Depois que as editoras independentes, pequenas guerreiras, passaram a armar suas tendas em Paraty durante os quatro dias da festa pioneira, pode-se dizer que a Literatura definitivamente hospedou-se na cidade histórica. Aos best-sellers, inclusive ganhadores do Nobel, aos que têm agentes literários e bons contratos, aos que disputam espaço nas livrarias e academias, junta-se a plêiade dos que correm por fora, alguns almejando pertencer à elite, outros menos preocupados com isso. De uns tempos para cá, Paraty tem lá sua diversidade a despeito de os proprietários da festa inventarem moda. Este ano tentaram – por sorte, sem sucesso – proibir as pequenas editoras de venderem seus títulos. Em uma ação deliberada em prol de algum grande grupo, como se fosse preciso, uma festa literária impedir a venda de livros, a estrela do evento, é um acinte, um ataque, quiçá um haraquiri.
Enfim, no Dia das Crianças deste ano da graça de 2024, a
Literatura estava em Paraty. Eu não. Como sou parte desse mundo, se estou lá,
ocupo meu espaço, se não, deixo de pertencer a ele. Assim como ocorre com
qualquer famosão ausente. Isso não é lamento, é matemática. Se, nesses dias,
não posso dizer que sou um escritor e que não largo as mãos da Literatura,
tenho de me conformar. No entanto, segredo aqui o que aconteceu desta vez:
quando a madrugada recolhia os últimos boêmios em Paraty, a Literatura batia
suas asinhas, fugia momentaneamente de lá e cantava na árvore do meu prédio. Nesses
momentos, dei-lhe de comer.
Um jeito de alimentar esse pássaro, ora corvo, ora
pintassilgo – mas nunca pombo, nem o da paz –, é pensar na vida. Ter saudades.
Cutucar o passado. Mister Brandão, o que o senhor fazia no glorioso ano de
1966? Decerto não estava preocupado com o terremoto no Usbequistão. Nem com a
independência da Guiana Britânica. Pode ser que, metido entre meus irmãos mais
velhos, ouvisse “Revolver”, lançamento dos Beatles daquele ano, embora só viesse
a ser um beatlemaníaco (nem tanto) algum tempo depois, não com meus cinco
aninhos. Tampouco me preocupava com os atos institucionais da Ditadura Militar.
Em 1966, minha gente, eu batia bafinha em frente ao Cine Roxy. Aprendia a andar
de bicicleta sobre os paralelepípedos do Beco dos Aflitos. Chutava bola em
qualquer canto. Dava tiros de espoleta. Confesso: namorava. À porta da casa dos
avós de minha namorada, ela e eu nos sentávamos e conversávamos, não passando
disso nosso namoro. Eu pousava como um herói capaz de enfrentar qualquer
monstro, humano ou não, ela dava trela, gostava. Não sei como o namoro acabou,
mas, taí, fomos felizes.
Lembro de mim de calça curta. Calça curta não era só um
jeito de nomear o short, mas o corte e o tecido usados na sua confecção se
assemelhavam aos de uma calça, só que curta. Eu andava com essa roupa e cabelo
penteado para o lado. Naquela época havia muitas regras. Cabelo repartido de um
lado para os meninos, do outro para as meninas. O cinto também deveria ser
inserido da esquerda para a direita, na calça dos rapazes; o contrário, na
cintura das moças. Como foi possível sobreviver a tanto? Olho alguns religiosos
atuais e tenho a impressão de que estão naquela mesma batida, com um agravante:
seus pastores estão no poder. Bem, a Igreja Católica estava em 1966, esteve desde
priscas eras, está agora e estará amanhã. Nos meus cinco anos, as calças eram curtas,
minhas ideias igualmente curtas e o mundo já se esmerava em ser um rascunho
posto em pé sobre um lamaçal.
Cinquenta e tantos anos atrás, fazia muito frio na minha
cidade. Logo cedo, mamãe olhava o termômetro pendurado do lado de fora da casa,
perto da cozinha. Um dia, ali pelas seis e meia da manhã, ela me mostrou: zero
grau. Destemido, tomei o rumo da escola. Vestia uma japona que podia ser usada
dos dois lados. Era chique. Espere um pouco, eu não tinha mais cinco anos,
talvez oito. Já cultivava alguma vaidade, como a de me exibir naquela japona.
Ainda existe japona? Sumiu do mundo como a calça curta. Que garoto bonito cruzava
as ruas, coberto pela peça de napa. Isso, amizade, era de napa, ou seja, uma combinação
de poliéster e poliuretano. Não sinto falta do casaco sintético, até condeno
seu uso, mas sinto saudades de trajá-lo – apesar de proteger pouco do frio (por
baixo da camisa do colégio, metia uma peça de lã) –, de me sentir tão ajeitadinho,
de acreditar na vida. Havia visto um homem descer da Apollo 11 e andar na Lua. Aquilo
me dava esperança. Não pensava nesses termos, é verdade, mas que coisa fenomenal,
que capacidade de irmos tão longe. Como éramos inteligentes! Somos. Dia desses
saíram os ganhadores do Nobel de Física, Hinton e Hopfield (no Brasil,
formariam uma boa dupla sertaneja, universitária, por suposto), um britânico,
outro americano, ligados a pesquisas que abriram campo para a Inteligência
Artificial. Um deles disse que, como todo avanço, a IA tem o lado bom e o ruim.
A gente sabe disso, a humanidade aprendeu isso, mas a Rússia solta bombas na
Ucrânia; Israel, menos por justiça, mais por vingança, bombardeia Gaza e
Líbano. Maldição. Que saudades da japona sem avesso, do menino que ia dentro
dela.
– Ó, Lítero-pássaro, está bom assim de alpiste ou quer mais,
seu faminto?
– Nevermore.
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