30.1.12

Caymmi de Passos e Passos de quatro



1.


Conheci a música de Dorival Caymmi por intermédio do bom Baiano, pai de minha amiga-irmã, Neide.

Aconteceu assim: fui com amigos fazer serenata para a Neide, o Baiano abriu a porta e nos serviu uísque com água de coco. Devia estar doido para que algo distinto de dormir acontecesse naquela noite, era boêmio. Em pouco tempo, e animados com a birita, a serenata virou festa. Quando o violão foi parar na mão do “velho”, bem, Caymmi sentou-se ao nosso lado e cantou: “João Valentão é brigão/Pra dar bofetão/Não presta atenção e nem pensa na vida”. Como era doce o compositor baiano; e como se parecia com ele, fisicamente, mas não só, o Baiano de Passos.

Em dezembro, Baiano foi embora. Foi no embalo do mar distante. Foi de jangada. Foi encontrar a companheira, dona Hilda, que o havia deixado havia muito tempo, morrendo jovem, jovem demais. Por sorte, em novembro, pude vê-lo e, de certo modo, despedir-me dele. Já descia a ladeira, jeito estranho de chegar ao céu, mas continuava bonito, com aqueles olhos cheios de vida.

Os olhos do Baiano e os olhos da Neide foram, os dele, e são, os dela, coisa muito séria. Bolotas acesas, diferentes dos meus, tímidos e desconfiados. Transparentes, deixam, ou deixaram, à mostra a dose exata do interior desses dois que, para além de pai e filha, foram e continuam sendo — pois isso a morte não arranca de ninguém —carne e unha.

Meu irmão, quando seus filhos eram pequenos, gostava de acalmá-los com “Acalanto” (“É tão tarde/A manhã já vem/Todos dormem/A noite também/Só eu velo por você, meu bem/Dorme, anjo/O boi pega neném”), feita por Dorival Caymmi para ninar sua filha, a Nana. Conjecturo que o Baiano também a cantou para sua Neide. É certo que sim. Como eu nasci um pouco antes dela, exatamente uma semana antes, é possível que, ainda na Santa Casa, eu o tenha ouvido cantar a música de Caymmi. Assim, teria sido a primeira música que ouvi na vida. Conjecturo. Conjecturo e, feliz, fecho uma história: Baiano me deu Caymmi nos meus sete dias, repetiu a dose nos meus quatorze, quinze anos e depois outras tantas vezes vida afora. Agradeço-lhe por isso. Não só por isso, já que ele me deu a Neide também.

2.


De longe, via jornal e facebook, acompanho a onda de violência que tomou Passos de assalto. Segundo as estatísticas disponíveis neste site, Passos figurava em 2010 (dados provisórios) com 7,5 mortes por 100 mil habitantes, ocupando, portanto, a 2887ª posição no ranking dos municípios brasileiros. Se atualizamos os dados com as mortes ocorridas em 2011 (por volta de 45), Passos saltaria para o honroso posto de 385ª cidade mais violenta do Brasil. Em termos de unidades da Federação, segundo a mesma fonte, os destaques negativos são: Alagoas (66,8 mortes/100 mil habitantes), Espírito Santo (50,1), Pará (45,9) e Pernambuco (38,9). Passos, se fosse uma unidade da Federação, seria, em 2011, a quarta mais violenta do Brasil, tirando de cena Pernambuco, aliás, estado que tem reduzido seus níveis de violência.

As estatísticas por si só não dizem nada, são apenas uma porta de entrada para entender determinado fenômeno. As anteriores dizem o seguinte: tenham urgência. Se São Paulo e Rio de Janeiro, megacidades, estão conseguindo reverter seus índices de violência, o mesmo pode ser feito em Passos, talvez de forma mais fácil, ainda que o aumento da violência de Passos deva ter alguma relação com a diminuição nas capitais. Fenômenos sociais são complexos por natureza.

Como princípio norteador de uma ação em favor da segurança, creio que não se deve culpar ninguém, nem tirar a responsabilidade de ninguém. O ideal é promover o casamento entre ação policial e assistência social (termo genérico para dizer presença do Município, do Estado e da Federação). A sociedade civil — em suas várias representações, que vão, digamos assim, do fazendeiro magnata ao desempregado — deve participar de todo o processo.

No facebook, há um começo de movimentação contra esse quadro lastimável, todavia é preciso que ela saia do virtual para as praças da cidade (são muitas, houve mesmo um prefeito que ficou conhecido como Zé Pracinha, pois o que gostava mesmo é de construí-las). Depois das praças, o movimento tem de entrar no gabinete do prefeito, no quartel do coronel, na delegacia e principalmente na casa de cada um de nós, passenses, pois será o momento de fazer diagnósticos, traçar estratégias e, claro, agir. Será preciso passar por cima das divergências, e é bom não deixar a luta ser privatizada pelos partidos políticos, que devem, sim, participar, mas de coração aberto, sem segundas intenções. 

Vamos lá, gente, janeiro já ficou para trás, não podemos permanecer de quatro.


10.1.12

A faxina


O ano está acabando, momento ideal para arrumar a sala, retirar os livros e discos nela esquecidos e extirpar o pó das coisas. Nada de requintes, uma faxina de bom tamanho deve ficar no limite do que minhas mãos e uma flanela trabalhando juntas forem capazes de fazer.
Começo por levantar, largado na mesinha de canto, o “Modern Time” (2006, Sony), de Bob Dylan. Confesso que passei a curtir esse mito a partir desse disco. Dele deslizei para os outros, os antigos e clássicos. Aprende-se com “Modern time” e, de resto, com toda a obra de Mr. Zimmerman uma coisa importante: o terreno da simplicidade é fértil. Dylan e seu grupo, econômicos no número de instrumentos, criam uma imensidade de climas, de sons, de barulhinhos bons que gente leiga como eu nem acredita que se pode fazer tanto com tão pouco.
Ao lado de Dylan, o livro de Marco Túlio Costa, “Mágica para cegos — contos e contracontos” (2011, Editora Saraiva). Marco Túlio ficou conhecido por seus textos para jovens, um dos quais, “Fábulas do amor distante” (2003, Record), ganhou o Jabuti. Todavia, ele escreve para todas as idades, prova disso é esse “Mágica”, um achado. Escrevendo um conto de uma determinada perspectiva para depois escrevê-lo de outra, o autor mineiro, além de contar boas histórias, traz à luz o próprio ofício de escritor. Como Dylan, sem ultrapassar as fronteiras da simplicidade.
Tiro o pó da pedra de mármore. E, ao enfrentar a sujeira que desce até os pés da mesinha, deparo com uma peça que me é cara: um papel amarfanhado, no qual registrei o seguinte verso: “Dize-me tu, montanha dura,/onde nenhum rebanho pasce,/de que lado na terra escura/brilha o nácar de sua face.” A letra está péssima, mas o poema de Cecília Meireles, “Serenata” (Retrato Natural, Obra poética, Nova Aguiar), não para: “Dize-me tu, palmeira fina,/onde nenhum pássaro canta,/em que caverna submarina/seu silêncio em corais descansa.” E assim termina: “Dize-me tu, ó ceu deserto,/dize-me tu se é muito tarde,/se a vida é longe e a dor é perto/ e tudo é feito de acabar-se!” Que homem eu era quando transcrevi o poema? E que outro então quando amassei o papel? E ainda o que o deixou ali, largado a moscas analfabetas?
Jogado ao chão, passo os olhos pela extensão da sala. Vi um resto do garoto que fui... Não, minto; desejei vê-lo. É tarde, dialogo com Cecília. Em seguida, ouço, sem que Nelson Ned cante: “E tudo passa, tudo passará”. Já passou.

Ao lado do telefone, a receita de meu médico, seu conselho para que eu abandone os doces, não bastasse ter deixado o álcool, e a sugestão de fazer um exame que custa o olho da cara. Tudo em nome de um fígado supimpa, apesar dos pesares. Uso a receita como leque, enxugo o suor com o dorso da mão. Gestos, pequenos gestos, os quais, cogito, dão uma espécie de chupeta na memória — essa maldita que não me ajuda, que só me mostra nacos retalhados —, fazendo com que ela, empurrada ladeira abaixo para pegar no tranco, me imponha um sobre-esforço para lembrar a “cena” de “Luz em agosto” (William Faulkner, Cosacnaify) na qual Lena se coloca na estrada à procura de Lucas Burch, o homem que a deixara prenhe. Cena inesquecível, lindamente escrita e traduzida (Celso Mauro Paciornik), mas da qual não recordo — ou da qual não recordo além do ponto aqui e agora registrado —, vítima que sou desse jogo de gato e rato em que estamos eu e meus miolos moles.
Ainda fora do lugar, o DVD do Arnaldo Baptista (“Lóki”, Paulo Henrique Fontenelle, MZA), o que fez o durão aqui ir às lágrimas. Não só pelo drama do roqueiro, mas pelo drama de todos nós, seus contemporâneos, que também temos passado por poucas e boas. Dia desses, um chegado levantou a seguinte estatística: ele e seus amigos de adolescência formavam um grupo de cinquenta e sete pessoas; hoje, quando beiram os cinquenta anos, estão reduzidos a seis. Foram caindo pela estrada afora, por onde deveriam ter ido bem contentes levar doces para a vovozinha. Foram sofrendo overdoses, contaminando-se com vírus letais, envolvendo-se em acidentes. Suicídio ao pé da letra, aparentemente nenhum. Arnaldo está vivo.
Parece melhor não cair nessa de virar o ano com tudo organizado e limpo, pois a limpeza externa tem contrapartida na (minha) sujeira interna e íntima. Abandono a arrumação. Distraído, levanto o caderno de telefone e topo com uma barata. Ela se espreguiça e, de pronto, começa a crescer... E a crescer mais ainda... E ainda mais... Até que dela brota Kafka, que, um tanto quanto assustado, me pergunta: "Onde estou?"
No meio do meu caos de cada dia, Kafka. Bem no meio.