24.7.16

Nossa eterna velhice


Não vi nem ouvi, mas fio no ocorrido: uma criança de quatro anos disse a outra, de dois: “No meu tempo era melhor”. Com a velocidade de nossos dias, a velhice começa cedo, a despeito de, em média, vivermos mais do que nossos pais e de nossos filhos terem expectativa de viver mais do que nós. Como a criancinha que desde sempre se sente velha pode chegar fácil aos cem anos, nossa terceira idade se dá aos quatro anos, e, aos cinquenta, entramos na quingentésima.




Sem ruga ou preocupação, somos velhos desde o início — velhice tornou-se sinônimo de vida —, ou seja, a luta pela eterna juventude está produzindo o efeito oposto. Meu amigo Marcus José sempre me alertou para o fato de que o Diabo é o Diabo por ser velho, não por outro motivo. Se nascemos velhos, é sinal de que o Diabo passou uma rasteira em Deus. 


Faço um parêntese. Por acaso, assisti a um episódio de “Bipolar show”, programa televisivo do Michel Melamed. Ele e seu convidado, Matheus Nachtergaele, fizeram diante da câmera uma espécie de entrevista misturada com performance, atuação, sarau, um treco de fato bipolar, senão esquizofrênico, e bom. Lá pelas tantas, o Nachtergaele disse que acredita em Deus, mas que, desde a invenção do avião, por Dumont, Deus está muito ocupado em segurar esse punhado de bisnagas (a imagem é dele) no céu. Portanto não é que o Diabo venceu Deus, mas, valendo-me de Guimarães Rosa, o Diabo tornou-se feliz numa horinha de descuido de Deus. 


Não nos movemos na direção daquela história de que o ideal é nascer velho e morrer jovem, utopia construída sobre a ilusão de que viveríamos melhor se nascêssemos experientes (situação associada à velhice) e fôssemos, ao longo dos anos e sem perder a experiência jamais, ganhando a força física da juventude. A velhice que alcançamos não tem experiência alguma, tem, sim, a dor de carregar o sobrepeso da passagem instantânea do tempo — contado em segundos, não em anos. É possível que a criança nostálgica, no diálogo com a outra mais nova, tenha ido além: “Ah, quando você tiver os meus 126.144.000 segundos de vida vai entender o que estou dizendo”.

Com isso, o choro do bebê não é mais sinal de vitalidade, é grito de revolta. Não tem nada a ver com tomada de consciência da finitude, já que a ciência está empenhada em nos tornar imortais — vejam, por exemplo, o recente documentário brasileiro “Quanto tempo o tempo tem”, de Adriana L. Dutra e Walter Carvalho. Por que os bebês choram então? Porque não terão juventude. Não poderão dizer que na juventude fizeram e aconteceram, não poderão se lembrar das paixões radicais —  sempre a exigirem provas heroicas de amor. Caro senhor Vinícius de Moraes, hoje, a gente mal nasce e, em vez de começar a morrer (em breve, não morreremos), já é velho. Só nos tornamos jovens ao morrer, essa é a contradição desse imbróglio todo.





Li, na revista Piauí (novembro de 2015), a história de Kim Suozzi, americana de vinte e três anos que morreu vitimada por um câncer no cérebro. Ela e o namorado, quando souberam da doença incurável, recorrendo a uma vaquinha virtual, trataram de se organizar para congelar aquele cérebro, seu córtex. Apostavam que, no futuro, a ciência poderá ressuscitar a mente de Kim e, com isso, quando ela se materializar em um computador ou em um robô, em um programa que seja, eles se reencontrarão. A técnica de preservação do córtex é um mundo a ser explorado, portanto, nada garante que Kim de fato ressuscitará, nem mesmo se sabe ainda se, ao escanear o cérebro congelado, todas as sinapses feitas diariamente por ele serão reconhecidas e reproduzidas em uma máquina. Nada disso desanima os cientistas — abastecidos por uma fonte inesgotável de dinheiro —, que, posicionados no centro do embate entre Deus e o Diabo, almejam destruir os dois.