2.7.22

Ternura

Eu matutava sobre a enrascada na qual estamos metidos, a violência que tomou o país. Convenhamos, a violência não é de hoje, mas nunca havíamos visto o Estado ao lado dela, seu cúmplice. Quer dizer, vimos, e nem faz tanto tempo assim, no entanto tudo levava a crer que era página virada ou página que, com o empenho de todos, ia sendo virada. Todos, todos, não é verdade, uma maioria, quem sabe. Nesse torvelinho, cavava desesperançado o chão duro dos dias.

Foi quando, entre a meditação, o sonho e o delírio, no meio do silêncio, brotou a palavra ternura. Ternura, ternura, ternura. Se assentou ruidosa, relâmpago e trovão. Sou uma deusa. Sou a razão da existência. Sou a única saída. Subservientes, todos os ecos da razão correram em busca daquilo que fizesse jus aos preceitos da ternura. O carinho de mãe. O sorriso de criança. A cumplicidade de um olhar. O amor. A ternura disse, como se fosse o oposto de si mesma, não basta, é preciso mais. Mais? Um fato, um fato, a ternura clamou por um fato.

Sinapses em curto-circuito, memórias atabalhoadas, escrutínio catatônico em cada um dos mais de trinta milhões de segundos vividos, e tudo que conseguia retribuir ao pedido da ternura era a repetição. O carinho de mãe. O sorriso de criança. A cumplicidade de um olhar. O amor. Mas a demanda da ternura exigia o agora. Agora, justo agora, quando, a ferro e fogo, nos aliamos à incompreensão, nos confundimos com ela, fazemos dela nossa razão de ser?

Uma imagem pousou em minha cabeça, esse espaço infinito e compacto. Um homem na mata. Ele está sentado e canta. Ele gira a cabeça, olha para trás, volta com a cabeça para a posição inicial. Ele canta em uma língua nativa. Ele carrega um sorriso. Pura ternura.

É Bruno (1).

Bruno Pereira, aquele que fez da luta com e pelos indígenas sua grande missão, primeiro como agente do Estado e, depois de perseguido por este mesmo Estado — que abriu mão de proteger os indígenas —, trabalhando para a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Bruno Pereira, assassinado na mesma emboscada que deu fim à vida do jornalista inglês Dom Phillips.

A partir do próximo ano, teremos de reconstruir um país arruinado por forças retrógadas, obscuras, violentas, portanto teremos de resgatar a ternura. Aquela que se encontra além do carinho de mãe, do sorriso de criança, da cumplicidade de um olhar, do amor; a que nutre os que lutam pelos desassistidos; a que anima quem se propõe a garantir aos primeiros habitantes dessa terra o que é deles de direito. Regaremos com essa ternura transformadora cada canto do país, quem sabe, assim, descolonizando-o de si mesmo, de sua elite.

É um longo processo, e Bruno, o terno, é a fonte.

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(1) O vídeo no qual Bruno Pereira canta pode ser visto aqui.

4 comentários:

Ana Flores disse...

Alexandre, receio ficarmos entre a cruz e a caldeira. Tempos difíceis.Bjs

Unknown disse...

Que crônica Linda!!!
Só isso.

Vermelho

Marilena E. L. Montanari disse...

Não tenho esperança de que haverá ternura no próximo ano...

No Osso disse...

Ana e Marilena, se arrancamos Bolsonaro de lá, a ternura ganha uma esperança, o que não significa que não terá de lutar bastante. Vermelho, meu caro, obrigado.