outra jovem bem preparada e que disputa, pelo PT, uma vaga na Assembleia de Minas.

Todos os encontros foram precedidos por um não previsto. Cheguei à cidade às cinco da manhã, e Danilo estava na rodoviária para me levar ao hotel. Conversador, ele logo disse que não era da cidade, havia nascido não muito longe dali. Perguntei onde. Em Passos. Minha cidade, ora! Ele então perguntou de que Brandão eu era, já que na terrinha há pelo menos dois ramos (meu pai era de um, minha mãe do outro). Antes que eu respondesse, ele quis saber o nome de minha mãe. Naquela altura, Danilo apostava em quem ela poderia ser. Quando falei Haydée, ele disse que era filho da Dionésia. Ah, a Dionésia! Ela começou a frequentar nossa casa para fazer as mãos e os pés de dona Haydée e, nos feriados e férias, de não sei mais quantas mulheres. Mas Dionésia ultrapassou essa função e ajudou minha mãe no joguinho de loteria, no pagamento dos boletos, nisso e naquilo. Muitas vezes, fazia companhia à minha mãe, almoçava com ela, papeava. Enfim, Dionésia doou parte de seu afeto a nossa família, e nunca conseguiremos agradecer tamanha generosidade. Esse encontro com o Danilo e, de quebra, com meu passado anunciava dias lindos, exatamente como foram.

5.9.22

O que fazer durante o horário eleitoral

Entenda aqueles minutos que invadem a programação da televisão ou do rádio como um chamado. Assim, anote o nome de um candidato a deputado estadual, de uma rara jovem lançando-se como deputada federal, de um ou uma senadora em reeleição e dê uma pesquisada para saber um pouco mais sobre eles, pois a aparição relâmpago é insuficiente, não ajuda em quase nada.

Ou fuja à análise mais detalhada do aspirante a legislador, sente-se e ria. É uma comédia, não resta dúvida. Não só há nomes estranhos alguns remetem à profissão, ao negócio, ao fato de o indivíduo ser pastor ou policial, outros parecem apelidos forjados no mais escandaloso bullying —, como também “plataformas” de rachar o bico. No Rio, a credencial de uma determinada candidata é ser irmã de um sujeito cujo mandato acaba de ser cassado por ele ser acusado, entre outras barbaridades, de pedofilia. Quando se para e se toma fôlego, o riso estanca.

A eleição levada como esquete de circo caça-níquel prenuncia um péssimo futuro. Não seria espantoso assistir a um engolidor de fogo devorar a luz, pois é o que faz grande parte desses títeres de donos de partidos. Aquela máxima dos tempos da ditadura — o último a sair apague a luz — se voltou contra nós; não saímos, resistimos, mas um saudosista daqueles tempos não só apagou a luz, mas também arrebentou todos os fios, danificou a caixa de luz, explodiu as usinas.

Melhor então, quem sabe, se distrair com outra coisa. Um olho na TV e o outro no passado. Por favor, só não se engane com o papo de que naqueles tempos tudo era melhor. Leia “Vila dos Confins”, de Mário Palmério, e veja como eram as campanhas eleitorais quando o Brasil era rural e nem em sonho se cogitava a existência de urnas eletrônicas. No romance, um cabo eleitoral se mete no Brasil profundo com a função de agregar os grandes fazendeiros em torno da candidatura para a qual trabalha. Se o coronel fecha um acordo, bem, todos os seus empregados o acompanham — o famoso voto de cabresto. A turma que defende foto do voto ou voto manual deseja a volta daqueles tempos, bons para eles e para mais ninguém. Na realidade, sonham com a época em que nem eleições havia ou só havia, sob muita vigilância, para os cargos menores. São eles os restolhos de uma ditadura que não foi, como deveria, superada, morta e enterrada.

O tempo que o horário político sequestra de nós é propício a rememorar a infância, aquele mágico período em que, retirando alguns probleminhas, problemas ou problemões, ninguém se angustia quanto aos rumos do país, só isso vale um tesouro. Mas insisto: ontem não era melhor que agora, nem hoje será melhor que amanhã, ainda que, sim, houvesse coisas muito boas que se perderam, assim como algumas se perderão daqui para o futuro. Nesse interregno no qual uma horda de siderados quer nos convencer — seguindo um roteiro além de ruim, manipulador — de sua capacidade de resolver todos os problemas do país com soluções simplistas, malabarismos, se é para se dar o direito a um pingo de alienação, entre pela porta de Shangri-lá.

Que tal preparar um milk-shake para compartilhar com as crianças? Ou se aproximar de seu amor e dizer-lhe o quanto a vida é melhor em sua companhia? Ou roubar desse amor um beijo, um arrepio, e oferecer-se de corpo e alma ao corpo e à alma dele? Falar com um velho amigo, aquele que nunca ligou para política e só pensa em futebol? Ah, nada como uma discussão sobre futebol!

Há, ainda, o caminho dos pedregulhos, ou seja, com um paralelepípedo nas mãos, tomar as ruas com a intenção de derrubar tudo ligado a essa gente: sedes de partidos, congresso, assembleias, os palácios modernos de Niemeyer. Confesso que de vez em quando tenho vontades assim, mas a coisa só se acertará a partir da política. São falsos esses que, estando nela, vendem a ideia de que não estão.

Preste atenção no horário eleitoral, ainda que só de vez em quando, pois, entre tantos paspalhos, alguns defendem causas urgentes, pertencem a grupos marginalizados, precisam ganhar voz. Alguns carregam uma vela.

31.8.22

“O SOL PELO BASCULANTE” (Urutau, 2022), poemas de Alexandre Brandão



Basculante é um tipo de janela ou, como se dizia antigamente, um “vitrô”, em que uma parte se abre para cima e a outra para baixo, ambas niveladas por um eixo horizontal. É por onde entra a claridade num ambiente. Pode entrar também o sol, quando houver sol. É nesse lusco-fusco que dançam os poemas de “O sol pelo basculante”, inspirada coletânea do poeta Alexandre Brandão.

Produzido durante a pandemia e em pleno confinamento, o livro é quase um relato das visitas que o autor realizou naquele período aterrorizante por que todos passamos há não muito tempo e cujas cicatrizes ainda carregamos. Talvez pela reclusão forçada, talvez pelo silêncio diante do espanto, talvez pelo olhar que se voltou para dentro de si, talvez por tudo isso e mais um pouco, o autor realizou visitas e as contou em forma de poesia. Que visitas?, alguém poderia perguntar. A resposta: à infância, aos amigos, ao passado não tão distante, aos amores, à cidade natal, ao silêncio, ao fazer poético. E ao futuro, por mais paradoxal que isso pareça.

O poema “A gambiarra da garotada” traz uma beleza doída: “Era terço de vó, feitiço de vô promessa de mãe, revolta de pai / e nada de nada de o escuro ralear / e nada de nada de a luz inflamar. Escuro em casa, escuro na rua a cidade, um breu; o país, um alcatrão.”

“Primeira comunhão” fala da idade das descobertas e do suplício de não saber o que fazer com elas: “Eram tempos de missa / de pecados redimidos / de homens sisudos / de mulheres sóbrias. O menino tomou a comunhão. Pelas laranjas roubadas do vizinho, mil ave-marias / não se falou o que fazer com o desejo por dona Salete / não se falou o que fazer da alegria.”

“A montanha e os bichos” é um soco no estômago dos “você sabe com quem está falando?”: “Se a montanha / pensa, pondera, sopesa, / fatalmente conclui: a formiga e o homem têm a mesma estatura. / Para escalar a menor das montanhas, / o homem precisa de corda, treinamento, preparo físico. / A formiga, não. / Pode ir por dentro, comendo a terra, ou / por fora, como se, intacta, escorresse. / Se a montanha aprende, logo sabe que, embora minúsculos, / o homem e a formiga não são a mesma coisa. / Eficiente, a formiga / bruto, o homem. / Mas é possível que a montanha se interesse apenas pelos pássaros.”

“Em casa” remete diretamente ao confinamento durante a pandemia: “Hoje não desci à portaria. Não sei o que é do porteiro. / Não sei o que é do portão. Não sei o que é do asfalto / sem o peso apressado de ônibus e tensões.”

“Papo de branco” dispensa comentários; sua pungência fala sozinha: “Não vai acontecer com você / muito menos com seus filhos / (Não aconteceu com seus pais). / Portanto, fique calmo / observe o céu, / cheire a flor / cante para um deus todo seu. / Dance com a volúpia da sorte / dois pra lá, dois pra cá e nenhuma culpa. / O pé do soldado, o joelho do meganha — repara — / são atraídos pela pele preta.”

É clichê dizer que poemas emocionam aqueles que gostam de poesia. “O sol pelo basculante” me emocionou. E eu não estou nem aí para os clichês.

Mário Baggio (1), em seu perfil no Facebook

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(1) Escritor, redator, revisor e produtor de conteúdo, é autor, entre outros, de "Antes de cair o pano" (Editora Urutau, 2022) 

27.8.22

De última hora

A caminho da mesa no fundo do bar, o cronista comanda um chope e uma porção de amendoim ou azeitona, o que for mais fácil. Senta-se de frente para a porta, pois não quer perder um só acontecimento. O garçom deixa seu pedido e volta para perto do outro garçom. Ambos se colocam bem na entrada, um à direita, o outro, cotovelo apoiado no balcão, à esquerda. O da direita mexe no celular, o outro olha a rua. O cronista pensa no distanciamento, na incomunicabilidade. Sorve um bom gole do chope, que está bem tirado e na temperatura ideal. Ele gostaria de desejar muita coisa na vida, mas, no fundo, o chope é o máximo a que chega. Fora isso, cultiva um nada de vaidade, que é uma espécie de desejo insaciável.

Bate o dedo indicador na mesa, mas, sem produzir som para não chamar a atenção do garçom, não precisa dele. O dedo, obedecendo a uma música que só toca dentro do cronista, dança. O garçom do celular se aproxima do outro, mostra qualquer coisa na tela e os dois riem. Quer dizer, o que não se desgruda do aparelho ri desbragadamente, o outro, aquele que deixou o chope e a azeitona na mesa, é mais contido, talvez tenha sido apenas educado.

De vez em quando, ao passar pela calçada, alguém cumprimenta os garçons ou o atendente de balcão. Uma jovem senhora avisa que virá mais tarde, tem uma amiga do interior em sua casa e faz questão de que ela experimente as pataniscas de caranguejo. O cronista se dá conta de que, apesar de frequentador assíduo, jamais comeu daquela iguaria. Quando vai além da azeitona e do amendoim, repete o peixe à milanesa, acompanhado de arroz não com brócolis, mas de brócolis — uma licença poética, uma delícia culinária. No bar, estão ele, os dois garçons — um distraído com o celular, o outro retraído, talvez pensando em boletos, problemas familiares ou cultivando nostalgias —, o atendente do balcão e a turma da cozinha, gente que a despeito do pouco movimento tem muito trabalho; cortam cebola, descascam e amassam alho, limpam carne, preparam a massa do bolinho de bacalhau, fazem sabe-se lá o que com o caranguejo, recheiam pastel, amolam facas, cantarolam. Da mesa, é possível ouvir um pouco da comportada algazarra.

Ainda hoje deverá enviar a crônica à revista. Não tem ideia do que escrever. O bar vazio vezes o vazio daqueles poucos homens à espera dos clientes vezes o vazio do próprio cronista resulta em nada. Pede mais um chope e um novo potinho de azeitona. Chega a pensar em beber uma dose, uma cachaça mineira, mas desiste, afinal, há uma crônica a ser escrita. Uma crônica a ser escrita e nada a dizer. Ou por outra: há o que dizer. O governo continua péssimo. O amor não se cansa de bater com a cara na porta. A comédia toma conta das ruas, das mesmas ruas que servem de cenário à decadência. Sim, não falta assunto, mas o cronista não quer lidar com eles. Sua pretensão é observar e falar do que pouco se revela.

Dado o prazo apertado e a delícia do chope que o deixará mais tempo no bar às moscas, talvez não lhe reste outra saída a não ser a de escrever a crônica da falta de assunto. Chegar a esse ponto é a derrota, pelo menos a dele, que não é nenhum Braga ou Mendes Campos; nenhum Pelé das letras.

Pede o terceiro chope e, vá lá, um chorinho de uma daquelas de Salinas. Antes de a cachaça descer goela adentro, deixa-a descansar na boca e formigar a língua. Poderia escrever sobre os pequenos prazeres, mas quem está para pequenos prazeres? Os garçons se aproximaram um do outro e, claro, acompanham um grande acontecimento que se passa na tela do celular. Quando nada acontece, alguma coisa acontece, ainda que de forma mentirosa, no mundo virtual.

Morde com força a azeitona. No impacto dos dentes com o caroço, uma obturação leva a pior. O cronista a recolhe e embrulha-a num guardanapo de papel. Antes de enfiar no bolso aquela bolota branca, passa a língua no buraco do dente e sente o gosto do fracasso, prato mal cozido e sem tempero. Apesar disso ou exatamente por isso, pensa ter encontrado uma crônica. A tarefa será escrevê-la com humor, um mínimo de humor.

Encosta-se no balcão a fim de pagar a despesa, mas resolve pedir, para tomar em pé, outra dose e mais um chope. A saideira. O garçom do celular se aproxima e lhe mostra aquilo que o fez rir tanto, o tempo todo. O cronista pega o aparelho, firma-o bem na mão, afasta o braço e, aos primeiros segundos do vídeo, chora.

13.8.22

Joaquim

Hoje é Dia dos Pais, e eu, cronista que foge das efemérides como o diabo se regozija com o fogo, lembro-me do meu e dele conto, com afeto, algumas historietas.

Quando saiu “A palavra em construção”, primeiro livro no qual aparecem alguns continhos meus, mandei um exemplar para meus pais. Ao encontrá-los, perguntei ao velho se havia gostado. Sua resposta foi não, que parou a leitura na primeira frase. Ele se referia a “Encontro na madrugada sem lua”, que começa assim: “Meu pai morreu”. Tenho várias maneiras de entender a resposta, mas, tocado pelo humor que ele nutria, escolho a da graça. O fato é que não posso afirmar se leu ou não. Se gostou ou não.

Joaquim viajava o Brasil vendendo tourinhos e novilhas. Na juventude, em um país ainda ruralíssimo, no lombo de cavalo, em comitivas cheias de histórias. Mais tarde, enfiando a boiada num caminhão e indo logo ali, ó, no Pará, ou bem aqui, no interior do Rio de Janeiro. Em Santo Antônio de Pádua, deram-lhe o título de cidadão honorário em reconhecimento ao que fizera pela pecuária local. Se hospedava no hotel do Bidinho, que lhe reservava o mesmo quarto, de onde se ouvia o barulho do rio. Só ficava ali, comentou comigo, para ouvir aquela música.

Nesse hotel, no fim da tarde, juntavam-se os fazendeiros que iam fechar um negócio e amigos que Joaquim fez na cidade, como o inseparável Edmundo do Banco do Brasil. Um juiz de direito aposentado, morador do hotel, era presença certa. Ele, iracundo, e meu pai, moleque que só, não se entendiam. Joaquim gastava noites e noites amolando o senhor. Certa época, inventaram que meu velho tinha um caso com a única fazendeira do grupo, e o juiz, que conhecia minha mãe, não se conformou e passou a soltar os cachorros pra cima daquele “vendedor de boiada de uma figa”. A noite passava, os homens e a única mulher (ou as duas, quando minha mãe estava lá) se divertiam. O mal-humorado, em permanente revolta, ainda que ameaçasse meu pai, o devasso, com violência ou delação, nunca cumpriu a promessa nem faltou às reuniões nem as abandonou nos momentos de maior exaltação. O fato de estar sempre ali é sinal de que se divertia tanto quanto os demais. Aliás, fora daquele momento, ele e meu pai eram pura delicadeza um com o outro. Às vezes, tomavam café juntos e elogiavam a coalhada preparada na cozinha do hotel.

Eu e meu pai não tivemos grandes diálogos, não lhe pedi conselho nem ele achou por bem me dar algum. De todo jeito, alimentávamos cumplicidades. Com quatorze anos, eu dirigia pelas rodovias, enquanto ele, no banco do carona, dormia pesado. Pai, se nos param? Não tem problema, filho, eu também não tenho carteira de motorista.

O velho leu poucos poemas em sua vida, mas, à medida que o tempo passa, eu o decifro poeta. Fazia contas de cabeça de forma impressionante, porém nunca soube ganhar dinheiro. Apesar de ser uma autoridade na arte de reconhecer de longe a potencialidade de uma bezerra ou de um garrote, não cobrava pela ajuda prestada a compradores inseguros ou novatos. Apartava animais como se distribuísse palavras em um soneto, ora buscando a rima, ora preocupado apenas em encaixar tudo num quatro, quatro, três, três.

Ah, se o velho se soubesse poeta!

Ah, se eu houvesse percebido a tempo! 

(Ele me chamava de Xandão, e eu o chamava de Joaquim, intimidade de amigos.)



Joaquim, o neto mais velho, Marcelo, e eu.


31.7.22

Semana do escritor

                                                                           Dia 25 de julho é o Dia Nacional do Escritor

 (celebro todos, mas não poupo nenhum, a começar por mim)

 

Dois escritores se encontram num bar. Se encontram por acaso, jamais se fariam companhia, pois se odeiam. Um finge que não vê o outro, numa reciprocidade comovente. O que chegou primeiro chama o garçom e, em tom de quem quer ser ouvido por todos, particularmente por aquele, pede uma caipirinha à Quixote. O outro ri nas entranhas, discreto, onde já se viu tamanha estupidez. O drinque chega e é reluzente, incrivelmente bonito. O primeiro escritor dá um gole, e o segundo sente uma pontada que não consegue localizar bem onde é. Ao segundo gole do escritor de fala alta e ostensiva, o que achou a tal da caipirinha à Quixote não só um péssimo nome, mas também absurdo histórico e desrespeito literário, sente mais que uma pontada. Ele começa a ver estrelas. Quanto mais o outro bebe, mais estrelas cobrem sua visão e, logo depois, não são mais estrelas, são moinhos de vento. Então o escritor que, sem beber, se embebedava, levanta-se e começa a combater os moinhos de vento. Só no outro dia, Dulcinéia, a enfermeira roliça, lhe confidencia a razão de ele estar amarrado ao leito de um hospício.

 

**

— E o que você faz?

— Sou escritora.

— Jura?

— Por são Machado e santa Meireles.

— Você não é cristã, certo?

— Como assim?

— Esses santos não são da bíblia.

 

**

No dia em que seu amado livrinho atingiu a marca de um milhão de exemplares vendidos, ele ficou eufórico. Bote eufórico nisso. Um milhão? Pensa no que é isso. Vende-se um livro, depois um segundo, um leitor comenta e, em seguida, vendem-se dez de uma vez. Uma livraria encomenda mil e, não demora muito, mais mil e depois mais mil e enfim cinco mil. Que loucura, um milhão. Me belisca que vou ter um troço. Ah, tremenda alegria. Alegria é pouco. Tremenda felicidade! Uma coisa dessas deveria ser desfrutada, o que faria descendo à rua e experimentando a notoriedade. Mal posou o pé na calçada, recebeu uma livrada na cabeça. Nem teve tempo de olhar de onde partia o ataque, que livro era, caíram sobre seus ombros mais dois e, no próximo segundo, outros três e quatro. Saiu correndo, enquanto novos o atingiam feito bala. Conseguiu olhar de relance a capa de um deles, e era o seu. O seu! Dobrou a esquina e, quando se achava salvo, levou uma saraivada de tiros, uma biblioteca inteira saída de uma baioneta adaptada. Disparou em fuga feito um doido. De vez em quando, olhava para trás e via que a pilha de livros só fazia crescer, logo tomando a calçada e o asfalto. No barato, eram cem mil, dez por cento de sua venda. Que diabos teria ocorrido? De repente, o ataque cessou, e ele, ao chegar esbaforido a um novo cruzamento, viu uma senhora velha, encarquilhada e encurvada, apoiando-se, com a mesma mão com que segurava uma sacola de mercado, numa bengala. Resolveu ajudá-la a atravessar a rua. Estendeu-lhe o braço. Davam passos lentos, no ritmo dela. No meio do caminho, o sinal abriu, e os carros começaram a buzinar. Foi então que a mulher olhou para ele. Olhou, desviou o olhar na direção dos automóveis. A buzina não se intimidou, tampouco ela, que, enfim, encarou seu guia.

— Você não é o autor deste livro aqui? — parou (carros em ponto morto aceleraram, buzinas blateraram, motoristas xingaram) e, com um grande esforço, tirou da sacolinha o exemplar do best-seller.

— Sim, sou eu.

Ela então, com movimento surpreendentemente rápido, levantou a bengala e acertou a testa do escritor. Motoristas e caronas aplaudiram, passantes uivaram, moradores jogaram páginas picotadas do livro pela janela. Depois, tudo perdeu a pressa. A senhorinha poderia terminar de atravessar a rua, a cidade estava salva.

 

                                                                **           

— Mãe?

— O que foi?

— O livro...

— O que tem ele?

— Bem, sabe, ele me deu uma vontade danada de continuar viva.

16.7.22

Parque de distração

 No Brasil, todo mundo está precisando dar um descanso à cabeça. Para isso, existe um parque cheio de possibilidades que vão do joguinho eletrônico ao carteado, passando por uma leitura leve. Há, meio intrusa, uma opção que me agrada muito: brincar de caçar palavras que sumiram das ruas.

Na minha infância, em casa com duas moças que demandavam intensamente a máquina de costura, chulear era palavra usual. Para quem não sabe, seu significado é dar uns pontinhos na beira do tecido para ele não desfiar. Eu ignorava, mas o Houaiss me conta que chulear também é, ou foi, “ficar na expectativa de obter algo muito desejado”. Chuleei a manhã toda o encontro com Geralda. Ah, até os nomes se perdem pelo caminho. Segundo o IBGE, na década de 1950, havia umas vinte mil Geraldas no Brasil; sessenta anos depois, não chegavam a mil.

A distração por meio de palavras mortas é uma coisa meio sofisticada, cerebral. Ora, então, é melhor agarrar-se a coisa mais trivial: sair à rua em busca de um refúgio, o que não falta no Rio de Janeiro.




Me sentei na mureta da Urca. À minha frente, num dia azul de inverno, o mar, o Cristo Redentor, lá longe o Dedo de Deus. Enfim, uma paisagem exuberante, capaz de restituir o fôlego ao mais estressado entre os estressados. Acontece que, um pouco adiante, havia uma moça linda, mas linda mesmo. Ela também contemplava a beleza do Rio de Janeiro. Ela lá, eu cá: só isso. Homem educado em velhos tempos, se eu não houvesse aprendido tanto com as mulheres desde então, teria sido inconveniente. Talvez a ficasse olhando descaradamente ou a importunasse puxando assunto. Mas sei que não é assim, é preciso respeitar, e eu respeito. Para controlar o impulso, os barcos no mar, os aviões passando rente ao Cristo a caminho do Santos Dumont.

O grupo Rumo tem uma composição chamada “Minha cabeça”. Ela diz: “Eu vou pensar um assunto, certo? / um assunto que eu escolho, é claro / então eu faço força, força, força / e olha o que acontece / não adianta ter cabeça / ela pensa o que quer / para, cabeça / assim você me enlouquece / não cansa você?” Sempre cantei essa música para crianças, primeiro meus sobrinhos, depois meus filhos e agora meus sobrinhos-netos. Elas se interessam, a meu ver por começarem a entender que a relação com a cabeça é complexa. Mas, nesse momento, penso na música porque, naquele dia na Urca, ao olhar a montanha, os barcos, os aviões, não consegui me distrair da moça linda e chuleei um encontro com ela, que, aposto, não se chama Geralda. Mas nada foi além da fantasia, isso que é uma espécie de carrinho de trombada sozinho na pista, sem bater em ninguém, sem bater em nada, rodando em torno de si mesmo.

2.7.22

Ternura

Eu matutava sobre a enrascada na qual estamos metidos, a violência que tomou o país. Convenhamos, a violência não é de hoje, mas nunca havíamos visto o Estado ao lado dela, seu cúmplice. Quer dizer, vimos, e nem faz tanto tempo assim, no entanto tudo levava a crer que era página virada ou página que, com o empenho de todos, ia sendo virada. Todos, todos, não é verdade, uma maioria, quem sabe. Nesse torvelinho, cavava desesperançado o chão duro dos dias.

Foi quando, entre a meditação, o sonho e o delírio, no meio do silêncio, brotou a palavra ternura. Ternura, ternura, ternura. Se assentou ruidosa, relâmpago e trovão. Sou uma deusa. Sou a razão da existência. Sou a única saída. Subservientes, todos os ecos da razão correram em busca daquilo que fizesse jus aos preceitos da ternura. O carinho de mãe. O sorriso de criança. A cumplicidade de um olhar. O amor. A ternura disse, como se fosse o oposto de si mesma, não basta, é preciso mais. Mais? Um fato, um fato, a ternura clamou por um fato.

Sinapses em curto-circuito, memórias atabalhoadas, escrutínio catatônico em cada um dos mais de trinta milhões de segundos vividos, e tudo que conseguia retribuir ao pedido da ternura era a repetição. O carinho de mãe. O sorriso de criança. A cumplicidade de um olhar. O amor. Mas a demanda da ternura exigia o agora. Agora, justo agora, quando, a ferro e fogo, nos aliamos à incompreensão, nos confundimos com ela, fazemos dela nossa razão de ser?

Uma imagem pousou em minha cabeça, esse espaço infinito e compacto. Um homem na mata. Ele está sentado e canta. Ele gira a cabeça, olha para trás, volta com a cabeça para a posição inicial. Ele canta em uma língua nativa. Ele carrega um sorriso. Pura ternura.

É Bruno (1).

Bruno Pereira, aquele que fez da luta com e pelos indígenas sua grande missão, primeiro como agente do Estado e, depois de perseguido por este mesmo Estado — que abriu mão de proteger os indígenas —, trabalhando para a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Bruno Pereira, assassinado na mesma emboscada que deu fim à vida do jornalista inglês Dom Phillips.

A partir do próximo ano, teremos de reconstruir um país arruinado por forças retrógadas, obscuras, violentas, portanto teremos de resgatar a ternura. Aquela que se encontra além do carinho de mãe, do sorriso de criança, da cumplicidade de um olhar, do amor; a que nutre os que lutam pelos desassistidos; a que anima quem se propõe a garantir aos primeiros habitantes dessa terra o que é deles de direito. Regaremos com essa ternura transformadora cada canto do país, quem sabe, assim, descolonizando-o de si mesmo, de sua elite.

É um longo processo, e Bruno, o terno, é a fonte.

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(1) O vídeo no qual Bruno Pereira canta pode ser visto aqui.

20.6.22

Bom dia

 

Devo esta crônica a Cortázar, pois foi escrita depois de ler “Retorno de la noche”, um conto de 1941 que só veio a público após a morte do escritor, em 1984.


Acorda e, de pronto, dá-se conta de que está vivo. Não é pouca coisa, ainda que seja o tipo de constatação que não se compartilha com ninguém. “Hoje acordei e estava vivo.” “Ora — reagirá o interlocutor —, que tremenda coincidência, eu também.” É difícil encontrar a diferença naquilo que é comum a todos, mas a verdade é que uns têm bunda grande, outros, nariz adunco e há os que possuem mãos menores que as tão pequenas da chuva (uso a imagem de E. E. Cummings, na tradução de Augusto de Campos).

Existem, enfim, aqueles que se surpreendem por acordar vivos. Os tristes? Talvez sim, e é provável que alguns deles se decepcionem com isso. Os que foram dormir depois de um instante único de felicidade (no amor, no trabalho)? Podem temer o dia à frente, pois há um passado radiante, com alta chance de não se repetir.

A vida lhe tem sido boa e ruim, deprimente e excitante. Portanto, ao se beliscar para ter certeza de que está vivo (no mínimo acordado), age como o homem que, ao se olhar no espelho, se pergunta por que aquele nariz tão grande não sendo nem lobo para cheirar a netinha destemida, que enfrenta o bosque. “Estou vivo.” Levanta e dança? Continua deitado e adia chegar ao cotidiano que, pela manhã, o quer de dentes escovados, banho tomado e disposto a trabalhar e não deixar a engrenagem do lucro e da produção emperrar?

Na noite anterior, dormiu na sala, diante de uma televisão fastidiosa, e nem sabe como foi para o quarto. Na casa não existe nenhum cachorro, que, numa hora dessas, poderia acordar, levantar as orelhas e, num suspiro, voltar ao sono. (Os cachorros se admiram por acordar vivos?) Bem, foi uma noite como um monte de outras na sua vida de anos que, para serem contados, demandam vários dedos a mais que os vinte de seu corpo. Tem vontade de dançar não para celebrar alguma alegria, algum prazer. Dançar para chamar a chuva (e agarrar-se às suas mãos) e, com ela, limpar o quintal de sua memória da infância.

Apesar da vontade, não se levanta, nem mesmo requebra sobre o colchão. Se tivesse um cão, o bichinho já o teria tirado de suas cismas, exigido uma água limpa, a ração matinal, o passeio. Eis a percepção exata do tamanho de sua solidão. Solitário, mas com ganas de dançar. Bate palmas. Primeiro na cadência de um partido alto. Logo se perde, atravessando o samba. Tenta outro ritmo. Novo desacerto. Bate então palmas como se, à porta da casa de alguém, se anunciasse. “Olha, vim trazer essa encomenda que o papai mandou.” “Eita, menino vivo esse do Bandolim.” Guarda de um tempo nem tão delicado a delicadeza. Descobre então que será ela a sua parceira de dança. E isso o faz pular da cama. 

Coloca um dos braços sobre a barriga, estica o outro no ar. Sai, de manso, dançando uma valsinha. “Não vá pisar no pé de sua parceira!” “Tranquilo, as sombras não têm pé.” Capricha, solta o corpo. Troca a música. Michael Jackson. James Brown. Jorge Benjor. Saracoteia, afinal acordou vivo. Tira a mão da barriga, abre os dois braços, olha para cima (para o céu, se estivesse ao ar livre) e dança solto e sorrindo. O horror está lá fora; lá fora com seus algozes e energúmenos, com aqueles que só se sentem vivos ao arrancar a vida de alguém. Não é nenhum desses.




4.6.22

A menina me chamou de poeta

Sempre achei estranho ser chamado de poeta e já explico o porquê. Antes, recorro à memória e encontro o rosto de uma moça bonita, mais velha que eu, portanto fora das minhas possibilidades de conquista. Ela me chamou de poeta, e não me lembro o motivo. Talvez fosse por conta de alguma bebedeira na qual, exibido, eu tenha recitado um poema – na adolescência, a cada porre, declamava, compungido, a introdução de “O Ébrio” (“Nasci artista, fui cantor...”).

Aquela moça era mesmo mais velha? Talvez fosse uns meses, um ano, vá lá. Na juventude, essa diferença é suficiente para separar mulheres de meninos. Hoje, pode ser que ela esteja com a minha idade, se não estiver mais nova. Como nunca mais a vi e não soube de seus caminhos pelo mundo, ela, de quem nem o nome guardei, continua com seus dezessete anos.

Confesso que experimentei uma alegria danada ao ser chamado de poeta. Depois, bem, depois caí em mim, eu não era poeta coisa nenhuma. Naquela época, compunha umas musiquinhas, portanto era exagero ser chamado assim. E agora, com dois livros de poesias lançados, mantenho a desconfiança de que essa roupa não me veste.

Poeta é um negócio grande demais. Poeta é aquele francês, gênio aos dezessete. Poeta é o português de sete faces. Poeta é aquela polonesa cujo nome já é uma odisseia. Poeta é o moço de Itabira ou a moça que, em versos, romanceou a inconfidência. Enfim, poeta é imensidão. E eu — peço vênia ao poeta da delicadeza —, eu sou imensidinho. Mas tem mais: poeta é sensível, e eu não sou. Quer dizer, não era.

Tenho me tornado sensível até demais. Telespectador acidental, me vejo chorando (mas disfarço) ao ver as crianças cantando num programa de calouros sofisticado, com grife, e fico bambo (sorte estar sentado) ao assistir à cena na qual Zé Leôncio (Marcos Palmeira) se descobre pai de Zé Lucas de Nada (Irandhir Santos). Não é sensibilidade, é sentimentalismo, e a pequena distância que separa o sensível do sentimental transforma o poeta num nada. 

Até parece que estou preocupado com essa história de ser poeta ou não. Longe disso, meu ponto é outro, é o de ficar abismado em saber que já me contentei com pouco, com uma palavra dita por uma menina linda e inalcançável. Ah, mas, se me alegrei com algo assim tão básico, acho que sempre tive alma de poeta. 

23.5.22

Aviõezinhos de papel

À Leny e à Yara, minhas primeiras professoras

 

A crônica nos ensinou a perseguir o rodapé dos jornais. Não só ela está lá, como é de lá que extrai seu intento. Num jornal cheio das notícias tumultuadas do mundo, Rubem Braga descobriu, num cantinho, que a flor de maio havia resplandecido no Jardim Botânico e aconselhou os leitores a visitá-la com urgência, pois seria breve aquela vida.

No dia em que outro caso (em 2021, foram quase dois mil) de pessoa escravizada — uma senhora por setenta e dois anos — em lares impolutos vem à tona. No dia em que o mandatário do país se mostra mais uma vez racista e continua com sua estratégia de esgarçar a democracia, certo de que poderá simplesmente sufocá-la, destruí-la e, como déspota, manter-se no poder, desfrutando de toda a proteção contra seus crimes diários. No dia em que a crise econômica deixa de ser uma frase escrita em jornal ou discutida em textos acadêmicos e toma a vida das pessoas. No dia em que se revelam assassinatos bárbaros de civis ucranianos por soldados russos.

Bem, nesse dia, três brasileiros estavam em Salzburgo, na Áustria, para participar do “Campeonato Mundial de Aviãozinho de Papel”. Dois homens e uma mulher disputaram as provas de maior distância, maior tempo de voo e acrobacias. Assim como a flor de maio não perdura muito, os aviõezinhos não voam por um longo tempo (nosso “atleta” da prova de tempo de voo se classificou para a etapa final mantendo seu engenho no ar por 7s61, bem abaixo do recorde mundial, de 27s9). Da brevidade se alimenta o cronista? Não. A beleza, essa sim, sua matéria bruta, é que costuma ser breve. Flor, borboleta, chuva, voo de aviõezinhos de papel, tudo nasce e morre num piscar de olhos.

Torcem o nariz os leitores capturados pela urgência. Maldita alienação. Aqueles em busca de um refúgio aproveitam a crônica e tomam fôlego. Bendita sorte! O cronista não se importa com o julgamento, ele, agora, diante do campeonato mundial, voou para a própria infância, em cujos dias fez aviõezinhos de voos curtíssimos. Aliás, sempre cumpriu mal as tarefas que exigissem habilidade manual e, por isso, em toda sua vida escolar, só foi reprovado uma única vez, justamente no pré-primário, quando se aprendia a cortar e colar, a sentar em roda, a cantar e dançar. Uma vez, esteve com uma de suas professoras daquela fase e, irônico, insinuou que ela era responsável por sua reprovação. Ela riu, mas, passados uns dias, o procurou para dizer que não, não o havia reprovado. Mas deveria. Os aviões do cronista sempre embicaram mal saídos das mãos; seus desenhos foram repetidamente uma casinha com chaminé, uma estradinha e um pequeno lago, tudo sem perspectiva e mal colorido. Verdade seja dita, tinha alguma graça em dançar. Inábil com as mãos, inábil no trato: o cronista, boquirroto e metido a engraçadinho, faria bem se pedisse desculpas à professora pela brincadeira de mau gosto, afinal de contas, ele não foi reprovado. Tendo entrado um ano antes do previsto na escola, esperou mais um ano até completar a idade de ser alfabetizado.

Infância é quando não existem boletos, repete o povo. Mas também é quando não se tem consciência do desejo e não se sabe muito bem o que é a morte. Isso é verdade até o cronista se deparar com imagens de crianças fugindo da Ucrânia. Ou de crianças assustadas na Síria, no Iraque, no Afeganistão, nas favelas do Rio de Janeiro, nas reservas indígenas sob ataque de garimpeiros. Seria bom se, em aviõezinhos de papel, as pessoas chegadas a luares e flores de maio invadissem o coração das bestas à frente das batalhas e lhes devolvessem a infância. Por que não passam o campeonato de Salzburgo no horário nobre das televisões do mundo todo?

Os vencedores, é bom informar, foram um sérvio (distância), um paquistanês (tempo de voo) e um sul-coreano (acrobacias) — este, professor de ciências, aproveitou o palco e pediu a namorada em casamento. 



7.5.22

Enquanto caminho

 

Esta semana foi infame para a História do Brasil, pois não reagimos. (Dorrit Harazim,“Consciência”, O Globo, 1º/5/22)


Escolho o álbum e, com a música no fone de ouvido, desço à rua. É comum, quando caminho, ter uns pequenos delírios, desta vez não é diferente. O que é um clássico, me perguntaria alguém, talvez em mesa de bar ou na preguiça que nos toma depois do almoço de domingo. Não saberia, e não sei, explicar. Como resposta botaria as músicas que ouço para tocar na eletrola, na vitrola, no CD player, num streaming da vida, de repente até dando uma ordem àquele robô com nome de mulher (um ultraje inventar uma máquina de receber ordens e nomeá-la assim): “Moça, toque o disco Cartola, de 1976”. Gosto da frase-clichê: não sei o que é um clássico (serve para outras ignorâncias), mas sei reconhecê-lo.

Passa por mim um sujeito numa corrida estranha, um trotezinho meio desarticulado, e fico com medo de que ele caia de si. Houve uma época em que eu, em vez de caminhar, corria. Um amigo me viu e caçoou do meu jeito, decerto pensou que era um trotezinho desarticulado e que eu poderia cair de mim. De mim, não sei, mas um dia caí. Fui a uma emergência, tirei chapa, estava um coquinho. Coquinho ou não, não corro mais. 

Duas mulheres andam em minha direção, e, quando se aproximam, apesar de meu fone de ouvido, eu as ouço perfeitamente. Uma delas leva o dedo indicador da mão direita à têmpora e diz: tem de cuidar do psicólogo. (Lógico, dos cronistas também, baby!) Um casal cruza à minha frente. Ele leva o cachorro, ela empurra o carrinho com o bebê e chora. É tão difícil ver aquela moça chorando. Tento encontrar uma justificativa branda. É dia de vacinação (contra gripe e sarampo), estamos perto de um posto de saúde, então concluo que a mãe se recupera do sofrimento da criança. Tomara seja só isso. De todo modo, invejo quem chora, invejo mais ainda quem chora por coisas pequenas.

O streaming emenda ao clássico Cartola músicas que julga parecidas. Dorival Caymmi com sua voz entre terrena e etérea canta “é doce morrer no mar”. Nelson Gonçalves toma posse de Carinhoso. Um inesperado Itamar Assumpção insurge entre compositores que decerto o influenciaram e me surpreende e me deixa feliz. No meio de saltos previstos e imprevistos, um violão tímido vai num crescendo só. Paulinho Nogueira toca sua “Bachianinha número um”. Ao contrário daquela mãe, não tenho um carrinho para empurrar e, desse modo, também não tenho como dar a um homem estúpido qualquer que passe pela rua uma justificativa para as lágrimas que correrão dos meus olhos. Homem estúpido sou eu, que seguro o choro. Minto, encharco as vísceras, chorando do olho para dentro. Naquele instante, estaria incapaz de responder ao bom-dia que, um pouco antes, a moça da limpeza havia me dado.

Choro um tantinho por mim e um tantão por nós. A que ponto chegamos! Que desfaçatez é essa que nos governa, ameaça com golpe (já não é mais ameaça, discute-se apenas a data: se antes ou depois da eleição, caso o atual governo perca nas urnas) e é aplaudida e adorada? Luiz Eduardo Soares defende a ideia de que parte dos nossos problemas, ancorados naquele ainda incompreendido 2013, está na melhoria de vida dos mais pobres ocorrida nos governos do PT (me adianto, ele não nega os problemas tão conhecidos). Enfio uma metáfora no pensamento do cientista social: enfrentam-se “a gente não quer só comida”, voz relativamente nova e titânica, e o sempiterno e patético “tem muita doméstica na Disney”. Seja como for, agora tudo parece perdido. Se dançássemos uma quadrilha, o narrador diria “a ponte quebrou” e, em seguida, não desmentiria. Impossibilitados de atravessar o rio e avançar, voltaríamos ao país da fome (estamos quase lá). Nossa elite pouco se importaria (nunca se importa), pois não precisa de pontes, cruza o rio de navio, de avião. Na realidade, ela já está do outro lado, nasceu lá, e permanece feliz quando não encontra doméstica nos aeroportos e parques de diversão dos Estados Unidos, que, claro, estão do outro lado do rio. 

Num primeiro momento, confundo Paulinho Nogueira com Baden Powell, e isso me faz constatar quantos gênios a música popular brasileira produz. Meu choro cessa. É preciso me agarrar ao que não é uma esperança, mas um fato: o artista brasileiro é inventivo e sensível. Seremos salvos pelo Cartola, ou pelo Emicida.






25.4.22

Fim do armistício

 Blandina não se conformou. Leu, releu, treleu. Por que condenar a compra de remédios para disfunção erétil, próteses penianas e lubrificantes íntimos feita pelas forças armadas? Manter a tropa cheia de vigor garantiria que, quando o país necessitasse de seus homens, eles estariam lá fortes e plenos. Tudo pela Pátria, portanto, despesa justificadíssima. Só que, naquele cantinho de Copacabana, coabitado por ela e seu adorável generalzinho, não havia chegado nem uma mísera amostra grátis da pílula milagrosa.

Resolveu ligar para umas amigas. Cuidadosa, daria voltas até tocar em assunto tão delicado. No meio da conversa, especularia se elas viam aquela aquisição como um escândalo ou se era mais uma violência da imprensa antipatriótica.

— Alô, querida Dinah. Quanto tempo!

— Pois é, Blandina, essa gripezinha tá custando a passar, não é? Ninguém mais promove um baile, uma reunião, uma biriba.

— Uma tristeza. Como se não bastasse, tem essa imprensa maldosa, caluniadora. Viu essa história dos remedinhos azuis?

— Pecado, isso é pecado.

— Pecado?

— Mentir é pecado, Blandina. Veja se nossos soldados precisariam disso! A julgar pelo meu, é tiroteio todos os dias — um risinho maroto foi o ponto final de Dinah.

— Claro. Aqui também é uma guerra sem fim.

Gargalharam com gosto.

Ligação terminada, Blandina caiu no choro. Se Dinah, 70 aninhos, cinco mais velha que ela, se fartava da compra, ela... Ou a amiga estaria mentindo? Fossem os papéis invertidos, tinha dúvidas se contaria a verdade.

— Ih, Dinah, nem posso dizer que a bandeira branca aqui está fincada, porque o verbo fincar foi por nós esquecido.

Seria o fim do prestígio de seu cinco estrelas. Nem pensar numa humilhação dessas. Concluiu então que Dinah, no alto de sua experiência, mentiu. Mentiu e, ligação encerrada, pintou uma péssima imagem da esposa do venerável general P. Flácido. Que vergonha.

Como um verdadeiro SNI, Blandina deu uma geral nas coisas do marido. Revirou gavetas, pastas de documento, bolsos das fardas, arquivos no computador, declaração de imposto de renda. Fora uns rascunhos de golpe aqui e ali, nada havia digno de nota. Uma vida de marasmo. Nem amante o danado parecia ter.

Decidiu ir à farmácia do exército. Lá diria que sofria de problemas pulmonares — razão pela qual a “pílula celeste” (poderia chamá-la assim?) teria sido comprada — e exigiria uma boa quantidade do tal levanta defunto. Tomou um banho caprichado, maquiou-se com esmero, espalhou talco no pescoço e gotas de um francês nos pulsos. Se enfiou num vestidinho não muito chique, mas formal, meteu os óculos escuros comprados em Miami e chamou um táxi.

Ao chegar a Triagem, estranhou a fila imensa e só de mulheres, a maioria conhecida, inclusive Dinah. O que estaria acontecendo? Passara a manhã encafifada com a polêmica em torno da compra e se esquecera de olhar a televisão. Não demorou a concluir, com absoluta certeza, que nada de grave acontecera, todas estavam ali pelos seus mesmos motivos. Perfilou-se ereta, convencida de ter escolhido muito bem a roupa, os óculos, o perfume. Ali estava uma mulher de vida sexual invejável.

Ao dar adeusinho a Dinah, lá na frente, a dois passos do balcão de atendimento, Blandina pensou nas mentiras da amiga e quase foi lá rir da cara dela ou tirar satisfação, mas achou melhor puxar assunto com quem estava a seu lado, Cândida, a mulher do general C. Langoroso. Falaram sobre o clima, sobre como a vida era melhor com os militares de volta ao poder; contaram de seus filhos, de seus cachorros; lamentaram a falta do joguinho das quartas-feiras; por fim, trocaram receitas, se fizeram elogios. Podia-se adiar, mas evitar saber a razão de a outra estar ali era impossível. Blandina se adiantou para não ser pega de surpresa.

— Ora, Blandina, é cada pergunta.

Cândida gaguejou e, sem responder, fugiu para uma segunda fila que se formava. Diante de fuga tão evidente, Blandina transformou suas suspeitas em certeza: cada mulher daquelas buscava festim para dar fim à trégua. Se as outras tiveram coragem de fazer o pedido, ela não soube, mas supôs que não. À Blandina faltou confiança e, em vez do azulzinho, pediu cloroquina, remédio que não servia para Covid e menos ainda para dar fim ao armistício e reiniciar a saudosa guerra, uma batalha que fosse.

9.4.22

Domingo sem sol

ao Anthony Almeida

A crônica não reserva espaço para o pessimismo. Que uma melancolia débil ou uma tristeza perplexa a visitem com cerimônia, aceita-se, mas não a queiram viva no pântano, no inferno, na escuridão. A crônica é a voz espantada das cigarras, a presença inquieta do sanhaço na jabuticabeira, o olhar baço da senhora que não sabe dar informação na rua. “Dona, onde fica a loja de material de construção?” “Ah, meu filho, tudo muda tão depressa.”

A crônica não pode deter os guerreiros, mas faria bem ao mundo se lida pelos imbecis comandantes de armas. Ela não tem força para reverter o conflito dos casais, porém, se pudesse, sopraria em seus ouvidos um dos Noturnos de Chopin e a consciência de que a vida, em potência, é um convite a amar sem interesse. A crônica não se atreve a invadir os celulares e pedir a atenção de seus donos, mas, ora, se ganhasse deles uma escuta pequena e fugaz, os devolveria aos mesmos celulares, só que amparados e livres dessa espécie de busca eletrônica por salvação.

A crônica não canta muito bem. Não dança nada bem. Gagueja. Baixa os olhos se está em evidência. Por ser dotada de tantas inabilidades, ao falar, está certa de que suas palavras são como as cores que habitam as efêmeras borboletas. Pretensiosa, sim. A crônica almeja, nos minutos arrancados dos homens e das mulheres em sua leitura, fazê-los esquecer a própria existência. Quem é, é o outro, aquele de quem ela fala. Não pretende, com isso, tornar-se poderosa, ao contrário, sua ambição é devolver a vida aos vivos.

A crônica é parente das brincadeiras hoje esquecidas. Prima da amarelinha, meia-irmã da cabra-cega, confidente do passa-anel, carrega a infância de todos, inclusive ou principalmente daqueles dos quais ela foi subtraída. Por isso, comunica-se pelo coração e, de leve, toca o leitor durante a conversa.

Falo das crônicas de um domingo sem sol. Mas talvez fale de qualquer uma: noturna, luminosa, pletórica, seca, de rua, de salão, ébria, careta. No fundo, todas sonham despertar no leitor o riso — o sorriso, na verdade. 

27.3.22

Cenas de resistência

 O fato é que nem ele nem ela dançam muito bem a valsa. Por sorte, a valsa anda sumida dos salões, e eles disfarçam a inaptidão sacolejando-se em outros ritmos, sem chegar, verdade seja dita, ao funk. Ela por achar que lhe faltam os atributos buzanfânicos, ele por uma certa recusa ao novo. Mas, entre a valsa e o funk, dançam tudo aquilo que é sincopado e que, em certos momentos, os faz até colar o rosto um no outro. De rostinhos colados, o mundo é aquele trem lá fora, complexo, violento, nada musical. O mundo é o que se esquece.

 

Em pleno século XXI, dois meninos resolvem brincar de cowboy. Ninguém entende muito bem, nem mesmo o pai, nascido no último vicênio do século XX, nunca havia brincado daquele modo. Nos tempos do coroa, as aventuras eram extraplanetárias ou vividas por uma coisa entre bicho e avatar, desenho japonês. Como aqueles dois, soltos no quintal, sem celular ou algum controle remoto na mão, brincam daquele jeito? Onde arranjaram os revólveres? E as espoletas?

Um dos meninos cai ao chão. O outro pula, grita, parece feliz. Sopra o cano do revólver, dá meia-volta e sai correndo. O morto se levanta, ri da morte e sai atrás do outro. O bandido virou mocinho e vice-versa. Eles estão brincando é disso, de perpetuar a vida.

 

Na hora da parolagem, levantam uma possível traição da Melina, mulher de Expedito. Alguém lembra que a recíproca também é verdadeira, Expedito não é flor que se cheire. Enquanto o tititi fofocante aumenta e diminui, Melina e Expedito fazem do colchão palco do amor mais sublime e sincero.

 

A velha senhora não é muito chegada a olhar a vida e ter saudade, nostalgia. Vive o dia das seis da manhã, quando se levanta, às dez da noite, quando se deita. Viver está ligado a fazer uma leitura, uma visita, um passeio, um crochê ou mesmo a preparar um prato para receber amigos ou alguém da família. O fato é que, como sempre fez, toca a vida pra frente, não empurrando com a barriga, mas dando um passo atrás do outro, pra frente, sempre pra frente, isso é o que importa. Mas, entre as dez da noite e as seis da manhã, entre deitar-se, dormir, acordar e levantar-se, a velha senhora pensa e sonha. Uma dessas coisas, que é pensamento e, em seguida, sonho, lhe coloca o mundo nas mãos, e ela, sem grande esforço, joga sobre ele três pitadas de delicadeza, o suficiente para o mundo seguir em frente, sempre em frente. A delicadeza faria do mundo um bom lugar para viver, ler um livro, fazer um crochê, um passeio, uma visita, preparar um prato para receber amigos ou familiares sem que fosse preciso modificá-lo.

 

As meninas jogaram suas bonecas no quarto dos meninos. Eles se surpreenderam com aquilo, mas, uma vez recuperados do susto, ninaram as bonecas com todo o amor que guardavam.

 

O trânsito estava horrível. Fazia mais de hora que nenhum carro saía do lugar. Os mais ansiosos haviam recorrido à buzina, mas caíram em si e perceberam que isso não fazia o trânsito avançar. A moça do carro popular desligou o motor. O senhor cujo carro estava emparelhado ao dela fez o mesmo. Os dois logo atrás foram na onda. De repente, a rua era um monte de carros parados e silenciosos. Uma mulher de turbante vermelho e vestido rosa desceu do ônibus, abriu os braços e começou a cantar “Aquarela do Brasil”. Todo mundo saiu de seus carros e acompanhou a afinada passageira do Gávea-Tijuca. Sorrisos, abraços e danças arrancaram do transtorno uma dose de felicidade.


Como todo assaltante, aquele chegou sorrateiro atrás da vítima, que assistia na tela do celular às mais recentes informações sobre a guerra. As imagens o fizeram se lembrar das histórias da fuga de seu avô da Europa durante a grande guerra e seu pensamento saiu em espanto pela boca: outra guerra? Sim, respondeu o desavisado a um passo de perder o celular, outra entre inúmeras espalhadas, naquele instante, mundo afora. O assaltante, com as mãos sobre o rosto, gaguejante, mas dono da voz, lamentou a índole má e corruptível do ser humano.