29.6.16

A bela esquecida


Tertúlia é uma palavra bonita. Poderia mesmo ser nome de alguém, no mínimo um segundo nome: Clara Tertúlia, Rosa Tertúlia. Não, não faria feio. Minha avó chamava-se Thomazia, outro nome bonito que ninguém mais coloca nos filhos, quer dizer, segundo um site popular do IBGE, Censo 2010/nomes, no ano de 2010 eram oitenta e três no Brasil, a maioria vivendo em São Paulo (uma é minha prima). Se há Thomazia, por que não Tertúlia? Pelo menos o site do IBGE não registra ninguém com esse nome, portanto, se existem Tertúlias, são menos de dez, faixa na qual o instituto oculta a informação para proteger o sigilo pessoal.

Mas como estava dizendo, tertúlia é uma palavra bonita e, como ainda não disse, pouco falada entre nós. No Houaiss, ela é definida como um agrupamento, reunião de parentes ou amigos; uma palestra literária; por fim, uma pequena agremiação literária, menor do que as academias e arcádias. Ao promovem uma social em suas casas, os jovens bem que poderiam promover uma tertúlia. Em Madri, assim o fazem. Quando estive lá em 1999, um amigo me convidou para uma, na quinta-feira, não muito tarde. Conversaram sobre tudo, literatura inclusive, beberam, uma social típica, nomeada com mais formosura. Ainda segundo o dicionário, a palavra tertúlia veio do espanhol, razão pela qual na terra de Cervantes sobreviva com pujança.


José Gutiérrez Solana, artista espanhol, retratando uma tertúlia.


Tertúlia, a bela. Poemas cantam o amor, a dor, a saudade, o sol, a procela, algum a tertúlia? Recorro ao velho (sim, já é velho) e bom Google para encontrar o pequeno poema “De tertulia poetarum”, de Leminski — “de tortura militum / libera nos domine / de nocte infinita / libera nos domine / de morte nocturna / libera nos domine.” O falecido poeta,  influente ainda hoje, recorreu ao latim para, um pouco na moita — onde muitos tinham de viver na época daquela ditadura escancarada (anos 1970) — e simulando uma oração, invocar o Senhor para nos livrar da tortura militar, da noite infinita e da morte noturna (em tradução sugerida por Elizabeth Rocha Leite em sua tese de doutoramento pela USP). No caso desse poema, a mesma doutora propõe que o título seja lido como “Sobre o encontro de poetas”, esfaqueando sem pena a própria tertúlia.

Se houvesse seres tertúricos, sua compleição agradaria aos olhos, e, por dentro, sua personalidade como seria? O tertúrico apreciaria a dúvida, a discussão, o durante, a trajetória. Travaria embates com os determinados, metódicos, cumpridores de metas. Deve ser por isso que, pouco usual, tertúlia, quando dita, alude ao mundo da poesia, seus encontros e saraus. O mundo estaria melhor se trocasse a racionalidade da força pelos valores tertúricos — em cuja base estão, de mãos dadas, a dúvida e a humildade. Tertúlias na câmara ou no senado, casas que têm servido de ringue para nocautes de vilões de muitos matizes por outros vilões de matizes ainda mais diversos, exigiriam que nossas augustas excelências se reinventassem, e isso far-lhes-ia muito bem (eu, ansioso pelo tempo da delicadeza, adapto-me na marra ao tempo da mesóclise).

Tertúlia é uma palavra bonita, e toda palavra bonita carrega a beleza para além de sua sonoridade. É bonita, aliás, porque, em seu significado, repousa uma esperança. O que seria “um agrupamento, reunião de parentes ou amigos” senão a esperança viva de que, por meio do diálogo, se possa dar um passo? Um passo não necessariamente para a frente, pois as tertúlias não miram sempre nesse sentido. Poderia ser para trás, para rever e cheirar uma flor. Poderia ser para o lado, para dar início a uma dança. Poderia ser até para o abismo, se ao abismo formos na companhia daqueles com quem, entre concordâncias e discordâncias, dividimos o desejo de minorar o sofrimento do mundo.

13.6.16

Crachá e sapato feio: um papo reto com um sobrinho

Certa vez eu disse a meu sobrinho Cristiano — e ele não se esquece disso — que um sujeito sem crachá é incompleto. Pilhéria, uma de tantas da minha lavra.

Seja um homem completo colando sua foto e seu nome aqui.


O crachá, na brincadeira, completaria o homem por associar-se ao trabalho. Estou empregado num escritório, tenho um crachá, e isso me torna pleno. Além da questionável ligação entre trabalho e plenitude, tal evidência não sobrevive a uma análise superficial. Ainda que temporariamente, o desempregado precisa de um crachá para subir ao quinto andar para entregar seu currículo ou pedir uma grana ao amigo bem estabelecido.

O crachá é uma chave que abre as portas de prédios protegidos, parece um antídoto contra a violência, mas, de verdade, ele escancara o fato de que não resolvemos a violência. Somos mestres em criar áreas VIPs — nos blocos de carnaval, na arquitetura dos condomínios fechados, resquícios feudais num mundo que se aproxima do pós-capitalismo —, e é isso que o crachá faz, cria uma área VIP, um espaço que deveria estar isolado das agruras de um mundo contaminado. Lembro-me de “Extra II, o rock do segurança”, música do Gil, da safra dos anos 1980. Ela diz: “O segurança me pediu o crachá / Eu disse nada de crachá, meu chapa / Sou um escrachado, um extra achado / Num galpão abandonado, nada de crachá”. O Gil já conjecturava, numa lonjura do tempo, que o crachá é um símbolo da divisão nossa de cada dia, divisão que mantém os de dentro protegidos. Deus-crachá resguarde seus escolhidos. Amém!

No meu prédio, malandro não se engraça, exclama o crachá. É e não é assim, pois circula pelos corredores dos escritórios uma gama enorme de vendedores, gente que conseguiu entrar ali sabe-se lá como. Se um vendedor furou a barreira e pendurou a identificação no pescoço, qualquer um pode fazer o mesmo. Nas repartições, é comum o sumiço da marmita na geladeira ou do porta-retratos na mesa de trabalho. Rouba-se inclusive o computador da empresa. Ninguém está seguro, em lugar algum, com ou sem crachá. O crachá é um símbolo da falibilidade da segurança. É uma ilusão modelada em plástico.

Não é de hoje que nos deixamos enganar pelo cinema de sombras, confundindo as imagens distorcidas que passam na parede da caverna com a própria realidade. Sair do mundo escuro e chegar ao da luz (onde desenrola a tal realidade) custa um instante — às vezes mais, às vezes menos longo — de cegueira. O mesmo custo haverá ao fazer o caminho de volta, ainda que a cegueira do retorno não seja igual à da partida. O crachá é a ferramenta que manufaturamos durante a primeira cegueira. Cegueira não ligada ao fato de não ver — o cego, por ter aptidões extravisuais, pode muito bem produzir instrumentos úteis ao trabalho ou a qualquer outra atividade humana —, mas ao de desconhecer. O crachá é nossa ignorância convertida em objeto, em chave que não abre nem fecha, que desprotege dando pinta de proteger.

Apostamos no crachá como solução, quando ele deveria ser apenas um objeto para facilitar a identificação da pessoa com quem falamos ou o controle do fluxo de visitantes de uma repartição. Aposta errada. O que fazer para virar o jogo?

Mais educação, menos pobreza. Mais conversa, menos tiros. Mais negros, menos brancos. Mais mulheres, menos homens. Mais política, menos conchavo. Mais divergência, menos inimizades. Respeito no lugar de preconceitos.

Damos logo um passo nessa direção ou nos faltará — porque sobrarão motivos — matéria-prima para fabricar crachás demandados por inúmeras necessidades. Destruiremos o que resta da natureza e ficaremos ainda mais inseguros. O homem, Cristiano, só é completo quando é livre e vive, com suas contradições, entre iguais. No momento em que alcançarmos um naco de liberdade, bastará ao homem a meio caminho da completude, por pura conveniência social, vestir uma blusa e um sapato bonitos — nada de crachá. No seu caso, meu amado sobrinho, se já estivéssemos vivendo esses dias ainda longínquos, iria lhe faltar o sapato bonito. Corra à loja mais próxima e, pelo menos dessa vez, não pense apenas no preço — qualidade é tudo, e beleza é um braço da qualidade.
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Modelo a ser evitado no ato da compra.

9.6.16

Consulta

— Qual foi o sintoma?
— Ela fechou os olhos.





(Miniconto encontrado durante o café da tarde de 08/06/2016.)

7.6.16

Distâncias

— Estamos longe — ela disse.
— Ora, ora — reagi um pouco incrédulo.

E nós dois rimos.




(Miniconto pensado em um ônibus e escrito numa manhã chuvosa.)