25.10.05

Luiz Tatit


No início havia o Rumo.

Porém antes, houvera um menino em mendicância de delicadeza, limpando as coisas da poeira, da qual vasculhou a química e a matemática. Enquanto outros esmeravam em aprender a dança assim, assada, tão na moda, e óbvia, Luiz protegia o patrimônio invisível com bafos de modernidade. Como todo grande artista, menino ainda, dava as costas à contemporaneidade para recriá-la num só sopro.

Não por acaso, na década de oitenta, diante das primeiras pisadas do roque tupiniquim, Tatit cantava Noel. Como um castiço da garoa, não como carioca da gema, reinventando o tísico da Vila, emparelhando a música anterior à década de quarenta à sua proposta calcada em canto falado.

Intelectual de cátedra, escreve livros sobre semiótica e música. Reflete sobre música e faz música reflexiva. No entanto, sem perder a espontaneidade (jamais). Cria pequenas epifanias, fábulas de uma certa vida rasteira. Aqui reafirmando: “estou aqui para provar que eu sou eu”. Ali gracejando a partir do lugar-comum: “quer uma coisa? Vai lá e pega. Já pegou? Então sossega.” Ainda que crônicas da vida comum, sua fala não se consome na mesmice, ao contrário, ergue-se de mãos dadas à uma nobre poesia. Algo alegórico como: “Só que as sílabas se embalam como sons que se rebelam, que se embolam numa fila e se acumulam numa bola.” Outro algo melancólico assim: “não há um luar que venha em vão, que não deixe algum sinal no coração.”

Aliás, o redivivo “Luar do sertão” da última letra não é peça solta. Citações da tradição espalham-se aos montes em toda sua obra. Tatit respeita seus precedentes, ainda que lhes cutuque e até mesmo os derrube impiedosamente. Não é um nostálgico. Nem do passado, nem, como Lobão, da modernidade. É, sim, um artista urbano, fazendo de sua São Paulo musa do mesmo quilate do Rio de Janeiro. Se a ex-capital federal embalou a bossa-nova, o samba, a híbrida composição de Marcelo D2, Tatit canta a São Paulo sisuda, no momento em que se fere de uma alegria jamais vista ou quando acompanha um dos seus vinte milhões de habitantes saltitando entre a Vila Madalena e a Vila Beatriz, entre Santo Amaro e a USP.




(Foto de Gal Oppido)


Se com o Rumo a música se apresentava em aparente simplicidade, em seus discos “Felicidade” e “O Meio” Tatit se cerca de craques, arranjadores que se aliam a ele para dar uma caixa rara para guardar as pérolas de suas composições. Quem ouvir com cuidado o arranjo de Ricardo Breim para “Quase” tateará a cumplicidade, sem se importar com o fato de ela ser intangível. “Depois Melhora” ou “O Meio” são outras patadas delicadas de Tatit e os seus.

Depois do Rumo, Tatit continua o mesmo desbravador que avança ao voltar ao caminho já mil vezes cortado, recortado, dando outro sentido a ele. Se antes, indo por aqui se chegava ali, agora, depois das mãos de Luiz, indo por ali se chega muito mais além.

23.10.05

Filosofia Primitiva

Aprendi com minha sogra: queijo com educação é o cortado bem fino e, consequentemente, o sem educação é um toloco só.


Essa classificação trouxe elementos para rascunhar algumas idiossincrasias da moçada lá de casa. Somos quatro irmãos e três modos distintos de encarar o famoso queijo com goiabada, estranhamente chamado por alguns de Romeu e Julieta.



Na primeira turma, o queijo é sem educação e a goiabada, fina. Na segunda, o queijo e a goiabada não primam pela boa educação. Por fim, na minha turma, o queijo é educado e a goiabada chega a ser uma aberração de tão grossa.

(Por sermos quatro, o leitor pode estar curioso em saber qual dos paladares encontra dois defensores. Nenhum deles. Na realidade, uma de minhas irmãs não come doce já há algum tempo e, então, apagamos de nossa memória qual era mesmo a sua preferência.)

É hora de entender como cada um de nós faz de sua opção a única.



Queijo sem educação, goiabada fina: poderíamos batizar essa turma de afrancesada, já que o que importa, na sobremesa, é o sal do queijo. Em sua defesa, a turma diz que o doce deve aparecer muito discretamente e busca comparações com os bons perfumes: mínimos no tamanho e máximos na fragrância.

Queijo e goiaba sem educação: ora, dizem esses pitgulosos, se é para se lambuzar, que seja por inteiro, sem frescuras. A acirrada disputa entre sabores opostos, o sal e o doce, é o ó do rococó da opção.

Queijo com, goiabada sem: o queijo, aqui, cumpre o papel daquele jogador que pouco aparece para a torcida, mas é a alma do time. Mesmo discreto – se discretíssimo ainda melhor – o queijo reinventa o doce.

O que fiz até agora não foi mais do que listar alguns modos de comer a melhor das guloseimas. Não abordei, ainda, a questão filosófica. Portanto vamos amarrar as pontas e dar sentido à coisa.


Um homem vê-se distante de casa, o mundo continua esta bola sem freio, rodando, rodando, rodando. Conhecedor da noite e do amor, experimenta o lícito e o não lícito, planeja revoluções; é, quando mais se precisa dele, um covarde; quando ninguém dele espera um ai, é o valente e o vitorioso. Rei que já passou pela miséria, íntimo dos segredos dos deuses, é um desbravador com inocência. Este homem lê e reescreve todos os dias os seus dias de ontem e não para aí, nada ao encontro do futuro e descansa na cabeceira do rio circular. Quando tudo parece, enfim, alcançar o ápice e repousar, a nostalgia corta a garganta desse homem, que experimenta, assim, a sensação de ter perdido alguma valia: o seu contorno e o seu recheio. Neste momento, seus planos de escrever versos, de investigar a alma, senhor supremo da filosofia, estancam. Meu Deus – diz com o olhar deitado no horizonte – não sou ninguém se me negarem o queijo e a goiabada.



Vocês não entenderam nada? Ou falta-lhes filosofia ou sobram-lhes o vermelho (mole ou de cortar, cascão ou liso) e o branco (fresco, curado ou meio) combinados com ou sem educação. Quem vive longe das verdadeiras iguarias e não se contenta com a goiabada em lata, feita de chuchu, e o queijo frescal mais do que entende o ser ou não ser do filósofo sem-doce.

13.10.05

Uma Provocação Entre Duas Pingas


O sujeito entra no bar e pede uma pinga. Ao ser servido, oferece um trago ao pessoal que está por ali. Tendo bebido sua dose, o freguês boa-gente dá pernas pra quem te quero e não paga nem a birita consumida por ele nem a oferecida aos demais.

Uma semana depois, encontramos, de novo, o cachaceiro no boteco. Ele faz o mesmo pedido e acrescenta, entre os convidados, o dono do recinto, que, sem demonstrar nenhuma contrariedade, aceita a “gentileza”. Os copos vão sendo esvaziados e o cliente já se prepara para dar o fora quando o dono da espelunca salta o balcão, agarra o safado e o cobre de cascudos.

O cachaceiro não se emenda. Poucos dias depois, volta ao bar, pede cachaça para ele e para a rapaziada, mas adverte o dono do botequim:

— Para o senhor, que é violento e descontrolado, não.

O bom desta piada é que ela subverte a ordem das coisas. O trambiqueiro se comporta como vítima.

Mesmo sendo apenas uma piada, ao conhecê-la encasquetei com uma coisa. Este elo entre o consumo de drogas (cachaça é uma droga, lícita, mas uma droga) e a violência. Todo drogado é violento? Com certeza, não, embora seja senso comum dizer que sim. É até usual que o criminoso recorra ao fato de ter consumido drogas para tentar ficar em hospitais psiquiátricos e não em presídios.

O mundo das drogas ilícitas é violento por ser clandestino. Como os traficantes organizam-se em verdadeiros exércitos e estão, permanentemente, em pé de guerra com a polícia ou com outro grupo de traficantes, um consumidor ao desejar tão-somente conseguir um naco do produto de que é dependente, acaba tendo de enfrentar um mundo pra lá de violento. Se, no entanto, ele consegue comprar a sua droga e vai para casa, ou para um bar, ou para uma discoteca, e a consome, não necessariamente irá bater na namorada, apagar o primeiro que lhe apareça. Como diz o rock: ele não estará causando mal nenhum a não ser a si mesmo.

Vou a um posto de gasolina e encontro a frentista inconsolável. Naquele instante, ela havia percebido que alguém surrupiara, bem no seu focinho, o seu celular. Sua revolta, diga-se, não era pelo objeto perdido, que, com algum sacrifício, poderia ser substituído por outro; sua revolta era com a situação em que se encontra o país. Para ela, a culpa disso tudo deveria ser creditada às mães que fazem filhos para, em seguida, largá-los na rua. Eu já vinha rascunhando este artigo quando eu ouvi seu desabafo e minha posição se assemelha em muito à dela, embora, para mim, a culpa pode e deve ser dividida entre pai, mãe e, bem, o Estado. Para conter o exagerado crescimento das taxas de violência são necessários, sim, vários investimentos sociais (escola, saúde, desconcentração da renda etc.), mas, arrisco a dizer, só isso não basta. É preciso que os pais devotem a seus filhos tempo, atenção e carinho. Difícil, todavia, será definir prioridades no tratamento das duas faces de um mesmo cancro: dar educação formal para quem não tem afeto tem um alcance menor do que se espera; tentar resgatar a auto-estima e noção de responsabilidade social de quem já formou família e vive, ou no lodo da pobreza ou no conforto da abastança, é matéria que não encontra bê-a-bá definido e de fácil aplicação.

Aposto que a violência não se esgotaria se hoje todos os consumidores de drogas, por algum milagre, abandonassem seus vícios. E se é assim, melhor liberar o uso das drogas - reforço: drogas que ainda são ilícitas já que um punhado delas pode ser consumido em qualquer lugar e hora - e, através de pesada carga tributária, auferir recursos para combater os males que causam à saúde física e psicológica das pessoas e também as diferentes espécies de violência que permanecerão existindo - a começar por alguma assistência às pessoas que ou não podem ou não querem ver-se como uma peça muito pequena de um intricado jogo de armar.

Eu bem disse, não foi? Seria uma provocação. Mas, pronto, acabou. Volto, então, à pinga. Um amigo meu costumava chegar nas vendas (quando estas existiam) e pedia uma pinga e um sabonete. Outra pinga e outro sabonete. E mais uma pinga e outro sabonete. Se perguntada a razão de pedido tão estranho, respondia que no final da farra contava os sabonetes e sabia quantas pingas tinha que pagar. Ninguém lhe passava a perna. Faz sentido, ora se faz.

7.10.05

Exercício de Opinião

É possível passar pela vida meio encoberto, entrando e saindo calado dos conflitos, mesmo dos mais triviais, que não mudam o curso dos fatos em nada. Há quem não torça por um time, não prefira louro a moreno, vermelho a cinza, amar em colchão de água a desfalecer sobre o recheio de palha de um modelo ultrapassado. Não me lembro se Balzac ou Wilde descreve, num jantar daqueles espalhado em mesa de inúmeros talheres, um cidadão beirando seus trinta anos cuja principal característica é o silêncio absoluto. Explica o narrador: esse mutismo seria uma opção racional, uma vez que, pensava o personagem, tudo que tinha para falar fora dito até seus 18 anos. Estamos aí com dois extremos: o covarde e o lúcido, nem um nem outro abre a boca para emitir uma opinião menor sobre nada. Para ferir minha própria covardia (minha lucidez feriu-se de morte na minha inauguração, nenhuma escola deu jeito nisso), vou tentar dizer o que penso dessa consulta pública a respeito de desarmamento.

Certo dia, adolescente meio perdido, resolvi fazer o curso de economia. Um sujeito que curse economia, principalmente numa linha de pensamento mais ortodoxa, longe do marxismo e afins, fica marcado por todas aquelas teorias. É chato economia, e a gente até tenta se desvencilhar dela, mas, quando algumas questões aparecem, é por meio do raciocínio econômico que nos organizamos.



Para economista, bem é tudo que se produz. Um carro, uma cama e seu colchão, um revólver, cocaína, craque, serviços hospitalares ou de prostituição. Portanto o mercado, lugar das interações entre pessoas (cada qual vendendo seu produto — a força de trabalho é um deles, claro), é o espaço da socialização por excelência. Com a necessidade, o mercado passou a ser fonte de renda também do estado, através da cobrança de impostos. Portanto acorrem a ele o vendedor, o comprador e o coletor. Estando tudo mais ou menos dentro do razoável, as três figuras acordam que as transações devem ser acompanhadas de um pagamento ao governo, que com a receita provê a todos os serviços cabidos a ele.

Se é assim, um mercado conhecido, reconhecido e tal sofrerá um revés dilacerante se for jogado ao espaço da ilegalidade. Ontem era legal, hoje não é mais. É verdade que no caso brasileiro as empresas poderão continuar a fabricar suas armas, reduzindo o raio de sua ação ao vender apenas para as polícias ou ao exportar. De outro lado, os cidadãos que gostam de ter armas, que têm armas porque se sentem mais seguros com elas do que sem elas, o que farão um dia depois de serem metidos na ilegalidade? E o que fará o governo ao ter parte de sua receita diminuída concomitantemente ao aumento de seus custos (velar pela nova lei)? Veremos surgir dois legados da disfunção social: mercado negro e corrupção. Quem gosta de armas continuará a tê-las; quem deveria conter o mercado negro, mal equipado, mal remunerado, poderá ceder ao velho e bom jeitinho (dez mil réis para o leite dos meninos).



Não tenho armas e acho que uma única vez dei um tiro, que, por sorte, passou longe do passarinho, meu alvo. Hoje não carrego o arrependimento de um assassinato; e a ave — eu acho, eu torço — ainda voou por aí durante o tempo próprio dos pássaros. Conheço pessoas que têm. Algumas são facínoras, outras, colecionadoras: Peters Pans de plantão. Uma e outra já estão naquilo que chamamos de meia-idade, portanto, não aceitarão, nem com a força da consulta universal, o fato de não poderem ter mais armas.

Se é assim, melhor seria, ao invés de uma proibição pura e simples, um investimento em educação da não-violência. Mas como, dirão? É mesmo, como? Só se muda um mundo carregado de violência se nele é desferido um golpe de morte na sua lógica realimentadora. Um exemplo: desarmando a polícia. Por que não?

Se nunca mexi com armas, brinquei muito de bandido e mocinho, metendo chumbo de mentira em meia dúzia de delinqüentes, ladrões de vacas do velho oeste. Na adolescência, já pacífico e poeteiro, quando muito troquei uns socos em briga de rua. Nelas aprendi uma coisa: há regra até nessa confusão. A coisa só descamba para algo mais perigoso quando uma das partes se arma, seja de cadeira, seja de garrafa, seja de pedaço de pau. Uma reação, sempre. Se ninguém sai do braço e da perna, a porrada vai durar, muita gente vai se machucar, mas tudo no braço e na perna. Se a polícia está desarmada, os bandidos também podem ficar. Inocência? Acreditar que a proibição da comercialização de armas resolverá uma grande parte dos problemas atrelados à violência, não é?

Digo mais: melhor liberar as drogas, trazer para a legalidade um mercado oculto, quer dizer, ilícito, mas nem de longe oculto. O efeito final sobre a violência e suas adjacências será infinitamente maior.

4.10.05

Dorival Caymmi é




Não sou!
Tentei; mal provido das penugens de um bigode eu era ainda. Din-don, din-don. Meu violão entre o som metálico e a falta de ritmo. Din-don no samba. Din-don na valsa. Din-don em tudo.
Sofrível violeiro, nem por isso deixei de ganhar aqui e ali umas moças. Surdinhas que se encantavam com meu din-don ou aquelas que amam por pena. Porque existem mulheres assim, e homens também, que amam o esfarrapado, o inseguro, o feio. Pé torto para sapato furado, o ditado cheira a isso e deve ser outro, não sou bom de memória. Nem de música: don-din.

Se me perguntassem na lata o músico que eu gostaria de ser, não titubeava e riscava o nome de Dorival Caymmi. Não seria outro. Talvez um Chico para impressionar. Um Paulinho da Viola para ficar impressionado comigo mesmo.
Inteiro, de sol a sol, sustenido e bemol, repito: seria Caymmi, o marido de Stela e pai de três filhos, dos quais já ouvi dizer: bons como o pai. Acrescento, em tom de advertência, quase tão.
Baiano preguiçoso, buliçoso, praieiro, bom de bico, fotogênico, dono de voz ao mesmo tempo cavernosa e suave, além de um trejeito no seis cordas de tirar o chapéu, a roupa, a pele, os ossos. Tanta coisa não é para qualquer um.
Dorival é o Machado de Assis da música. Não só porque todos os demais músicos beijam sua mão em pedido de benção. Mas porque ambos têm cadência parecida, tamborilam uma ironia aqui, carregam numa tragédia ali, riem do mundo, são insinuantes, sensuais e de uma simplicidade só alcançada pelos grandes.
Por sorte, não sou. A sombra de Dorival ofuscou meu bafo de vontade de ser músico, e desisti. Perdi as meninas ruizinhas de ouvido ou bondosas de alma. Perdi também o hábito de passar dias inteiros só no meu canto, dedilhando din-don, din-don, din-don. Ganhou a música popular brasileira.
Me virei para a escrita, e a sombra do Bruxo não vai me inibir nem por nada nesse mundo. Em alguma coisa a gente tem de ser sem-vergonha.