23.12.19

Uma senhora primavera


Sou um cronista bem fajuto. Digo isso porque são raras as minhas crônicas que se rendem a alguma efeméride. Chega o dia das mães, não escrevo nada a respeito; vem o dos pais, a mesma coisa. Isso sem dizer que não fiz a crônica de ano novo e não farei a de Natal. Não sei explicar os motivos. Se houver algum psicólogo de plantão, aceito palpites, diagnósticos, conselhos e até mesmo algum remedinho.

Dito isso, esta será mais uma crônica a não celebrar o Natal, mesmo estando a dois dias da noite da ceia, da Missa do Galo e, o mais importante, da troca dos amigos ocultos. O mais importante são os presentes? Sintam, leitores, como a questão do Natal me pega de jeito. Fico tão chateado com essa imposição de dar presente que acabo me esquecendo de que o importante, o importante mesmo, é comemorar o nascimento de Jesus Cristo, aquele judeu que, tendo vindo ao mundo há 2019 anos, mudou o rumo da história.

Como não será uma crônica de Natal, qual será seu assunto?

Ah, sim, posso falar a respeito desta primavera que, pelo menos na primeira quinzena de dezembro, segurou o verão, não o deixando chegar antes da hora. Isso é uma atitude digna. O Rio de Janeiro esteve uma delícia, nem liguei o ar-condicionado para dormir. Meu bolso e meu nariz, que não ficou ressecado, agradecem.

A oposição no Brasil deveria aprender com esta primavera e espanar o calor da ignorância que tomou Brasília, que tomou o Brasil. Ora, dirão, esta primavera só está assim porque houve um El Niño ou uma La Niña ou porque as geleiras dos árticos afracaram-se todas ou porque uma borboleta bateu as asas numa floresta chinesa. Mas eu contradigo: não faltam motivos para nossa oposição esfriar o verão desse desgoverno. Aliás, não só a oposição, o que nós estamos fazendo de concreto? O engraçadinho responde: “providenciando a ceia”; mas não estou falando disso. Estou falando de jantarmos as ruas, de fazermos política com presença física. O bravão ameaçou descer o cassetete (no mínimo) em que fizer essas chilenices, equadorices, bolivianices, colombialices aqui nas terras da fartura. Estou ciente, mas, se mantivermos os braços cruzados, o verão político nos derreterá.

Por meus belos olhos, exagerei. Não escrever a crônica de Natal, paciência, mas vir com assunto tão duro e indigesto já é falta de respeito. Peço-lhes perdão. Vou escrever sobre uma coisa leve. Enquanto isso, podem continuar fritando as rabanadas ou embrulhando os presentes (compraram o meu?) ou, olha como me corrigi em três parágrafos, elevando suas preces a Cristo, razão única do Natal.


Prometi leveza, vou a ela, ainda que com alguma erudição. Vocês sabem que a referência ao fato de o bater de asas de uma borboleta na China ter a capacidade de modificar a intensidade da primavera aqui não é poesia, não sabem? É uma metáfora usada por Lorenz — um dos formuladores da teoria do caos, campo razoavelmente novo da física — para explicar o princípio de sua teoria. Em modo rasteiro, a teoria é a seguinte: “Uma pequenina mudança no início de um evento qualquer pode trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro[1]”. Pois bem, se vale para uma borboleta e para lugares tão distantes, China e Brasil, podemos atualizar a metáfora e torná-la mais próxima de nós. Fica assim: quando uma menina garganteia na Suécia, um beócio tonteia no Planalto Central.

Caramba, não me acerto, melhor terminar por aqui. Só mais uma coisa: de fato, hoje é o primeiro dia do verão. Esta crônica foi escrita antes, nem sei como o dia estará no instante em que estiver sendo lida. De minha parte, estando de um jeito ou de outro, ainda torcerei pela primavera; pela primavera política principalmente.



[1] “O que é a teoria do Caos?” — em https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-teoria-do-caos/ (pesquisado em 12/12/2019).

9.12.19

Minha filha, eu e uns bichos estranhos


Um besouro desses comuns, o escaravelho, quando cai de pernas para o ar, é um deus nos acuda. Imagino que todos já viram uma cena dessas. Eu pelo menos vi muitas, primeiro, na fazenda de minha avó, depois, já crescido, na de meu irmão. Na verdade, até mesmo em casa, quando a cidade em que cresci era menos urbana do que é hoje. Confesso que nem sempre salvei os pobres coitados.

Parto do princípio de que um besouro naquela situação não é capaz de se virar, de “pôr-se de pé” e, enfim, levantar voo a caminho de seus afazeres. O afazer que garante a sobrevivência de um escaravelho é formar uma bola com bosta de cavalo para enfiar num buraco na terra e, então, protegido, se alimentar da iguaria. Diga-se que os besourinhos que saem dos ovos deixados numa bola dessas nascem com o alimento garantido. Espertos os besouros. Sábios.




Sábios ou não, de pernas para cima tornam-se indefesos. O interessante é que aqueles que não ajudei, na manhã seguinte, nunca estavam na varanda ou no quintal onde os encontrara na noite anterior. Eles acabam se virando? São devorados por cachorros, gatos, ratos, lagartixas e até por tartarugas? Sinceramente não sei, mas imagino que sempre ocorra o pior. Se há uma imagem que associo ao desespero, à derrota inglória, é a de um besouro de pernas para cima.

Eu estou assim, um besouro desses — agonizando.

A que ponto cheguei! Percorria as ruas dessa crônica com um pé na ciência, particularmente na entomologia, e outro na lembrança da infância e fui bater no poste da minha fervura privada. Por favor, leitor, não me abandone, juro que não vou confessar minhas ansiedades ou coisas do gênero. Então o que farei?

Ora, dizer que não estou sozinho, hoje formamos um país de besouros com as pernas para cima. Eis a metáfora do Brasil. Ó, céus! Quer dizer que estamos assim: comendo bosta e, incapazes de nos desvirar, a mercê da fome de outros bichos?

Que triste.

Lá pelos seus quatro anos, minha filha andava encafifada com lobos, com o Lobo Mau para dizer a verdade. Eu e ela fomos ao zoológico para ver um guará, a espécie brasileira. Custamos a achar o local em que ficavam e mais ainda a vê-los, pois estavam metidos no fundo da jaula, deitados em algum lugar, enfim, indisponíveis. De repente, apareceu um, um só. Ao avistá-lo, coloquei minha filha no colo, apontei com o dedo e disse: “Olha o lobo”. Ela, frustrada com o que via, em nada parecido com o Lobo Mau, respondeu: “Isso não é um lobo, pai, isso é uma tartaruga”.

Alguns lobos não passam de tartarugas, mas os besouros, coitados, são comidos por um e por outro. Se é que não se desviram e alçam voos. Se é... quero acreditar nisso.

5.12.19

O orientador


Até aquele momento, a oficina transcorria dentro do que se pode considerar normal. Levávamos nossos exercícios, e o orientador fazia aquilo pelo qual nós o pagávamos: orientava. Apontava um personagem incoerente aqui, uma frase que soava como um ruído ali, uma história sem muito sentido.



Foi exatamente a partir da história avaliada por ele como inverossímil que o clima esquentou. O conto de Deluz era bem engraçado, mas o orientador cismou com uma passagem na qual o personagem comprava uma besteira numa grande loja de magazine e pagava com uma nota falsa. Para o orientador, ninguém conseguiria passar uma nota falsa numa loja com tamanha estrutura. A discussão ficou boa, tendo-se formado dois grupos. De um lado, os que reconheciam a impossibilidade de aquilo ocorrer, mas também não viam no fato a menor importância para o desenrolar do conto. Além do mais, havia o maldito “quase”, nessa perspectiva, tudo pode acontecer, a vida imita a arte, essas coisas batidas. O outro grupo, encabeçado pelo orientador, era irredutível. Se o conto é realista, a realidade tem de caber nele. O conto de Deluz seria realista até a medula, então que a realidade coubesse nele.

Gerônimo, o caladão de poucos contos e de poucas opiniões sobre nossos trabalhos, pediu a palavra para dizer que o orientador estava mostrando um lado terrível, a ignorância. Antes que alguém reagisse, ele continuou com seu argumento. Citou dois livros da primeira estante da literatura mundial. Na obra de Proust, há um molecote de uns sete anos que, ao andar pelo campo, reconhece cada uma das florezinhas encontradas pelo caminho, cada miosótis, cada isso, cada aquilo, Gerônimo se lembrava da cena mais geral, não dos detalhes. No entanto, era algo sem realismo algum, nenhuma criança daquela idade conheceria a natureza tão a fundo.

O orientador ficou emudecido, seu olhar embaçou.

Gerônimo, indiferente, continuou argumentando. Victor Hugo, no monumental Os miseráveis, criara uma situação na qual Jean Valjean ficou horas dentro de um caixão quase todo fechado, depois foi jogado na cova e saiu da situação só um pouco tonto. E mais, ele só foi salvo porque seu aliado e protetor conseguiu tirar do bolso da camisa do coveiro um papel importante, sem o qual o coveiro não sairia do cemitério depois das cinco da tarde. Foi uma artimanha para fazer o coveiro largar tudo e correr para a casa atrás do documento e o amigo de Jean ter tempo de abrir o caixão e tirá-lo de lá. Ou seja, zero de verossimilhança.

O orientador suspirou fundo, ficou de costas para nós e deu uns bons murros no quadro negro. Zilda e Lúcio saíram da sala às pressas. O ar ficou carregado. Deluz olhou com raiva para o Gerônimo. Gerônimo deu de ombros. Uma ansiedade coletiva fez o ar carregado ganhar corpo e escurecer a sala.

Um vento leve, mas barulhento, denunciou um movimento abrupto do orientador. Ele rodopiava e, quando pudemos ver novamente seu rosto, o orientador não era mais o orientador. Ao começar a andar em nossa direção, percebi que quem se aproximava era um minotauro, um minotauro dilacerado e faminto. O monstro parou diante da cadeira do Gerônimo, tomou-o pelo cabelo e o devorou.

Retornando a seu lugar, rodopiou outra vez e voltou a ser o baixinho e estridente de sempre. Esfregou as mãos e nos mandou embora. No próximo encontro, fez questão de enfatizar, retornaríamos àquela profícua discussão.


Achei tudo um pouco contraditório, o defensor da verossimilhança fazer o que havia feito, mas quem sou eu se não um reles aprendiz. Meus colegas, em particular o Deluz, ficaram como que petrificados em seus assentos. Para mim, ordem dada, ordem cumprida: caí fora. Carreguei a impressão de ter participado da melhor aula de todos os tempos.

4.12.19

História curta



Conto uma história curta. Na realidade, um crime. Um crime passional. Fim de uma paixão cujo início foi igual a todo início de uma paixão.

O casal se conheceu no carnaval, deitou-se nas cinzas, foi morar junto num maio esplendoroso, mais esplendoroso do que qualquer outro. Maio do amor. Maio da fúria. Maio único. E único maio.

Em setembro, ele, ao abrir a porta de casa, encontrou a mulher encolhida no sofá. Os dois se olharam. O olhar dele carregava o brilho do primeiro dia. O dela continha uma bruma, o amor fugira dali.

Foi o suficiente. Ou melhor: é o que se pode supor.

Ao arrombarem a porta, o que havia? Ela e ele mortos. Ela morta por ele. Ele morto por ele. Não se sabe nada além disso.

A vizinha do lado emprestara-lhes, no início de julho, uma cumbuca de açúcar. Considerava-os simpáticos, mas não os encontrara mais de duas vezes.

25.11.19

O estilo sabático

O olhar perspicaz, é isso que cobram de nós, de nós, os escritores. O meu, falo em tom de derrota, passa longe da perspicácia, do tino, que é sinônimo de perspicácia, da compreensão, que é um passo além. Escrevo mais sobre o que não vejo e talvez nem exista, mas, pontuo com estardalhaço, essa crônica não é nenhum lamento, autocrítica — que fique, no momento, no campo da política partidária —, nada disso. O que é então?

Atrasado, bem atrasado, tive um lampejo e, a partir dele, rabisquei uma teoria. Teoria é exagero, vou dizer uma coisa que saltou aos meus olhos hoje, um sábado que substituiu o resto chuvoso da semana por um sol ameno, um sábado entre outros mais de dois mil que vivi no Rio, a maioria deles no mesmo bairro.

Antes de anunciar a descoberta — palavra que deveria estar entre aspas, mas, como estou presunçoso, afinal nunca lancei uma teoria, ainda que, como disse, não se trate de uma teoria, vou dispensar as aspas —, preciso esclarecer que a tal descoberta não necessariamente valha para Paris, para os países nórdicos, nem mesmo para a região amazônica, quiçá não alcance São Paulo ou Niterói. Vou ser mais radical, não posso afirmar que valha para Madureira, São Cristóvão, no máximo aconteça o mesmo no Flamengo e em Copacabana, bairros adjacentes a Botafogo, esse pedacinho da cidade que, segundo li por aí, está entre os mais cults do planeta.

A tese: há um jeito típico e exclusivo de se vestir aos sábados pela manhã.

Como descobri? Observando as pessoas e a mim mesmo. No caso masculino, aquela camiseta velha, se não velha, amarrotada, a que foi usada num chope na quinta e depois ficou na bagunça do quarto, esquecida de ser jogada na roupa suja, encontra razão para ser vestida ou mais uma vez vestida. Pressionados a justificar tamanha deselegância, alguns devem se mostrar preocupados com o aquecimento global, com a necessidade de economizar água e evitar ao máximo o descarte de água com sabão em pó no esgoto urbano. Não importa se falam honestamente ou se é só mais uma forma de sair pela tangente, o fato é que, no sábado de manhã, os homens resgatam a camiseta velha ou amarrotada. A bermuda escolhida pode até não estar amassada, mas é velha, vê-se pelo modelo, ninguém mais traja aquele corte, aqueles bolsos, aquele tecido. No caso do chinelo, deve-se ponderar que os homens de Botafogo (amplio para os cariocas, sem medo de errar) não o descalçam nem para dormir, portanto, se o sábado exigisse uma camiseta nova e uma bermuda da última coleção, o chinelo seria exatamente o mesmo.

As mulheres continuam cultivando a vaidade, ainda que o mundo dê seus pulos e elas estejam exigindo igualdade de tratamento no mercado masculinizado, clamando aos céus o amadurecimento de seus parceiros, dando banana para a caretice de uma sociedade ainda horrorizada com a pauta multicolorida da sexualidade e tantas outras lutas políticas de suma importância. Aqui tenho de fazer um esclarecimento. A vaidade da qual falo não é vazia, doentia, feito aquela que escravizou uma conhecida. Conta-se que durante a vida toda seu marido nunca a viu sem maquiagem. Se ele tinha um compromisso muito cedo, ela se levantava uma hora antes e se embelezava, quer dizer, naquele tempo embelezar era isso. A questão está aí. Hoje a vaidade não se dá pelo outro — há casos que sim, paciência, é a tal exceção —, a vaidade é um estar bem consigo mesmo. Nesse aspecto, a mulher não cai na esparrela de vestir-se do amarrotado. Quer dizer, até veste-se, notadamente nos sábados matutinos, mas sobre ele joga um lenço, um cinto, um brinco, enfim, um adorno qualquer para dar um trato à informalidade. E, dessa forma, nessa hora precisa e nesse dia preciso, sai à rua.

Chego ao ponto: nas manhãs de sábado — ao menos em Botafogo, repito, não quero ser acusado de um generalista inconsequente —, circulam as pessoas no extremo de sua casualidade. Se vamos à feira; se vamos comprar um prego; se vamos procurar um ramalhete de flores vermelhas ou amarelas ou brancas, tanto faz; se vamos à farmácia ou a qualquer lugar, até o meio-dia de sábado, nosso traje é casual, com ou sem um toque de vaidade.

Sábado cedo é o dia e a hora em que a rua parece uma passarela de almas dedicadas à verdade. Por pouco não caminhamos nus, e é certo que estamos lindos.

11.11.19

Conversa mole

aos Escritores de Ressaca


Tudo acontece nos grupos de Whatsapp, o que não é novidade para ninguém. Todos ou quase todos estamos ou já estivemos num daqueles alimentados em velocidade estonteante. Conteúdo? Muito “bom-dia”, “Deus te guie”, nada além. Não reclame, há piores. A fábrica de fakenews, o desfile da rudeza, o suspiro e o gemidão insistentes da pornografia, tudo encontrou no aplicativo que está destruindo a chamada telefônica o local ideal de reprodução.



De todo modo, há horas engraçadas e/ou interessantes perdidas nesse museu de nossas podridões. Tenho um velho conterrâneo que toda manhã envia uma espécie de oração, não, não é oração, é uma reflexão, um texto que os menos incrédulos ou os mais esperançosos leem e se sentem bem, fortalecidos. Não é o meu caso, mas tudo bem, é melhor isso do que um cartãozinho com passarinhos piando “boa semana, coração”. O mesmo amigo, passado o meio-dia, dispara o envio de fotos de mulheres nuas, que chega ao infinito nas sextas-feiras. Acho engraçada a situação, apesar de quase nunca ter paciência de ler o texto matinal e de checar as imagens vesperais.

Há um grupo feito especialmente para alguns escritores nos socorrermos uns aos outros quando somos atacados por aquela dor de cabeça que os porres — não os “de vinho, de poesia ou de virtude” à moda de Baudelaire — causam. As prosas são sempre inconsequentes, amáveis, o que não impede de às vezes algum de nós entrar na hora errada (de pileque e não de ressaca) e distribuir meia dúzia de sopapos virtuais à revelia. Tudo perdoável à luz de São Drummond de Lispector Ramos.

Nesse grupo, há poucos dias, levantou-se a “teoria” de que Joyce, recluso para escrever seu romance mais famoso, verdadeira bomba sobre os alicerces da literatura, não encontrava um bom título. Já em desespero, ele ouviu, de um cômodo contíguo àquele em que estava, alguém perguntar: Ouvisse? Foi o que bastou, o título do livro estava ali: Ulisses. Sim, amigos, a troca de mensagens entre escritores que podem, hoje ou amanhã, abocanhar os prêmios literários mais importantes do país, quiçá do mundo, desce a esse nível. Ou a níveis ainda mais baixos, pois, a essa piada infame, emendou-se que Joyce servira de modelo para a velhinha do “A praça é nossa”, aquela que entendia “Ulisses” quando se dizia “ouvisse” ou, como era o mais habitual e motivo dos conflitos envolvendo a personagem, “a camisinha furou” no lugar de “uma vezinha, por favor”. 


Ao falar em Joyce, lembro-me de meu amigo Horácio Soares Neto, falecido antes e não por conta do Whatsapp. Pioneiro em informática no Brasil, xilogravurista e escritor, em um de seus romances policiais, acontece de o detetive, caçador e caça, numa hora de aperto, se meter em um hotel de quinta categoria nos arredores da Central do Brasil. O recepcionista, homossexual efusivo, ao se apresentar, diz: “Meu nome é Ulisses, mas pode me chamar de Joyce”.


É melhor conviver com essas bobagens do que com loas às armas, cusparada sobre os “esquerdopatas que dominaram o mundo até aqui”, canalhice contra minorias, ignorância vestida de beca. Conversa mole em dias duros tanto ampara como aos bons laços de companheirismo perpetua.



28.10.19

O que combina com o quê?


Azul com goiaba.

               Alegria com beijo.

Cinema com silêncio.

                   Cerveja com circunlóquio.

        Futebol com xingamento.

        Música com viagem.

                        Humor com sexo.

Elefante com modéstia.

        Mitocôndria com piada.

                     Ampola com morte.





           Vigor com aurora.

Lua com soneto.

                  Chuva com saudade.

                 Injustiça com violência.

           Manicômio com escuridão.

Droga com espasmo.

              Mar com invasão.

              Rio com enlevo.

                       Fronteira com desterro.

Serenata com desejo.

                        Uva com pecado.

Ponto e vírgula com inexatidão.

Porrinha com despojamento.

                    Dança com entrega.

           Flor — amor também — com assombro.

Mais alguma coisa com outra coisa. A lista não é grande.


14.10.19

Geografia fluida

Para Denise, Helena e Nelson

Numa manhã friorenta, uma amiga de infância me escreveu para contar que, num sonho, ela teria vindo ao Rio e passeado ciceroneada por minha filha. O Rio não era bem o Rio, “o Rio se parecia com uma ilha grega, as casas, clubes e prédios pendurados nos morros, as construções todas loucas como as obras de Gaudi em Barcelona”. As duas, depois de se perderem por uma cidade irreconhecível, me encontraram “num quarto, que era o ateliê de um pintor (Carlos Bracher) em Ouro Preto”.

Enquanto ela sonhava essas coisas, eu sonhava que estava com um amigo nos arredores de Brusque, em Santa Catarina. Era um cânion, com um rio miúdo correndo muito lá embaixo — associei-o ao Itaimbezinho. Meu amigo fazia uma reportagem secreta, secreta até para mim, que o acompanhava. Algo ou alguém apareceria no rio, era tudo que eu sabia. Depois de estar no alto, apareci do nada com os pés na água e vi descer pelo riacho, como previsto, uma espécie de jipe-tanque. Nele vinham uns sujeitos armados que se pareciam — o paralelo deixará muito jovem perdido, sem entender a referência, peço perdão caso haja algum passando os olhos por aqui — com os prisioneiros de guerra daquele velho seriado de TV, “Guerra, sombra e água fresca”.

Para além de mostrar que, mesmo não me lembrando com frequência dos sonhos, de alguns me lembro, e, mais importante, que estou em sonho de outras pessoas, relato esses para falar da geografia. Alguém está saracoteando pelo Rio, uma Grécia catalã, e, ao me visitar, me encontra em um quarto em Ouro Preto. No meu caso, andei pelos arredores de uma cidade pela qual nunca nem passei, que bem poderia ser Itaimbezinho, outro lugar que desconheço e que não é muito perto de Brusque.

Não seria interessante se pudéssemos desconstruir e reconstruir os espaços ao bel-prazer? Viver em mundos paralelos, sem ter de recorrer a drogas, rezas, desatinos, sem ter de contar com a sorte e a aleatoriedade dos sonhos? Fosse assim, nos aproximaríamos de Deus, quer dizer, do poder de Deus (Senhor, livrai-nos disso), poder que, pelo menos no meu caso, seria usado apenas em banalidades.

Por exemplo, sem tirar nada de lugar nenhum, trasladaria para uma esquina de Botafogo a Praça da Matriz de Passos, de modo que passear em torno de seu chafariz, sentar-me em seus bancos, tomar a sombra de suas árvores fosse uma possibilidade tanto para o meu irmão quanto para mim. Meu quarto poderia ser o ateliê do Carlos Bracher, em Ouro Preto, um cantinho onde eu desenharia mundos coloridos, mas que, ao deixá-lo, estaria bem na parada de ônibus em que costumo tomar o 409. A oficina e loja do Marquinho Ajeje, a Divinas Gerais, em Tiradentes, continuaria na cidade histórica, sem deixar de estar a dois passos de qualquer lugar em que eu estivesse. Assim, na hora do cafezinho da tarde, eu visitaria meu amigo, apreciaria a poesia — suas mesas, cadeiras, molduras, tudo que faz, são peças, além de funcionais, poéticas — que ele produz com madeira de demolição e desfrutaria de nossa prosa fiada e afiada.
  
Bom seria se a geografia, em vez da rigidez do longe e do perto, nos desse a liberdade de ajeitá-la de acordo com nosso interesse. Os amigos, morassem aqui ou lá, estariam à mão, pois aqui e lá deixariam de existir.

Se penso em dar fluidez à geografia, penso também em dar rigidez à história. Em que sentido? Ora, no sentido de deixar algumas coisas no passado, só no passado. Por exemplo: essa poção de incivilidade que andam resgatando de tempos sombrios deveria constar apenas das páginas dos livros, como um alerta para que a estupidez — violenta, misógina, homofóbica, racista, injusta — não ocorresse nunca mais.

30.9.19

O que fazer?

Na sexta, dia 20 de setembro, no Complexo do Alemão, a menina Ághata Félix, oito anos — oito — foi assassinada, com um tiro de fuzil nas costas, pela força policial do Rio de
Janeiro. A morte de uma criança, de uma criancinha, ainda causa indignação e, no caso, a essa indignação seguiu-se uma dúvida: o que fazer contra essa política a qual o governador do Rio associa à imagem de atirar na cabecinha dos bandidos? Segundo dados divulgados pelo “Fogo Cruzado”, em 2019, 16 crianças foram baleadas, cinco morreram. Quem acompanha, mesmo por alto, os especialistas que estudam a questão de segurança pública sabe que a política tocada pelo governador não chega ao resultado esperado, a redução da violência.

Numa reunião da qual participei como ouvinte, essa dúvida (o que fazer?), que gera certa imobilidade, ficou em evidência. Era um grupo de negros, quase todos nascidos em favelas, um bom número vivendo nelas. Não vou falar muito do que, na realidade, são encontros mensais, porque eu estava ali por ser amigo do organizador, que me disse: venha, vai ser muito bom. E foi, ô, se foi. A voz é deles, eles que falem ou não falem, sou um intruso. Vou comentar apenas aquilo que está ligado à tal pergunta que se repete.

Luís Antônio Simas e Suellen Guariento foram encarregados de fazer a fala inicial. Ele, historiador conhecido por se dedicar ao estudo da dinâmica das ruas da cidade do Rio de Janeiro, ou das cidades que formam a cidade, como ele prefere; ela, jovem negra cientista social com raízes na Zona Oeste e na Baixada Fluminense, cuja parte dos estudos está focada na trajetória das mulheres que perdem seus filhos na guerra que o atual governador não inventou, mas, com sangue nos olhos, adotou como política de Estado.

A reação ao que foi dito inicialmente se deu em forma de testemunhos de vida. De vida de jovens, e bota jovens nisso, gente de 20, 20 e poucos anos, quase ninguém com mais de 30. Ouvi histórias pungentes, baseadas em fortes laços afetivos (família, igreja, vizinhança). As falas invariavelmente terminavam com a dúvida a respeito do que fazer. A ansiedade em pessoas que estão no auge da força física, no caso, não pode estar desassociada do fato de serem negras. Segundo o Atlas da Violência de 2019, em 2017, houve mais de 65 mil homicídios no Brasil. Desse número, 55% foram de jovens de 15 a 29 anos e, nessa população (agora de acordo com o estudo “Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida”, de Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho), o jovem negro tem uma probabilidade de sofrer homicídio em torno de 25% maior do que o não negro. O Atlas ainda permite observar que, das quase 5 mil mulheres assassinadas em 2017, 66% eram negras. A ansiedade dos que estavam na reunião se explica.

O que fazer? Precisamos construir uma resposta de forma coletiva. Como se faz essa construção? Conversando. Que tipo de conversa? Qualquer uma, todas, desde que feita fora das redes sociais. O dissenso e o consenso, coração de uma boa conversa, se desdobram em choro, em riso, o que requer, por fim, um abraço. Não há abraço (e olhar) sem presença física.

Tudo começa no encontro — nisso aqueles jovens negros têm dado um passo adiante e, embora não o reconheçam totalmente e sofram de ansiedade, já rascunham suas respostas. Que o exemplo se multiplique. É chegada a hora de convites para chopes, reuniões, sessões de cinema, caminhadas.

21.9.19

Aghata Vitória Sales Félix - Morta pela polícia do Rio, em 21/09

Aghata, eu não segurava a arma, não dei o tiro, mas sou seu assassino. Se me calo, torno a matá-la, a ceifar sua vidinha tão miúda, seus oito anos. Não vou depositar aqui, como flores de uma inteligência que a tudo alcança, explicações em relação aos descaminhos tomados por esse Brasil vergonhoso.

Venho apenas confessar meu crime. O crime de quem nunca atirou, de quem não estava no Alemão, ali no Estofador, na hora que uma policial — ela terá filhos? —, talvez de olhos fechados, disparou o fuzil.

Pequena Aghata, fui eu o assassino. Minhas mãos estão limpas, mas minha consciência não. Sabe o que eu fazia mais ou menos na hora que o tiro encontrou suas costinhas em formação? Eu tirava uma selfie para fazer uma brincadeira no Facebook e atiçar a curiosidade de meus amigos ou conhecidos daquela rede sobre a frase que acompanharia a foto: “para o ano”. Eu fiz isso, está lá a foto. Ao fazer isso, eu a matava no Alemão, sem dar um tiro.

Seu nome parece que é nome de uma santa, santa protetora dos seios, veja isso, dos seios, nosso primeiro prato farto, nosso primeiro bibelô, nosso primeiro travesseiro. Será que sua mãe lhe deu o peito? Sua mãe morreu um tanto ontem. Você e ela por minhas mãos. Por minhas mãos limpas.

Se me calo, atiro mais uma vez e mato você, que já está morta. Mato você de novo e, de novo, outras tantas crianças iguais a você, pretas e pobres. Porque a ideia agora é evitar que vocês cresçam, que vocês tomem assento no parlamento, que conquistem seus direitos no grito, na garra. Vocês têm tanta garra, vê se é possível conviver com isso!

Eu a matei, Aghata. Que grande bandido anda grudado nas minhas mãos limpas.

16.9.19

Efeito colateral do sonho

Estava em Tiradentes durante a semana de gastronomia. Cheguei no sábado e, até o dia seguinte, quando meus anfitriões voltaram de uma pequena viagem, fiquei só e gastei o tempo andando e cumprindo com louvor uma tarefa típica dos vagabundos: medir as ruas.

No caminho para o centro histórico, na boca da rua, o supermercado vendia, num preço bem mais convidativo do que aquele praticado lá no bochicho, geladíssimas cervejas. Meu trajeto me impedia de ignorar a promoção. E foi, já no Largo das Forras, sentado ao pé de uma daquelas árvores tão históricas quanto a cidade e tomando uma das cervejas compradas a preço de ocasião, que ouvi uma criança chorar. Em seguida, um menino foi lá tentar acalmá-la. Uma graça, ainda existem gestos solidários.

Eu não estava no centro dos acontecimentos, tudo se passava ali nas minhas barbas, enquanto minha preocupação era com o que eu faria com a garrafa vazia, já que não via uma lixeira disponível. Sei que o choro sumiu, a ajuda do menino foi providencial. Um mundo sem choro é bom, é bem melhor do que aquele com choro, mas quem chora sabe bem como chorar alivia. Do ponto de vista de quem chora, o mundo com choro é muito melhor. Viver é um encanto, quando não é um fardo. Com choro ou sem choro, vai-se levando.

Depois de localizar uma lixeira e deixar uma das garrafinhas lá, vi que o pai levava para perto de outros familiares a criança que antes chorava. Ao chegar, contou o diálogo que teria tido com ela. Reproduzo suas palavras. Ele perguntou: “Acarmou?” Ela respondeu: “Acarmei”. Ele fez outra pergunta: “Por que que ocê tava nervosa?” E ela, definitiva: “Porque eu sonhei”.

No jeito de falar, na entonação, o diálogo carrega Minas inteira e, por isso, alimenta minhas saudades. No entanto não é só Minas que está ali, o Brasil inteiro está. O Brasil no qual, ao sonhar, perdemos a calma. Como vivemos um pesadelo, qualquer imagem idílica que se nos apresente não nos pacifica, nos desacarma. Ao sonhar, as crianças choram. Nós... não posso generalizar, então falo de mim. Eu, diante do breu destes tempos que o grande Veríssimo chamou de guerra (Somos atacados pelo governo, O Globo, 5/9/2019), bebo.

Minto. Além de beber, vou para as ruas; participo dos movimentos críticos da verdadeira barbárie que se escolheu pelo voto; escrevo. Faço o que posso.

Não fico calmo, ou seja, sonho. Sinto-me bem assim.


2.9.19

Oração


Ensaio palpiteiro sobre a crônica


Patinho feio da literatura, a crônica é de leitura leve, ainda que nem sempre o assunto de que ela trata seja ameno. Surgida nos jornais, num cantinho rodeado de notícias sangrentas ou muito importantes, essas que falam dos rumos do país e até do mundo, a crônica, para sobreviver, fez-se sedutora. Conseguir um leitor não é tarefa fácil, daí a opção pela sutileza (contra as certezas brutas dos vizinhos), pela linguagem polida (contra o texto prolixo) e até pelo assobio (em clara tentativa de falar com os pássaros, pelo menos com eles).

Ao contrário da poesia, do romance, do conto ou do ensaio, a crônica busca o leitor em vez de ser procurada por ele. Explica-se assim o seu jeito atirado, mas nem de longe vulgar. A crônica é, por estratégia de sobrevivência, sensual, ainda que não fique claro se sua sensualidade é feminina ou masculina ou, o que parece mais apropriado, masculina e feminina. Digo que é sensual, mas é preciso dizer que é uma sensualidade que não está diretamente ligada ao ato sexual. Em vez da carícia preliminar, a crônica é aquele telefonema no meio da tarde para dizer que vai se atrasar, são as roupas íntimas que, lavadas durante o banho, ficam esquecidas no box, é a mão que toma a outra durante a sessão de cinema.

Talvez por ser tão comezinha, a crônica cuide dos assuntos comezinhos. Ou dê tratamento comezinho a qualquer assunto. Uma superpotência invade um país, a crônica não se mete com as questões geopolíticas, com os interesses econômicos envolvidos. Sua preocupação é com as mães que esperam os filhos enquanto as bombas caem pelo caminho, com o filho que espera o pai, com o pai que espera a mulher. A crônica é guardiã da delicadeza, talvez por isso seja o suprassumo da política.

Apesar de ser aliada dos que estão à margem do poder, a crônica não fala de sua indignação apenas em tom severo e tristonho. É encrenqueira, escrachada, hilária; claro, quando quer, porque não aceita ordens, enquadramentos, leis, horários, limites. Nisso, não se difere da literatura ou das artes de modo geral. Quando a crônica se curva e aceita limites que lhe são impostos, ela não vai além de uma lenga-lenga saída das mãos de um canalha.

19.8.19

Briga de rua

Pela movimentação nas imediações do metrô, logo percebi que era um rolo, o desentendimento imediatamente anterior a uma briga de rua. Na minha cidade, 50 anos atrás, as brigas ficavam restritas a socos, mas hoje tudo está tão a tiro e pó que, cauteloso, procurei me afastar. De soco e até de cadeirada, sei me defender, seja com a ginga de corpo, seja com um revide, mas de bala...

A curiosidade, mórbida, é verdade, não me fez simplesmente deixar o local e ir para casa ou mesmo para um bar distante, onde nenhuma sobra da briga me alcançasse. Me posicionei num longe perto e fiquei de butuca. São as palavras que identificam os grupos confrontantes, também são elas que levam os agressores a agir — não por acaso, a pancadaria começa quando um xinga a mãe do outro. Sabendo disso, pus a orelha lá no meio do bafafá. “Pôr a orelha”, não sei se devo me explicar, é só uma força de expressão, longe perto eu estava e fiquei, e, de lá, mantive-me atento, atentíssimo.

Logo que agarrei as primeiras palavras da roda, vi que as condições da discussão não eram muito claras. Não parecia haver lados distintos, os grupos eram diferenciados pela intensidade com que cada um deles se identificava com o tema em debate. Seria como se torcedores do Flamengo brigassem para saber quem era mais flamenguista. Eu sou flamenguista roxo. Eu sou flamenguista com título de sócio-proprietário. Eu sou um geraldino órfão do velho Maraca. Mas não era sobre o Flamengo. Nem sobre Botafogo, Vasco, Fluminense ou América. Também não era sobre Portela e Mangueira, sobre Zona Norte e Zona Sul ou sobre Nordeste e o resto do país.

A briga era para saber quem estava mais duro. Eu não tenho dinheiro para entrar no metrô, descer na Central e tomar o trem até a Pavuna. Ora, mas você almoçou, não é? Parem com essas coisas de pobre, pior sou eu que devo o ordenado de hoje, o de amanhã e o de depois de amanhã. Veio aqui só pra gozar da nossa cara, seu classe média decadente. Muito bonito! E eu? Não posso parir o filho que carrego para ser mais um faminto na vida e não tenho um tostão para não levar a gravidez adiante. Nessa hora, pensei: vão aparecer os religiosos e dois grupos serão formados, os contra e os a favor do aborto, e, aí sim, tendo dois lados, a guerra começará. Mas não. Outra moça enfrentou a primeira. Você ainda faz por onde engravidar, eu e meu namorado tivemos de empenhar nossa libido na Caixa. Só querem dinheiro para a sem-vergonhice, de cultura ninguém quer saber. Mas eu não vou ao cinema, não vou a museu — nem digo os da Europa — já nem sei há quanto tempo.

Um mendigo correu para o centro do círculo recém-formado e com gestos de quem apresenta uma atração no picadeiro desejou a todos uma boa estadia no inferno. De tornozeleira eletrônica à vista, um arquimilionário jogou o mendigo para fora da roda e começou a dançar, e logo se viu que não era uma dança. O homem que foi obrigado a entregar ao erário três Mercedes, quatro barcos, dezoito aviões, trinta e duas concubinas e um elefante que defecava marfim foi tomado por uma entidade. O preto alto e sorridente fez questão de dizer que não era nenhuma divindade africana naquele corpo branco que, de um instante para outro, passou a emitir um bip-bip interminável. A menina de oito anos, que reclamava um churros prometido havia exatos quatorze meses e vinte e sete dias, apontou o dedo pro possuído e, com medo de que ele explodisse, se escondeu entre as pernas do pai. O pai, indiferente ao temor da filha, garantiu o doce para o próximo mês. Enquanto isso, o arquimilionário, entre aplausos e vaias, encenava, como um canastrão daqueles, uma queda ao chão.

Comecei a achar que me faziam de palhaço. Tudo indicava que o pau ia quebrar, mas nada, só bate-boca, só um querendo fazer de sua desgraça a mais terrível. Pensei na minha pindaíba, maior que umas, menor que outras. Lembrei-me da queda livre de muitos amigos. Seria bom me aproximar daquelas pessoas e explicar a elas que todos sofríamos por conta do governo, com exceção do arquimilionário, um fanfarrão que haveria de se ver com os deuses da África. Dei os primeiros passos e, ao tomar o lugar no centro, não sei o que aconteceu comigo, sei que meti um soco no rosto que me olhava à espera da confissão de meu fracasso. Não era o do milionário.