16.4.17

A dor no jornal

Escultura de Sandra Guinle.
Quatro balas se perderam no corpo de Maria Eduarda, uma jovem de treze anos. Temos de mudar a narrativa, isso de “bala perdida” tem limite. Quatro? Francamente. Se não foi massacre — apenas a perversidade justificaria uma coisa dessas, haja vista que uma inocente morta não melhora a imagem da polícia ou do tráfico —, então o Estado, na sua representação militar, está despreparado. 

Defendo minha afirmação mesmo que os tiros não tivessem saído das armas dos policiais (embora contra eles pesasse, desde o início, o fato de, numa imagem reproduzida à exaustão, terem atirado em dois homens caídos, naquele momento, indefesos). Eles trocaram tiro com traficantes no entorno de uma escola. Errado. Porta de escola não é lugar para isso, o Estado, pela vida das crianças, tem de saber se retirar, ser covarde, fugir da briga. Não é com policial valente, incapaz de suportar provocação, que serão resolvidos os problemas relacionados à violência urbana.

Maria Eduarda está morta. João Pedro, o garoto que foi arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, em 2008, está morto. Aqueles rapazes que estavam num carro alvejado por cento e onze tiros estão mortos. E há outro monte de meninos e meninas cujas vidas foram interrompidas porque se decretou que a questão das drogas se resolve assim, no tiro. Não é um detalhe menor, ao contrário, é fundamental o fato de a maioria dos mortos ser negra. Crianças negras: destino das balas (elas, sim, sempre) perversas e certeiras.

(Como os políticos angariam votos nas áreas ocupadas por traficantes e/ou milicianos? Como as armas chegam ao exército do tráfico ou ao escritório limpo dos milicianos? Se a gente pergunta essas coisas, fica no vácuo, fica a ver navios, até espaçonaves, e a mascar o fel que toma a boca do intrometido.)

Maria Eduarda está morta. Eduardo, menino de dez anos que brincava à porta de sua casa no Complexo do Alemão, está, desde 2015, morto. O Estado, quando muito, banca um enterro digno às vítimas, mesmo se não reconhece ter sido o agente da morte. Os pais dessas crianças, quase todos agarrados à pobreza, maltratados pelo preconceito racial, vão viver ainda em piores condições do que viveram até o trágico dia no qual seus filhos morreram. Leio no jornal que um advogado conseguiu que o Estado pague o tratamento psicológico ou psiquiátrico de um ou outro, e isso já é uma vitória e tanto, pois o Estado, de mãos lavadas, só se preocupa em limpar as armas para matar mais. Mesmo quando não mata, o Estado mata, pois sua política em relação às drogas é a guerra. A guerra às drogas foi uma decisão datada, mas nós, brasileiros, não temos nos debruçado sobre essa questão e revisto nossa estratégia. Se, no início, não foi um erro — o mundo, em particular os Estados Unidos, agia assim, parecia razoável —, agora que sabemos tanto sobre as drogas, agora que o balanço desses anos todos é um número de mortos impensável, agora é.

O governo municipal, responsável pelas escolas, planeja blindá-las, querendo com isso desbloquear o território para as balas, ainda que, como discurso ou até mesmo como boa intenção (de novo), se diga que o intuito é preservar a vida dos alunos. Será que o Estado vai construir túneis blindados para garantir o ir e vir dos alunos? Pensa-se mal, às vezes com açodamento, noutras com desfaçatez e noutras com pressa e sem vergonha na cara.

Hosana Sessassim, 13 anos, está morta. Sim, já é outra, morta dias depois de Maria Eduarda, enquanto andava pelas ruas de seu bairro, Acari. Pelo que se sabe, a polícia não estava por perto, mas Hosana é outra vítima da mesma guerra.

2.4.17

Instituto Estação das Letras: espaço de resistência


No último dia 23, a Estação das Letras (1), espaço esplendoroso que Suzana Vargas e um time pequeno e aguerrido mantêm no Rio de Janeiro, completou 21 anos. Com a maioridade, veio a transformação. A Estação virou um instituto. É uma mudança jurídica, mas também um desafio, haja vista que agora, além das oficinas —entre outras atividades —, a Estação terá flexibilidade para lançar projetos que usufruam das leis de incentivo fiscal e poderá, também, contar com contribuições diretas de pessoas físicas e jurídicas e, com isso, oferecer bolsas de estudos aos que não têm condições financeiras. Enfim, a turma que gravita em torno da Estação está cheia de planos para tocar adiante essa casa de resistência. No dia da festa, um dos colaboradores mais antigos, o Jair Ferreira dos Santos, no discurso feito em nome do corpo docente, chamou a atenção para o fato de que, no mundo atual, encantado pelo virtual e pelo visual, promover a escrita e a leitura, o que a Estação faz, é uma ação política e de resistência. Assino embaixo.

Suzana Vargas e o bolo dos 21 anos da Estação das Letras. Foto do Instituto Estação das Letras.

Numa tarde comovente, na qual encontrei, por exemplo, Flávio Moreira da Costa e Maria Amélia Mello, pessoas importantes na minha aventura literária, Suzana quebrou todos os poucos protocolos planejados e, nas mãos da mais justificada emoção, comandou a festa, que terminou com bolo e espumante. A comemoração teve início com a fala do Cristóvão Tezza, escritor que se mostrou um palestrante seguro, desses que levam seu papo erudito na maior simplicidade. Ele comentou, lá pelas tantas, que não se lembrava de ter falado para um auditório tão lotado quanto aquele. De fato, o público era grande, logo não somos tão poucos os que estamos prontos para resistir — e, de fato, já resistimos.

O instituto está promovendo o cadastramento de escritores residentes no Brasil, podendo, assim, tornar-se referência na organização de um encontro de escritores com leitores, de uma festa literária, enfim, de eventos dessa natureza. Ideia mais que bem-vinda, um jeito de aumentar o leque dos convidados, pois, se é muito bom ouvir um Veríssimo, um Ruffato, presenças quase certas em tudo que gira em torno da literatura, lá no interior de Minas, está um cara, meu chapa, que todos deveriam ouvir (e ler), o Marco Túlio Costa, um prêmio Jabuti que ainda não vi na Flip ou noutras festas. Também lá no interior de Minas, está outro escritor — que conheço exclusivamente por ter lido seu espetacular “as visitas que hoje estamos” (Editora Iluminuras) —, o Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, que eu gostaria muito de ver transitando por aí. Esse cadastro poderá tornar visível, onde alcance a internet, gente assim. Já está no ar (http://www.institutoestacaodasletras.org). Cadastrem-se!

Interessados em fazer leitura voluntária encontram um espaço no instituto, já que se pretende levar esses leitores a hospitais, casas de repouso e outras instituições nas quais muitas pessoas, por uma série de motivos, não têm autonomia para a leitura. Para terminar, cito a “curadoria” que o instituto fará, selecionando mensalmente em seu site livros recém-lançados, de vários gêneros e com destaque para novos autores. Isso, ao final do ano, levará a que determinados livros recebam um selo IEL.

Finda a comemoração, tomado o vinho e comido o bolo, eu e alguns amigos, inclusive o agora importante consultor de gestão do instituto, nos enfiamos num bar e fomos rir da vida, de nós mesmos, essas coisas que não são monopólio de escritores e leitores, mas que sabemos fazer com capricho.

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1) O endereço do Instituto Estação das Letras é: 

Estação das Letras Rua Marquês de Abrantes, 177 LJs 107 e 108 – Flamengo

Rio de Janeiro – RJ, 22230-060


(0xx)21 3237-3947