24.1.16

Infância

A Nilma Lacerda, que, ao falar da importância do mediador na alfabetização, tomou poeticamente como exemplo Graciliano Ramos.


Em "Infância", como não poderia deixar de ser, Graciliano Ramos conta como foi sua vida de menino, o que se deu na passagem do século XIX para o XX. Não só pelas mudanças tecnológicas e da organização social observadas entre aquele período e o atual — e mesmo entre aquele e a década de 1960, quando fui criança —, o livro nos leva a uma infância muito diferente da que conhecemos hoje. Graciliano nasceu e cresceu no Nordeste, região que já era sofrida ou ainda mais sofrida do que agora. Seca, pobreza, injustiça, pouco acesso a quase tudo — livros então — faziam parte do dia a dia do garoto que viria a ser um de nossos maiores escritores.



Graciliano devota particular atenção a sua luta para se alfabetizar. A gente talvez seja inclinada a achar que seus pendores (de futuro escritor) tornariam fácil a tarefa de dominar o beabá, mas, ó, doce ilusão, o que se vê em seu relato é um sofrimento só. Escolas precárias (um explicador, no mais das vezes, que se encarregava de ensinar em casa, juntando uns dois ou três meninos) e/ou uma pedagogia improvisada por algum parente. No caso de Graciliano, o pai tentou, e o “pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre.” Esse desastre é apontado do seguinte modo: “Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me.” Como esse menino ferido em sua autoestima deu a volta na frustração e virou quem virou não está nas páginas do livro, o que está lá é um olhar que se depara com as velhas dificuldades e sobre elas reflete, sem deixar de rir de tudo.
Logo depois de o pai desistir das aulas, Graciliano não se fez de rogado e pediu a ajuda de uma irmã. Chega-lhe então à mão o seguinte texto: “A preguiça é a chave da pobreza — Quem não ouve conselhos raras vezes acerta — Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” E o menino fica intrigado: quem seria Terteão? Quem? A irmã não sabia, nunca ouvira falar dele. Graciliano, seco, ri de si, e eu rio dele, mas, sejamos sinceros: como é duro aprender, em particular o português, língua estruturada em gramática tão árida.
Graciliano ilustra outras “alfabetizações” pelas quais passou ao longo da infância. Uma delas foi a de aprender o que, afinal, é o homem. E aprender o que é o homem é conviver com fronteiras muito tênues, pois ninguém é uma coisa só. Falo isso do alto de meus mais de cinquenta anos, quando já vi demais, mas um menino aprender, melhor, viver as contradições inerentes ao ser humano é duro e muitas vezes nem é notado. Graciliano notou e notou muito bem.
O melhor exemplo de sua acuidade está no capítulo “Fernando”, que começa assim: “É uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso.” A partir daí, Graciliano conta que, antes de ter contato com Fernando, já conhecia a sua fama e, “se fosse tão mau como afirmavam, não existia patife igual”. Aparentado com coronéis, verdadeiros donos do mundo, Fernando fazia e acontecia, sem que nenhuma de suas atitudes violentas fosse punida, haja vista que a justiça não funcionava ali ou, por outra, a justiça se confundia com a vontade dos latifundiários e seus apaniguados. Graciliano cresceu temendo esse pau mandado dos poderosos até presenciar uma cena no comércio que seu pai mantinha. Os empregados tiravam mercadorias de caixas de madeiras e, distraidamente, deixaram uma tábua com pregos solta no chão. Fernando, que matava o tempo na loja, se levantou, pegou um martelo e entortou os pregos, mostrando-se preocupado com a possibilidade de uma criança ferir-se com eles. As certezas de Graciliano ruíram, e o escritor termina o capítulo assim: “Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças.”
A lição aprendida por Graciliano, feito os devidos ajustes, está nos faltando na atual conjuntura, período no qual achamos que o outro é esse Fernando, até mesmo aquele histórico Nero, um monstro incurável.

11.1.16

Quem eu sou

Eu sou o capitalista que chora pela fome das crianças de Mali.
Eu sou a mulher que fuma charutos às escondidas da sogra.
Eu sou a sogra cega.
Eu sou o ciclista com ganas de atropelar a sombra dos automóveis.
Eu sou o que roubou a herança para comprar uma partitura original de Debussy.
Eu sou a bicha que cuida da segurança da vila.
Eu sou o motorista do carro que tem simpatia pela contramão.
Eu sou o paulistano para quem a cidade não vai além da minha rua.
Eu sou a mulher que dá ordens na cama.
Eu sou a freira cujas crenças nunca revela.
Eu sou o matador profissional de pulgas.
Eu sou o sambista de uma nota só.
Eu sou o desgraçado de bem com a vida.
Eu sou a norueguesa que planeja casar-se com uma guria guatemalteca.
Eu sou o vigarista notório que ainda tem medo do pai.
Eu sou o negro de alma branda.
Eu sou a jogadora de pôquer que aposta e entrega as calças.
Eu sou o poliglota que comete os mesmos erros em todos os idiomas.
Eu sou o poeta que prefere pudins a sonetos.
Eu sou o confeiteiro de endechas.
Eu sou o valentão que só tem mais um dente para perder em briga de rua.
Eu sou a mulher cuja beleza é meu silêncio.
Eu sou aquela que visitou o estuprador faminto.
Eu sou o velho sem idade.
Eu sou a santa que procura se manter incógnita.
Eu sou o seresteiro fora do tom.
Eu sou você que não se conhece.
Eu sou o garotão do Arpoador vivendo no Alaska.
Eu sou o policial que não brincou de mocinho e bandido.
Eu sou o Hércules domesticado.
Eu sou a amante do homem puro.
Eu sou o que em vão abastece de medo o corrupto.
Eu sou o crupiê de roleta russa.
Eu sou a mosca que vomitou na sua sopa.
Eu sou o rei nu, depois de usar o vaso sanitário e antes de se limpar.
Eu sou a rainha um pouco lesada de tanto pó.
Eu sou o melhor aluno do professor cansado.
Eu sou a professora do aluno castrado.
Eu sou o riso.
Eu sou a lágrima.
Eu sou um deus nos acuda sem dinheiro. Passo bem, apesar de tudo.

Com Mondrian na madrugada

Sem sono, zapeei até chegar ao Arte 1. Neste canal passava um documentário sobre Mondrian, parei para vê-lo. Naquele instante contava-se que, antes da Primeira Guerra Mundial, ele fora visitar o pai adoentado na Holanda. A guerra eclodiu, e o artista teve de ficar um bom tempo longe da França, onde vivia àquela altura de sua vida. Deve ter sido a referência à enfermidade paterna o que me fez lembrar-me de meu pai, de quando ele morreu.
Em minha memória armazeno inteiro e intacto aquele dia. Na tarde anterior, recebi um telefonema dizendo que meu velho havia sido internado. Intuindo o pior, corri à rodoviária e, depois de combinar com meu cunhado e minhas irmãs de irmos de carro para o interior de Minas, peguei um ônibus com destino a Belo Horizonte. Pouco dormi durante a noite. Pensava nas muitas viagens que fizéramos juntos, papai e eu. Irresponsável, ele entregava o carro nas mãos de um garoto de 14 anos — e dormia. No escuro, eu buscava me confortar com essas e outras recordações e me arrastava à boca de uma conclusão: a nosso modo, fomos cúmplices. Viagem com um tico de transgressão, nosso segredo.
Uma senhora, sentada na primeira fila, puxava assunto com o motorista, claramente uma estratégia para não deixá-lo dormir. Lá pelas tantas, ele lhe deu uma cantada, e ela reagiu indignada. A desavença me devolveu a meu pai, um sujeito que, apesar de ter nascido num mundo rural, fugiu ao estereótipo e não se tornou rude — rudes eram muitas pessoas de seu convívio, alguns parentes, outros amigos. O velho jamais cantaria uma mulher naqueles termos, jamais alteraria o tom da voz, como de fato nunca o vi fazer. Algumas vezes vi-o desmoronar, cair abatido, mas, mesmo aí, com serenidade.
Em Belo Horizonte, a notícia de sua morte veio nos olhos marejados de minhas irmãs, no abraço com que me receberam na plataforma. Elas e meu cunhado não tiveram uma noite boa, pois souberam da morte do velho na madrugada, talvez na mesma hora em que eu, sentado no ônibus, supunha que ele já estivesse morto. Cansados ou não, partimos para uma viagem — sempre uma viagem — de trezentos e sessenta quilômetros.
Nesse dia, do qual recordo todos os minutos, uma lacuna: não sei como foi meu encontro com minha mãe. Lembro-me do que ocorreu depois do impacto de entrar no recinto do velório: eu olhava atento o rosto de meu pai e observava sem pressa seus traços — fino no trato interpessoal, fino no desenho do rosto: um bom homem bonito. No que recupero o fio da meada, encontro minha mãe ao lado do caixão, de onde não se levantou. Quando nos vimos a sós, já em casa, ela me disse: “Amei muito seu pai, mas não vou com ele”. E aqui ficou por mais 11 anos, uma prova de amor a ele, a nós, seus filhos, e a nossas famílias.
Fiz piada com o Ezinho Joele. Fui e voltei da rua para ver se a família do meu irmão e minha mulher haviam chegado do Rio. Aceitei o convite da Neide e do Guido, preocupados comigo, para ir à padaria fazer um lanche. Devo ter comido uma bobagem qualquer, mas era a companhia íntima de meus amigos o que me interessava, era a confiança de saber que, no meio deles, eu poderia chorar. Não chorei nem ali nem quando o corpo de papai desceu à sepultura. As lágrimas vieram noutro momento de intimidade, minha com minha mulher, uns dez dias depois, quando toda a família se reuniu para o Natal. Choro curto, excesso de um homem seco.
A vida de Mondrian continuava na televisão. Um sujeito obsessivo. Seu ateliê reproduzia, nos móveis, os quadrados coloridos, os retângulos coloridos e o vazio (branco) que cobriam suas telas. Era rigoroso, gostava de jazz; vivia só, saía para dançar de par com alguma mulher tomada emprestada de um de seus amigos. Idoso, Mondrian mudou-se para os Estados Unidos, país no qual, finalmente, obteve reconhecimento e dinheiro. Ali sua pintura mudou, mas seus traços continuaram fiéis a figuras geométricas básicas.

Mondrian

Se meu pai fosse artista, não seria Mondrian. Tampouco Picasso ou Dali ou Schiele. Praticaria um realismo sóbrio e acadêmico, pintando seu mundo rural, seus bois, animais cujas qualidades ele reconhecia de longe, num primeiro e breve olhar. Nisso era uma autoridade. Disso não soube tirar proveito financeiro. Para ele, não houve um Estados Unidos.