21.1.19

Escrever nestes dias


Pro Cássio Zanatta e pro Renato Braz





Escrever é voar num carrinho de rolimã ou de sebo, que eu não sei se vocês sabem o que é, mas, no momento, não cabe explicar. É deixar-se levar pela mão da criança atrevida, dona de uma infância tão velha e caduca que nem em livros encontra registro. É andar amparado por Zanatta, o cronista que, sem saber, fala (só) de mim. É falar por ele ou dele, com vênia, evidentemente. É não alterar a voz nem erguer o punho, mas, com um verbo, dos mais singelos, ser capaz de matar um homem. É, resistente, mostrar-se pronto para dizer o dito, desdizer o dito, dosar o delírio, desbravar a delicadeza.

(Assim e assado escrevo, nestes dias em que os brutos dormem sem apagar o riso do rosto e o gozo do corpo.)

Escrever é comer com a fome pura-memória-dos-homens-velhos e desabrochar com coragem uma flor, úmida (e última) esperança de um bulbo feminino. Não se curvar, não dar as costas, ao contrário, semear o vento nos olhos do mar, do bicho, do não e quiçá. É dar a cara a tapa, meio Cristo, meio Gandhi, meio aquele primo nas brigas de rua. É desconjugar a febre da palavra e deixar boquiaberto o silêncio.

((Assim e assado escrevo, nestes dias em que a devassidão balança sua bem-dotada injúria nas fuças de nosso brio murcho.))

Escrever é enxugar o suor dos falsos adjetivos ou enfrentar o orgulho também falso da dor. É acompanhar com os olhos os carros que não passam. É dar um cavalo de pau em frase dita antes da invenção da roda. É contar centavo, cavar culpa, cintilar. É dar incerteza aos mapas.

(((Assim e assado escrevo, nestes dias, justo neles, mas também nos outros.)))

5.1.19

Do sono não saio: uma crônica insana, mas com sexto sentido


Parece que estou acordando. “Volte a escrever, Xandão”, um fiapo de voz-pensamento ecoa, repetindo-se feito um despertador que não quer ou não sabe calar. “Já vou, só mais um segundo, um mandato, uma vida.” Espreguiço.

Não sou dos que se lembram dos sonhos, mas não me esqueço de um recente. Estou em São Paulo, tento usar um APP para me conectar a uma empresa aérea e não consigo. Caminho descalço, o que me faz comprar umas sandálias. No segundo posterior, na companhia de um irmão e de uma irmã, desço em Orlando. Sinto-me preocupado por não ter passaporte, mas meu irmão, que tem a autoridade de já ter vivido nos Estados Unidos, dá de ombros como quem diz: “Não esquente”. Estamos num parque, num parque de chão batido, e reparo nas sandálias recém-compradas. (Recém-compradas? É um sonho, o tempo dança em torno de si mesmo.) Elas continuam nos meus pés, mas, por mais que me esforce, não distingo sua cor. Já não estou no parque, mas na casa de meu sobrinho, e ali minha sobrinha-neta pula no meu colo e pergunta a minha idade. Ficamos brincando com os números 57 e 58. Eu digo 57, ela diz 58 e, em seguida, me chama de velhinho.

Devo ser mesmo, pois não consigo acordar, acordar de fato. A realidade me empurra para a cama, o travesseiro me segura. Mas, ó, não estou na cama. A preguiça é apenas simbólica. A preguiça é um ato macunaímico-político. “Volte a escrever, Xandão”, martela a voz-não-mais-pensamento-mas-comando.

Sento-me diante do computador e, desatinado, teclo. Um passarinho canta lá fora. Paro tudo para ouvi-lo. O canto, de fato, parece um coaxar, de onde concluo que os sapos criaram asas. Vi num filme americano — não vou procurar o nome — uma chuva de sapos. Então, se os batráquios não estão voando, o coaxar é uma tormenta anfíbia. “Não consigo escrever”, vocifero. Lá da cozinha alguém diz que estou falando sozinho. Quem estará na cozinha se estou sozinho? Presto atenção. Não é voz de ninguém, e sim o pio de um pássaro fajuto e feio. Os pássaros perderam as asas e fofocam sobre nós, os humanos, ou os humanos preguiçosos, ou os humanos aturdidos pela realidade.

Uma expedição da Nasa fotografa o corpo celeste que estaria na fronteira do sistema solar, a seis bilhões de quilômetros da terra. As fotos levarão muitos anos até chegar aos computadores da agência americana. Para os lunáticos — esses cientistas que, é certo, são as mãos de vários interesses, sem que deixem de ser, como os poetas, a voz do delírio, do sonho e da aventura —, a demora é um nada diante do destempo do universo. Enquanto a terra dá trezentas voltas em torno do sol, o planetinha ora em exploração dá apenas uma. Se nele estivesse, eu não teria nem 20% de um ano, queria ver minha sobrinha-neta me chamar de velho. Aliás, os velhinhos de lá, se velhinhos houver, acharão os milenares homens e mulheres bíblicos apenas umas crianças expostas ao infortúnio do calor e do frio. Rirão da ficção que criamos para nos ajudar a lidar com uma vida tão curta.



Atrás de minha sombra, me escondo e não escrevo nem falo coisa com coisa. Depois das férias, sou o mesmo cansado — agora com o talento emperrado ou encarcerado.

Preciso dormir. Só mais um segundo. Só mais um mandato. Só mais uma vida.