27.4.20

O pesadelo


Para Manu e Tiê





Quem não acha bom receber de um amigo um telefonema para dizer que fez parte do seu sonho? E se não foi sonho, mas pesadelo? Pois é, foi o que me ocorreu no domingo passado, aniversário de mês de meu confinamento e mais um dia de desatino daquele lá, taokey?


Não vou contar todo o pesadelo, não me pertence, é de amigo, não de um qualquer, mas um daqueles que, em momentos egoísticos, digo: veio ao mundo só para ser meu amigo. E isso tanto é verdade — me perdoe sua família, aqui relegada à coadjuvante — que, certa vez, quando ele havia voltado a viver com a mãe, fui visitá-lo, e dona Guida serviu café num jogo de xícaras que o próprio filho não sabia da existência. As mães, chovo no molhado, reconhecem os irmãos de seus filhos à distância, em particular os que não nasceram de seu ventre. Não posso revelar o pesadelo do camarada, espero ter deixado clara a razão.

Posso dizer sim que o que foi um pesadelo para ele para mim soou como uma história estranha, engraçada até. Mas ele, opa, ele sentiu tudo aquilo no corpo. Meu amigo tomara vinho durante o almoço e, sozinho em casa, cochilara. Acordou suado, um pouco ofegante. Ligou para a filha, precisava falar. Ela disse, ligue para o Xandão, conte-lhe tudo.

Alguns grupos de pesquisa têm recolhido sonhos ocorridos durante a treva pela qual passamos. O do meu amigo valeria fazer parte do estudo, pois envolve o ambiente de trabalho (onde nos conhecemos há mais de trinta anos), troca de socos, transformação de um prédio no pé do morro da Mangueira em uma caravela e uma figura misteriosa, o vilão, de nome Malaquias. Busco por alguma referência a esse nome. Na minha infância, quando alguém tentava enganar o outro era chamado de Malaquias ou malaca. Não sei se teria alguma ligação com um dos profetas menores, Malaquias, é claro, que em quatro breves capítulos do Antigo Testamento mostrou toda a ira de Deus com os homens e anunciou a vinda do Messias. A profecia precedeu em quatro séculos o nascimento de Cristo.

O Malaquias do pesadelo está mais para o da minha infância, pois empenhava-se em desfazer nosso trabalho e, enigmático em nível máximo, transformava um símbolo redondo e verde — semelhante ao vírus do momento —, carimbado nos papéis como atestado de que a tarefa havia sido bem-feita, em prateado. Dentro da realidade onírica, a mudança de cor indicava um passo na direção de uma situação indesejada, limite. Não anunciava a salvação; não há salvação em pesadelos.

Meu amigo não cogitou mandar o pesadelo para um dos grupos de estudo, ele só queria se livrar daquela angústia, em grande parte causada ao me ver pendurado na mais alta gávea da caravela à deriva. De lá eu bradava, talvez em delírio, que comia raios — e, de fato, eu os comia. Minha boca cintilava. O ditado agora é comer raios e arrotar trovões. Por que achei graça na história num primeiro momento? Não sei se passada uma semana ainda posso apaziguar meu amigo, mas gostaria que ele pensasse se alguém sonha em dias noturnos como são os atuais.

Que minha mãe não venha a saber disso de eu comer raios, seria sua segunda morte. Digo isso porque dona Haydée temia a chuva de forma incontrolável e, quando os raios iluminavam o céu e os trovões gritavam, ela cobria a cabeça, se armava de um terço e desfalecia por um tempo. 

Penso nela não só pela associação com os raios, mas porque terei de fazer-lhe um pedido: que se encontre com a dona Guida, tomem juntas um chá celestial e em seguida procurem o profeta Malaquias. Perguntem a ele por que demorou quatro séculos entre sua profecia e a vinda de Cristo. Ouçam atentas a autocrítica, aprendam com ela e, então, tratem de descolar com urgência não um Messias — temos um que não honra o nome, melhor deixar essa empreitada de lado —, mas um raio de sabedoria. Não irei comê-lo; do alto da gávea de onde não se tem à vista terra nova ou velha, o pegarei e lançarei sua luz sobre os homens. 

13.4.20

Pandemia, modos de rir e de se desesperar

Chovem memes, chovem histórias aterrorizantes. Chove sufoco, chovem gestos de solidariedade. Chove paranoia, chovem motivos para a paranoia. Narrativas contrastantes chovem igualmente e chovem hipocrisia e má-fé ou “dá cá meu pinhão primeiro”. Bem, nós que aqui estamos vamos rindo e chorando, e nesta crônica rio um cadinho para chorar outro tanto.



Depois da quarentena
Sou moço bom, recatado e do lar, com alguns episódios de fuga para o boteco. Pois bem, então, não se escandalizem com o que vou dizer, é só que esse confinamento deixa a gente carente como o quê.
Passado tudo isso, um abracinho nos amigos vai ser pouco, melhor pensarmos desde já numa alternativa forte e acolhedora. Acho que vai ter de ser uma suruba mesmo, respeitosa e sem pecado, mas suruba.

Discussão, discussão, mas virar as costas para a unanimidade provisória...
Discutir se o confinamento deve ser radical ou não, tudo bem. Dizer que, se confinados, a economia esfarela, tudo bem. Agora, quando se forma um entendimento, que pode ser conservador, excessivo — ninguém sabe por enquanto —, ouvir de uns e outros, em particular de médicos, “esqueça isso, a crise é maior que a doença”, dá uma leseira, um “ai, ai, mundo”.

Abrir o negócio
Resolvi, amanhã vou abrir meu negócio.
Mas, Xandão!
É, chega. Já deu, é mimimi e mumuuuuu demais. Tô no preju.
Então tá, se é assim, que assim seja. Mas, a propósito, Xandão, que negócio é esse que você vai abrir?
Ah, meu caderninho de poemas. Ele tá bem ali, na escrivaninha, fechado nem sei desde quando.

O nome dos mortos
Há um momento em que são números. Muitos contaminados na China; taxa de letalidade de tantos por cento. A Itália, apesar das óperas cantadas em suas varandas, apesar do gesto espetacular do Papa, na praça vazia, tem números ainda mais alarmantes. A Espanha perde para o touro da doença. Ninguém vela seus mortos, meras estatísticas. Um dia, no entanto, a morte passa a se chamar Daniel, dona Maria, Godofredinho do Posto, filho da Zuleide. Aí é tormento, abismo e queda.

Bate-papo à distância
Que tal uma conversa (a)fiada?
À distância sanitária aconselhável
por vídeo, áudio, chamada telefônica ou sinais de fumaça
a gente desenrola uma prosa, fala mal de Maria
bem de Jandira
de nós a gente só fala que vai levando.

Você pensa em como seria sem internet e rede social
eu especulo como foi na gripe espanhola
você exclama: nó!
e eu rio. Rio de nervoso, explico. E você ri, ri de mim.
Acabamos numa gargalhada besta. Para, você pede.
Não consigo, gaguejo. Mas a gente para.

Você comenta sobre o moço que se despediu da família pelo  celular
reclamo que durmo mal. Você fala das pílulas, do coquetel de vitaminas
confesso que senti um desejo doido um dia desses,
você chora, sem vergonha nenhuma, chora.
Você precisa de um abraço. É, você concorda lacônico.
Assobiamos músicas diferentes, as duas sobre amigos.

Sugiro que a gente conte uma piada. Nem pensar, você reage.
É piada demais, o dia inteiro, você se encheu delas.
Mas eu queria contar uma. Uma só.
Conte, você ordena.
Vai passar.
É uma piada? Você acha uma pena que eu continue o cínico de sempre.

Depois do silêncio
você pergunta como estou
vou levando, eu digo. E você?
Vou levando.
Não foi sempre assim?
Quem pergunta? Eu ou você, não sei.
Mas foi, foi sempre assim. Era Maria quem dizia isso. Ou era Jandira.

Barrichello
O presindecente chegou tarde à retidão, e a plateia que ainda o incensava, naquele momento aplaudia, com o perdão da rima, o bufão.