30.10.16

Dois dias de outubro


No dia 17 de outubro, acordei e fui ao Aterro correr um pouco. Ao contrário de outras vezes, a corrida foi sofrida, talvez porque o calor já ocupasse seu espaço, do qual não arredará pé por longos quatro, cinco meses. Certa vez, ouvi um sujeito dizer que seria preciso que houvesse guerra para que houvesse paz. A paz seria, nesse pensamento, apenas uma ideia abstrata e absurda, haja vista que, se terminasse a guerra, a paz não poderia começar, pois ela só existe em oposição à guerra — não existindo esta, não haveria aquela. Somos muito bons em dar nó nas ideias, embora, no caso, a culpa talvez seja de uma leitura apressada dos dicionários, que definem paz como ausência de guerra. Tento defender o indefensável, vamos adiante. Contei sobre esse contorcionismo intelectual apenas para pegar o mote e dizer: o inverno, no Rio, é o não verão, logo, não existe. O calor que reteve minhas passadas habitualmente vagarosas no Aterro sempre esteve por aqui, às vezes brando, o que não acontecerá de agora até março, abril.

Dia 16 foi aniversário de meu amigo Marco Ajeje (1), um artesão mágico que a histórica Tiradentes soube receber de braços abertos. Trabalhando sobretudo com madeira de demolição, Marquinho, ciente das lições de antigos mestres, ouve o que a madeira tem a dizer e dá forma ao que ela pede. Meu amigo tem pendores para a escrita, mas não sei se escreve, contudo na madeira ele entalha poemas, não há outro nome a dar a seus trabalhos.

Nasceram num 17 de outubro a Mariana Ianelli e o Tacilinho, outros dois artistas. Mariana, poeta e cronista, uma das que escrevem — e como escreve! — na revista Rubem (2). Tacilinho, músico. Dela sei quase nada além do que conta em suas crônicas, ou seja, por sorte, conheço — e esse conhecimento é aberto a todos — a Mariana em estado de poesia. Já ele é um velho camarada, com mais de cinquenta anos de música nas costas — tecladista do Edinho Santa Cruz, banda de baile que ficou conhecida por fazer cover dos Bee Gees, na época do “Embalos de sábado à noite”, e por ter tocado ao longo de quatro anos no programa do Faustão (3). Na véspera de seu aniversário (não pensem num velhinho, pois a vida profissional dele começou antes dos dez anos), depois de um show no qual deu uma canja, Tacilinho me disse que pela primeira vez na vida estava estudando música. De supetão, aprendi que não são anos de estrada que fazem um músico — ou um poeta, ou um artesão, o que seja. Tacilinho, com esse gesto que a mim parece de humildade, mostrou-se também uma pessoa em estado de poesia.

Dois dias de outubro férteis esses dos quais falo, mas não de todo poéticos. A guerra do Iraque continua lá e, não sei se no dia 16 ou no dia 17, tropas iraquianas, auxiliadas pelos americanos, avançaram sobre Mossul com o objetivo de resgatar o território das mãos do Estado Islâmico. Por aqui, uma briga entre facções em presídios de Roraima e Rondônia vitimou umas vinte pessoas. A despeito dos inventores de filosofias rastaqueras e dos leitores apressados dos dicionários (ainda que, pensando bem, seria mais sensato definir a guerra como a ausência de paz e a paz como um momento no qual os homens se respeitam uns aos outros, buscam a igualdade entre si e, entre mil outras coisas que poderiam ser listadas, não se atacam), a guerra está lá no Iraque, na Síria, mas também aqui, num campo de batalha espalhado ao longo das calçadas de nossas cidades nem tão grandes, dos emaranhados dos morros e das ruas nas quais ônibus disputam espaço com bicicletas.

No dia 16, havia ido com meu filho mais velho ao jogo do Botafogo contra o Galo. Partida difícil, com erros do juiz favoráveis ao time carioca, que terminou vitorioso. Na volta para casa, ao longo de uma Linha Vermelha sem vestígios de nossos conflitos diários, o trânsito, sem motivo aparente, praticamente parou, com o que pude me distrair da direção, virar a cabeça para a esquerda e ver soberana a lua, a super lua. Aquela bola enorme e brilhante me fez pensar nos homens e nas mulheres que viveram antes de Copérnico. Decerto eles, ao contemplarem uma lua como a que eu via, se entregassem ao encantamento e sob esse efeito ficassem por dois, três dias, talvez mais. É possível, então, que comemorassem os nascimentos e não fizessem guerras, sequer pensassem nelas. Enfim, vivessem dias de paz em estado absoluto e poético e musical e artesanal. Além do mais, imagino, aqueles dias, sob a perspectiva das ciências, obscuros, não eram tão quentes quanto os atuais.









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1) Aqui você pode ter contato com a Divinas Gerais, loja e ateliê do Marco Ajeje.

2) A coluna da Mariana Ianelli, na Rubem, pode ser acessada a partir daqui.

3) Um trabalho do Edinho Santa Cruz, diferente dos que citei, pode ser ouvido aqui no Youtube. É o concerto que a banda fez com o melhor do rock'n'roll (de Pink Floyd pra cima).


22.10.16

O convidado

Depois de escutar algumas músicas do Leonard Cohen e sem que seja um diálogo poético e sim uma resposta à musicalidade, escrevi o pequeno texto a seguir.


16.10.16

Boris Fausto e as memórias intrusas


“O brilho do bronze — Um diário”, do historiador Boris Fausto (Cosac Naify), presente de minha amiga Nilma Lacerda, foi escrito a partir da morte da esposa do octogenário professor da USP e contempla os anos entre 2010 e 2014. Há muito a dizer depois de ler esse livro, desde especular como são os valores de um intelectual uspiano das antigas até louvar a forma como um senhor encara com bravura o luto e a solidão. Esse senhor, diga-se de passagem, além de comentar as visitas ao cemitério, o enfrentamento do cotidiano sem a parceira de anos, analisa, entre outras coisas, a política, em especial as manifestações de 2013. Tudo num tom, digamos, alto, de um intelectual de boa formação, cuja vida foi marcada pela perda precoce da mãe.


Foto de Renato Parada, tirada na época do lançamento do livro


Sinto-me atraído pelos momentos comezinhos narrados ao longo do livro, como quando Fausto fala de suas lembranças sem importância. Conta, por exemplo, de um diálogo — por ter a ver com Lins, cidade dos Pratas, me fez pensar no Leonel Prata — que certa vez ele escutou entre dois italianos. Estavam todos na entrada do cinema, na São Paulo dos anos de 1950 (talvez tenha sido um pouco antes, a julgar por uma breve pesquisa que fiz), e os italianos discutiam futebol, mais precisamente a partida que haveria entre dois times do interior, a Linense e o XV de Piracicaba, cujo resultado daria ao vencedor um lugar na primeira divisão do futebol paulista[1]. Um disse, tropeçando na língua, que torcia pelo “Lincense”, no que o outro, um pouco espantado, quis saber a razão. O diálogo entre eles, no registro do autor do diário, foi o seguinte:

"— Perché? — indagou o que fizera a pergunta.
 — Perché a me non mi piace Piracicaba."

Até onde eu saiba, Fausto não tem ligação nem com Lins nem com Piracicaba, portanto essa história foi fixada em sua memória por puro capricho de seus neurônios. Apostando que cada um de nós cultiva pelo menos uma dessas memórias intrusas, que o professor prefere chamar de insignificantes, mal terminada a leitura, saí à caça da(s) minha(s).

Encontrei de cara algumas bem miúdas, mas, ao contrário da narrada por Fausto, guardadas ou mal guardadas no espaço do afeto, ou seja, lembranças que acusavam o meu envolvimento direto com os fatos. Uma vez, em Passos, no Bar do Vicente, que ficava ao lado do Grande Hotel, ao perguntar se eu aceitava uma bebida e eu dizer que queria uma sodinha (o nome que se dava à Soda Limonada da Antártica), meu padrinho indagou se eu havia parado de beber — insinuando que me oferecera uma bebida alcóolica. Eu tinha menos de dez anos, registre-se. Nos meus primeiros meses de Rio de Janeiro, o atendente de uma loja quis saber qual era minha graça — meu nome, esclareceu, diante de minha hesitação. Enfim, histórias irrelevantes, embora marcadas pela presença amorosa de meu padrinho e por minha chegada à cidade na qual acabaria fazendo minha vida. Não servem como paralelo à narrada no livro. Busco outra.

Era algum ano anterior a 1977, eu vivia em Passos. Eram dias de eleição, talvez fosse mesmo o dia da eleição, e eu não votava ainda. Na Praça da Matriz, um pouco fora de seu centro, vi um monte de gente aglomerada. Por achar o movimento estranho, fixei meu olhar no grupo. Um senhor — logo o reconheci, era o empresário mais bem-sucedido da cidade naquela época — atirava dinheiro pro ar. Os que estavam um pouco afastados dele, feito corvos atacando a carcaça de um boi, se jogaram sobre as notas, disputando-as à tapa, puxões de cabelo e unhadas, coisas que os corvos não costumam fazer.

À medida que escrevia o parágrafo anterior, fui percebendo que minha história não se compara à de Fausto. A dele não o atinge de frente, a minha, ao contrário, por ter desnudado aos olhos de um adolescente como são alguns políticos ou a política, ainda reverbera na minha visão de mundo. Naquele episódio entendi a forma como a elite tratava — e continua tratando, basta ver, na imprensa carioca, as várias notícias de compra de votos, agora, em 2016 — os menos esclarecidos e/ou os mais necessitados.

Não desisto de encontrar uma história leve que eu tenha presenciado e guardado sem outro motivo que não o de usá-la como uma anedota a ser dividida entre amigos. Opa, uma salta na tela da minha memória. Ainda em Passos, num começo de noite, eu atravessava a rua para entrar no clube e vi, encostado ao lado da porta pela qual eu passaria, Z., meu professor no ginásio. Entre nós passou alguém, não me recordo quem, e perguntou ao mestre: “Cumé que cê tá?” Um jovem de 25 anos, se tanto, Z. respondeu: “Doido”. Ambos riram, e eu entrei no clube sem atinar para o significado daquele papo. Não demorou muito, destrinchei o código e comecei a achar a história engraçada. Continuo achando, e não passa disso.



[1] Em 1948, segundo o site do Linense, o time de Lins não subiu para a primeira divisão ao perder por cinco a um do XV de Piracicaba. 





2.10.16

Autoentrevista em dias de muito assunto e pouca certeza ou o contrário

Para Teresa, professora num país triste

Nosso entrevistado de hoje, eu mesmo, nasceu em Minas, viveu em Minas, mas não parou aí. Mudou-se para o Rio, depois para São Paulo, de onde voltou para o Rio. Na infância, interiorano ainda, devaneou que viveria em Porto Alegre, quem sabe em Montevidéu, mas isso nunca aconteceu e está longe de acontecer. O destino não se importa com sonhos sem pé nem cabeça de um moleque qualquer. O destino é sério, sério. Que nem Teresa, a professora de francês com quem o entrevistado não aprendeu nada, de francês, devo dizer, pois foi com ela que ele começou a apreciar a beleza farta. Veja bem, não a beleza, mas a beleza farta.




Feita a apresentação, vamos à entrevista.

P: Alguma certeza na vida?

R: Sim.

P: Qual? (Capricho no tom irônico.)

R: Estou vivo.

P: O senhor conhece alguém que, não estando vivo, seria entrevistado?

R: A Tomie Ohtake. Um deputado espera por ela lá no congresso. Te digo mais, não é um caso isolado, tem morto espalhado por aí que tem muita explicação a dar, portanto, se não está, deveria estar sendo entrevistado.

P: Voltemos um pouco. Falemos de suas certezas. Além de estar vivo, outra?

R: Não estou morto.

(A entrevista será difícil...)

P: O fato de o senhor estar vivo e não estar morto me alivia. Agora, devo me explicar: ao fazer a pergunta, gostaria de saber se o senhor tem alguma certeza política, por exemplo. Tem?

R: A política é um bom negócio.

P: Do ponto de vista financeiro?

R: Aí já não sei.

P: Então em que sentido a política é um bom negócio?

R: À esquerda e à direita. Em todos os sentidos, entende?

P: Creio que sim, senhor, creio que sim. Mas, sejamos mais explícitos: o que o senhor acha do Temer?

R: Que ele se acha.

P: Só isso?

R: Achar, só isso, no mais eu torço.

P: Por ele?

R: Contra.

P: Quer dizer que o senhor é a favor do PT, do Lula, da Dilma?

R: ...

P: Quem cala, consente...

R: Ou se segura para não partir a cara de entrevistador tão bitolado. Com vinte e seis letras é possível escrever todas as palavras do mundo, com dez algarismos, todos os números. Não reduza a complexidade a a e não a ou a zero e não zero.

P: Devemos mudar de assunto?

R: Você deve.

P: Sugira algum.

R: Teresa.

P: A professora de francês?

R: Ela mesma.

P: Teresa está ligada a quê?

R: Ao amor.

P: O senhor a amou?

R: Não, mas todo homem deveria amar uma mulher cujo marido é um caminhoneiro.

P: Isso é uma filosofia?

R: De jeito algum, é uma frustração.

O entrevistado sai da sala e enfia-se no quarto. A entrevista, tudo indica, vai ficar assim, borocoxô, inconclusa. Ao recolher meu material, ouço-o chorando. Chora e murmura um nome. Teresa? Não, Teresa não, soa como se fosse o nome de um país triste.