30.11.06

O homem mais velho do mundo

Adão, apesar de pecador, ou por isso mesmo, viveu 930 anos. Outros bíblicos também ultrapassaram a barreira da velhice, alcançando outro estágio da vida, que não chegaremos a conhecer. Assuntos de religião são muito controversos, prefiro evitá-los. De qualquer modo, Adão foi menos que um homem, sendo, de fato, um modelo de homem ou um homem-modelo, não sei bem. Sua longevidade é uma metáfora para as dores e prazeres do ser humano, as de ontem, de hoje e de amanhã, explorada no veio de um rio ideológico.


Portanto, o homem mais velho do mundo não sai da bíblia, tem de ser alguém de carne e osso. Minha avó, por exemplo, é candidata. Viveu 96 anos, dos quais os últimos 20 na escuridão da cegueira. Ela não teve os recursos da modernidade, todas as drogas que nos perpetuam mais e mais, sequer saneamento, luz elétrica e água tratada (teve, sim, nos seus últimos 15 anos de vida). Fez 18 partos, traduzidos em 22 filhos, 8 deles natimortos ou mortos na primeira infância. Em suma, um milagre.


Todos os filhos de minha avó viveram menos do que ela. Apenas uma das filhas pode ultrapassá-la, ainda que esteja vivendo completamente alheada da vida, a despeito de enxergar bem. Inventa namorados. Vê pessoas onde não há pessoas. Paquera sobrinhos. Toma sol levada por sua ajudante. Come como uma menina sem intenção de ser top-model. E é magra, magérrima.







Nem minha avó, nem sua filha são os homens mais velhos do mundo. Ao colocar o título do texto pensei em colocar “O ser humano mais velho do mundo”, seria mais correto. Depois, me censurei: politicamente correto demais! Na língua portuguesa, homem é o macho e é a raça. Então, vamos de homem, mesmo que se acabe por escrever a frase anterior: minha avó não foi o homem mais velho do mundo. Logo Dona Tomásia, ceguinha e feminina como ela só.



Já estou eu perdendo o rumo. Toma tenência, escritor!


Esperava a hora de pegar o remédio para meu filho. Daí a pouco cruza por mim um sujeito vestindo uma dessas máscaras típicas de quem está fazendo tratamento e precisa de proteção contra a vida invisível escondida no ar. Fura a fila com todo o direito. Quando volta, uma senhora, dois corpos à minha frente, chama-o. Se conhecem. Começam a conversar. Ele conta sua história bem triste (transplantado de rim, padecendo de efeitos colaterais sobre o coração e, aparentemente sem ligação com a doença original, sofrendo de um começo de surdez). Um homem, entre mim e a senhora que conversa com o transplantado, faz um comentário do tipo: nossa, tão jovem! E ouve como resposta:


— Não, senhor, sou o homem mais velho do mundo. Estou condenado à morte desde os meus 10 anos de idade.


Ele não tem mais de 35 anos. É possível que tenha menos de 30.

14.11.06

Maquinação do Senhor Noll



Instigante sempre foi. Falo da obra de João Gilberto Noll, que agora ganha mais um livro, “A máquina de ser” (Nova Fronteira), reunindo uma série de pequenos contos. Se, em número, o grosso de seu trabalho são os romances, os contos costumam chamar bastante a atenção, não sendo raro encontrar aqueles que os consideram como a melhor parte da criação do escritor gaúcho. Também dizem isso em relação a Clarice Lispector. Não quero entrar no mérito da questão, mas acho que esse é o tipo de debate estéril. Noll e Lispector escrevem bem às pampas e o pior deles tira o fôlego de qualquer um (fazer perder ou não fazer perder o fôlego é a melhor maneira de medir a qualidade da literatura).


Debates à parte, concentro-me nessa tal máquina de ser do Senhor Noll. O título abre dois caminhos claros para associações rápidas: a contemporaneidade (máquina) e a filosofia ou a perenidade (ser). E é bem no interstício entre essas duas forças que Noll, habitualmente e não só neste livro, trafega. Poucos são os autores capazes de cutucar com vara curta a ferocidade de nosso dia-a-dia, no qual, não por acaso, o corpo furioso se apresenta como espaço sintético de todo o resto.


Nos contos da “Máquina”, o corpo é a estrela, também o breu, o que pouco importa, desde que céu e inferno sejam entendidos como foco urgente e principal de Noll. E são. Não só neste livro, em todo o Noll, em contos e romances, de cabo a rabo, dos pés à cabeça, o corpo serve de palco a suas fabulações.


Entre este livro e os romances, há uma diferença fundamental: Noll trancafiou seus personagens no ambiente de suas casas, como o fizera em sua estréia em contos, “O Cego e a Dançarina”. Não vamos encontrar mais o sujeito que permanentemente está mudando de ares, indo de Copacabana para Santo Cristo e, num átimo, rumando para o Leblon, quem sabe descansando no Rocha ou se perdendo num país inexistente; voando de Londres para Porto Alegre, vagueando, antes, pela Lagoa da Conceição. Os personagens do Senhor Noll sempre precisaram de campos abertos e de longas caminhadas, riscando uma metáfora de liberdade na prisão pessoal, intrínseca, não há como não bisar, corpórea.


Eis que, na “Máquina”, o ir-e-vir se reduz a um quase nada, tudo está ali intramuros. Mesmo quando um helicóptero aparece para levar o pouco que resta de um tal personagem para o mais distante possível, para a geografia sem fronteiras do céu, não logrará sucesso. Sim, sim, se o céu é o paraíso religioso, a afirmação anterior não se sustenta, mas se não é, e para Noll não é, o resultado final será um aglomerado de carne e ossos esboroado no chão, instante em que perderá pelos pólos a liquidez das idéias e ganhará, tarde demais, a dimensão do imensurável.


O ilimitado, a partir do novo livro, perde o significado até então concebido a ele, o de metáfora da recusa do que está posto pelas regras da convivência. A mesma recusa continua quando o espaço se reduz ao mínimo possível. Em Noll, nunca houve sinal de agorafobia, nem há, em sua última tacada, sinal de claustrofobia. Em campo aberto, em quarto fechado, o corpo corre sozinho os riscos inerentes à condição humana.

20.10.06

Enfim, um clube

O papo é o seguinte: não sou de pertencer a clubes. Entenda-se clube como qualquer coisa cheirando a determinada coletividade voltada a um fim específico: entretenimento, política, esporte, conselhos profissionais e outros mil exemplos que me escapam no momento.

Sim, sim, sou botafoguense, mas sem paixão exacerbada. Namorei o PT, mas não me filiei, acho melhor dizer: fiquei com o PT. (Aliás, o PT beija tão bem que nada impede que, na próxima festa, nos agarremos no meio da pista de dança, mas, claro, só se ele estiver trajando o velho, mas reciclado, vermelhinho básico e desacompanhado de seus amigos esquisitões.) Não comungo, não busco espíritos, não freqüento terreiros.

Sou quase como o Marx, o irmão americano, não a chama comunista, aquele que não entrava de sócio de clube que o aceitasse como tal. Digo quase porque, na matemática, até o vazio é um conjunto, ou um clube na palavra exata desse lero-lero. Ou seja, pertenço ao clube do eu sozinho. Leitor que nem me conhece, passo longe de ser egoísta, sou, sim, um cético de carteirinha, por mais contraditória possa soar a afirmação.



Apesar de tudo, fui jogado, pelos fundos, a um clube. Bordejei pelos cantos tentando manter-me o mais discreto possível. Daí reparei meus parceiros. Rostos vilipendiados, gestos arrastados, olhares inquietos, fugidios. Tanto como eu, até os mais embrenhados no salão de baile, dançantes e passadiços, escancaravam o mesmo ar de vergonha, ainda que neles já se percebesse uma certa anuência com a situação.


Qual situação? Afinal de contas que clube era esse que nos tragara, que nos buscara, que nos engolira? Éramos os endividados, a classe média que pegou 5 dinheiros para complementar a grana de um mês, outro 1 para trocar a TV e mais outro para dar de entrada no fogão que durou menos do que as prestações. E depois recorreu ao crédito em folha e depois à renegociação de todos os empréstimos em 60 meses, chance única, pegar ou largar.

A classe média voltando do paraíso.

A classe média aguardando o elevador defeituoso, descendo, descendo eternamente.

Baile da última gota de dignidade da classe média muito pouco digna no mais das vezes. Baile de ventiladores desligados porque não foi possível pagar a conta. Baile com os odores do último perfume de Paris.

Arrastado até ali, ali não ficaria. Mesmo com empréstimos e empréstimos-sobre-empréstimos e empréstimos-sobre-empréstimos-sobre-empréstimos, empunhei meu cartão de crédito e caí fora.

Entrei na primeira loja encontrada pelo caminho. Mostrei para o caixa o dinheiro de plástico e levei para casa o novo Caetano (Cê).



Andam dizendo que o disco do baiano é nhenhenhém. Dor de cotovelo. Coisa de velho que perdeu a menina. Se é, dane-se. Caetano acaba de dar outra chacoalhada em si mesmo.


O disco parece com a fase de “O quereres”, mas enxuto. Rock básico. Sofisticação a partir de miudezas. Som de garagem. Harmonia incompleta até o som, arremetido com aparente desgoverno, entrar na gente e ficar. Caetano fala de trepadas mal dadas, da mulher que foi “mor rata” com ele, da saudade de Wally Salomão.


Mil vezes o chororô do Caetano. Mil vezes o baiano abraçado a Lupcínio. Mil vezes Veloso Dylan. Mil vezes o pai do Moreno, irmão do Moreno, filho do Moreno. Mil vezes a rebeldia magrela do falastrão desastrado. Mil vezes. Dez mil vezes.


Nos próximos cinco minutos, cinco dias, cinco mil horas, sei lá, sou do Clube do Caetano. Nele fico protegido dos ataques da nostalgia burguesa da classe média. Nele fico, ainda que endividado esteja, endividado estarei, endividado serei.

Antes só do que mal acompanhado.

10.10.06

Revelação

Acenei…Não, antes olhei pro céu e pressenti chuva. Voltei em casa para pegar o guarda-chuva. Não sei a razão, mas um sujeito com guarda-chuva, apesar da pouca durabilidade dos atuais, made in China, parece mais digno.

Voltei com certa dignidade para o ponto de ônibus e, aí sim, acenei para o 409. Não estava cheio, pude escolher o lugar. Sentei ali no meio, perto da janela, na fila oposta a do motorista. Nessa posição posso deitar a vista na enseada: Botafogo, Flamengo… os Pracinhas, todo o Aterro. Bela cidade, o Rio de Janeiro.


E lá ia o ônibus com o jovem senhor com destino tão certo, rotineiro. Sentadas no banco de trás, duas senhoras conversavam sobre qualquer coisa, nada que aguçasse minha curiosidade. Uma delas desceu no ponto bem em frente ao Shopping da Praia de Botafogo.

E, nesse momento, aconteceu.A senhora que ficou desandou a falar sozinha. Reclamava. Era o ônibus que se arrastava; um ônibus enguiçado logo adiante que atrasava a vida de todo o mundo. Sabem aquele tipo mal-humorado, ranzinza? Era ela.

Não me caiu bem essa reclamação interminável. Era uma segunda-feira, o day after do debate entre os candidatos à presidência. Eu estava triste, mal-humorado também, só não estava falando sozinho, achando que o ouvido dos outros é esgoto.
A mulher, no entanto, continuava. E continuava. E continuava.

Até que falou:

— 9 horas da manhã, e essa lerdeza. Na Europa, o pessoal já almoçou, se duvidar até já lanchou, e nós aqui… Seu Lula, seu Lula, olha o que senhor aprontou!

Quando contei a amigos, pensei que a mulher poderia ficar mais espantada ainda se pensasse não nos europeus, mas nos japoneses. Àquela hora, já se preparavam para dormir.



Esse deslize da mulher, todavia, pode ser debitado ao preço pago por pioneiros. Ela acabava de criar uma teoria. Não é a diferença racial (responsável por tantas guerras). Não é a diferença religiosa (responsável por outras tantas guerras). Não é cultural. Não é econômico. O problema do mundo, leitores e leitoras, é o fuso horário.


Vamos mudar nossa agenda política.


PS. O Guarda-chuva lá em cima é obra de Goeldi.

8.10.06

50 anos de “Encontro Marcado”



O “Prosa e Verso” (O Globo) de hoje, 7 de outubro de 2006, é todo dedicado aos 50 anos do livro do Sabino.

É possível que tenha lido o romance na comemoração de seus 30 anos. Minhas lembranças, portanto, são apenas borrões. Lembro dos personagens transitando por Belo Horizonte, varando madrugadas na Praça da Liberdade, perto de onde, aliás, recentemente colocaram uma escultura em que estão Sabino, Pelegrino, Lara Resende e Mendes Campos, os quatro terríveis.

Essa turma nasceu na década de 20, na mesma de minha mãe, que os conheceu lá em BH, na década posterior.

E daí?

Daí que tomei de achar os nascidos em 20 gente muito interessante. Minha mãe é. E esses escritores mineiros também o são (eram), assim, como, da mesma safra, outro contemporâneo deles, o Ivo Pitangui.

E foi o Pitangui que me fez vir aqui escrever.

No caderno do Globo, ao entrevistarem o médico, perguntam se ele, como os personagens do livro numa determinada passagem, puxava uma angustiazinha. A resposta foi mais ou menos assim: é, como não tinha um fuminho, a gente puxava uma angustiazinha.

A sabedoria não é monopólio da velhice, pois se assim fosse, Sabino não teria escrito o “Encontro Marcado”, salvo engano, com um pouco mais de 30 anos. Seja como for, a idade deve suavizar nossa visão da vida. “Não havia fuminhos, fumávamos angústia”.

Fica aí um pingo de poesia para os dias tão medíocres do Brasil de hoje.

29.9.06

Opinião de Estreante

Acabo de estrear em outro blog, o Opinativas. Agora estou aqui, muito raramente, e lá. Quem sabe não escrevo com mais freqüência...
Assim espero.
Reproduzo a seguir o texto de lá. O opinativas está no endereço: http://opinativas.wordpress.com


O senhor responsável por este blog achou por bem me convidar para dar opiniões a respeito do que eu bem entender. Sujeito corajoso, ele.

Sou da opinião… peraí, estou tentando lembrar. Está muito claro… peraí, estou tentando lembrar.
Sabe o que é? Sou mais de palpite do que de opinião. É um erro, bem sei. Não sou de acreditar que “pau que nasce torto, torto morre”. Pois bem, se um assunto me interessa, sou capaz de estudá-lo, ver um lado, ver o outro, enfim, tomar uma posição. No entanto, na calada da noite, o que desprezei reclama, volta, mostra lá o seu valor. Que nem nos desenhos, onde o diabinho puxa de cá e o anjinho de lá. (No meu pensamento, os dois ficam trocando de roupa, só para confundir e complicar ainda mais.)

Alguém dirá: um sujeito tão infantilizado assim não pode mesmo ter opiniões. Concordo e não discordo. Sendo assim, tomo minha primeira atitude diante do convite do moderador: inauguro no Opinativas a seção Palpitaria. Espero ser inconseqüente, muito pouco economista, bastante moleque. Que não digam que não avisei.

Ao primeiro palpite.

O Lula vai faturar. Nós que acreditamos nele por tanto tempo, tivemos a chance de descobrir um de seus defeitos: o agora e amanhã presidente não sabe escolher os amigos. Sai com uns traíras, com uns “aloprados”, dá até dó. (A exceção, obviamente, é a daquele sujeito que paga as contas sem o presidente pedir. Isso sim é amigo; os meus, se pestanejar, me deixam a conta do bar e ó, pé na tábua.)
Mas acompanhem meu raciocínio: ele perdeu os (piores) amigos, vai ter de escolher outros para governar. A questão então é se vai dar sorte numa segunda vez ou errar de novo, o que é humano, ainda que vá nos custar muito caro. Custar. Muito caro.

Só vejo uma solução: blindar (essa palavra da moda, não tinha tido oportunidade de usá-la ainda) o Lula. Como? Quem sabe uma intriga, modesta, sem maiores conseqüências, com a esposa. Tipo assim: “não sei, dona Primeira Dama, essas idas ao Pará, esses pernoites em Minas, mesmo a senhora o acompanhando, há aqueles seus momentos de cabeleireiro, de comprinhas, necessidades tão prementes, e pode ser, nunca se sabe, não é?, a carne é fraca, patati, patatá…”

Se ferimos a fêmea, o segundo mandato pode ser todo feito lá de dentro do palácio, por e-mail, um governo recluso e virtual, sob as vistas da esposa.

Quem sabe a solidão e o encontro repetido com os diversos espelhos do palácio (serão muitos, imagino), se não derem em filosofia, dêem ao homem a oportunidade de encontrar-se consigo mesmo e com seus valores?

Seria uma bela amizade.

21.5.06

Vaca de Nariz Sutil





Você saca o quadro acima? Não? Descobri-o há pouco, passeando pela WEB. O que buscava? Alguma referência sobre “Vaca de Nariz Sutil”, livro de Campos de Carvalho. O quadro tem o mesmo nome e é do pintor Jean Dubuffet, que, descubro também na WEB, nasceu no início do século XX, tendo sido sua obra atrelada a “arte bruta”, da qual seria o maior representante.

De que forma o quadro está presente na novela de Campos de Carvalho é difícil dizer, e nessa minha imensa pesquisa de dois minutos não encontrei nenhuma referência sobre isso. No entanto, não há nada que uma boa conjectura, neste domingo de céu aberto outonal, não resolva.

Uma vaca de nariz sutil, onde já se viu isso? Se há uma coisa que ninguém presta muita atenção é em nariz de vaca. Dela, olhamos as tetas e os chifres e ficamos muito impressionados em saber que tem um estômago com quatro cavidades, uma que recebe a comida (sem mastigação), que, regurgitada, volta à boca para então seguir o caminho comum da digestão. Esse processo digestivo tem muito mais de sutileza do que o nariz do quadro em questão. Compare-o à foto abaixo. Há algum indício de diferença entre o focinho (melhor do que nariz, aliás) estilizado de Dubuffet e o natural? Não acho.




Eis o mistério. Vamos entrar na história do livro. Um ex-combatente de guerra, que recebeu todas as honras que um país dá a essa classe de gente, apesar de ele mesmo se ver como um assassino, será transformado em um perigoso criminoso (para os outros) quando cometer uma violência sexual contra a filha do administrador do cemitério. O nome dela, Valquíria.


(Um aparte: num dos milhões de lendas existentes mundo afora, essa nórdica, salvo engano (pesquisas de dois minutos são esquecidas em mais ou menos dois minutos e dezesseis segundos), conta-se que as Valquírias seriam seres que escolheriam entre os combatentes aqueles que deveriam morrer para formar um exército no outro mundo, o melhor exército na realidade, com vistas a proteger Odin numa futura guerra.)

Pois bem, a Valquíria de Campos de Carvalho vai em busca de um combatente, de um herói mesmo, embora este não esteja, no frigir dos ovos, morto. Aqui se coloca a questão: se é ela quem corre atrás, por que é ele quem paga o pato? “Sempre é a mulher quem tomba diante do homem, portanto, sobre o masculino recairá invariavelmente o ônus da violência”. Tudo bem, temos aí uma resposta. No entanto, inapropriada. A Valquíria de nariz sutil busca sem buscar; seduz sem se colocar sedutora. Em tudo é igual a qualquer mulher, mas não é igual. Não digo o porquê, leia o livro quem quiser.

A sutileza, no livro de Carvalho, não está na história até certo ponto previsível — ainda que a escrita em primeira pessoa favoreça o desconforto por nos colocar tão próximos do narrador, esse que virou assassino e descreve o crime. Não está na dança da sedução. Não está no ambiente do cemitério, tão e sempre habitado pela morte.

A sutileza do livro está em digeri-lo à maneira dos ruminantes. Aos 18 anos, como fiz, engoli-lo sem mastigação. Regurgitá-lo para novamente engoli-lo. Dessa vez aos quarenta e quatro, depois de tombar em inúmeras guerras sem que nenhuma Valquíria descesse do céu para levar consigo este bom soldado.

7.5.06

29.4.06

Novembro, em Araçatuba

Fui duas vezes a Araçatuba.

Na primeira, para um Natal familiar um pouco raro porque coincidia mais ou menos com os trinta dias da morte de meu tio Elin. Pisávamos em ovos, mas somos, a família eu digo, meio festeiros e nem luto nos impede de saracotear, ainda que dois passos pra cá, dois pra lá se misturassem, naquela ocasião, com lágrimas, as mais sentidas.

Na segunda, vejam quanta honra, convidado pela Academia Araçatubense de Letras, participei da sessão solene de final de ano, quando distribuem prêmios aos vencedores dos concursos literários que promovem e dão posse a novos membros. Além disso, lancei meu “Estão todos aqui”. Falo um pouquinho de cada coisa nos parágrafos a seguir.

Começo pelo lançamento. Chovia em Araçatuba (e por sorte não fazia tanto calor) e a expectativa era a de que o evento estivesse bem esvaziado. Surpresa geral: a família, em peso, não falhou, foram todos, chegando um pouco encharcados, é verdade, mas, como já disse, somos meio festeiros e nem chuva nos impede de saracotear, ainda que saltando uma poça d’água aqui, outra ali.

Além dessa manifestação extrema de carinho de meus primos, me chamou a atenção a livraria (Entre Páginas, rua General Glicério, 690) onde foi o lançamento. Não se encontra uma daquelas fácil por aí, não. Quem conhece esse mundinho dos livros pode imaginar que por trás do empreendimento há uma abnegada, uma idealista. Pois é isso mesmo. A livraria e seu café dão dignidade à Araçatuba, uma das poucas cidades com mais ou menos duzentos mil habitantes que pode se orgulhar de ter uma coisa daquelas. Torço para o negócio vingar e a dona enriquecer. Carisma não lhe falta.

Na livraria me acompanhava uma loura, ia de camisa preta com rosas vermelhas. É a Viveca, minha prima-irmã, grande responsável por tudo. Ela e a professora Cidinha Baracat, esta, por seu dinamismo e entusiasmo, uma mulher de tirar o chapéu. Cidinha é também uma acadêmica e foi quem teve a (estranha) idéia de me levar a Araçatuba. Se bem entendi, meus livros a cativaram (escritor vive disso, sabiam?).

No outro dia, sem chuva, lá fui eu para a sessão solene, na Câmara dos Vereadores. Meu Deus, era tanta gente com fardão. Eram idosos ao lado de jovens. Eram médicos, advogados, professores. Era o prefeito e um discurso que eu, por não viver ali, não pude entender plenamente. Me deu a impressão de rolar uma promessa de grana para a Academia, o que me levou, no improviso, a taxá-la de pífia e pedir mais. Inconseqüência estrangeira, a minha.

Não sabia muito o que falar para aquele público. De casa, havia levado o texto reproduzido abaixo (De onde escrevo), um guia antes de outra coisa. Abri a conversa contando minha ligação com a cidade, de meus parentes que foram para lá há muitos anos, na década de 40, salvo engano. Falei também de meu primo Paulinho, meu grande amigo de adolescência. Ele não estava ali, seus pais sim, mas ele não. (Como eu precisava do Paulinho na platéia. No outro dia, fui visitá-lo. Ele está careca e me deu uma meia dúzia de pares de meia e algumas horas de alegria e, e, ... não importa o que mais. Estive com ele, e rimos.)

A última parte da intensa programação foi um jantar com a turma da Academia. Minha família lá, festeiros como somos não é qualquer calor desumano, num lugar onde nem ventilador funciona, que nos impede de saracotear, ainda que o suor nos deixe menos elegantes do que somos.

Lá pelas tantas a Cidinha me chamou para dizer alguma coisa. Quando levantei da mesa, derramei água na camisa... Rasguei o verbo molhado e amarfanhado. Poderia ter rasgado um verso, mas minha memória, sei lá, acabo de esquecer como gostaria de qualificá-la.

Conheci uma psicóloga, feiticeira também, me pareceu, de uma cidade vizinha. Troquei algumas palavras com um escritor recém ingresso na Academia, um desses que concebem a vida interiorana como uma peça mágica elaborada sob medida por Deus. E ouvi um homem simples, marido de uma acadêmica, homem de mãos calejadas, contar uma história de discriminação ocorrida ali mesmo durante a confraternização.

Ele chegou e não havia mesas. Havia uma e somente uma, sobre a qual repousava um bule de café. Ele pensou bem pensado: para que serve um bule de café no início de uma festa? Tentou puxar a mesa, mas não lhe deixaram, ela tinha de ficar ali, com o bule. Ele, a mulher e a neta se meteram num canto do salão, sentaram-se no chão. Um pouco depois, ele viu outra mesa vazia. Sentou-se, mas não é que tentaram lhe tirar esta também? Estava reservada para outra pessoa. Nosso homem simples bateu o pé, e ficou. Bem, o bule de café foi desalojado e o tal convidado misterioso quando chegou encontrou a sua mesa prontinha, prontinha.

O homem simples me contou essa história porque me imaginava usando-a numa peça literária futura. Não sei, vale mais como história verídica mesmo, como exemplo de como estamos longe da sensatez que, em tese, distinguiria a raça humana das demais. Eu pensava isso, ouvindo o homem ainda. Agora comentava a minha “palestra” do dia anterior. Concordava comigo: sua sombra, como a minha, o acompanhava onde estivesse. Eu havia falado (leiam o texto abaixo) em assombro. Assombro, sombra... Nosso homem simples, que não se curvou à falta de mesa e à indelicadeza, reinventou minhas palavras. Nesse instante, sim, como disse um amigo meu, o homem me dava uma história para contar um dia.

Ainda fiquei mais uma manhã em Araçatuba. O suficiente para limpar a piscina da casa da Viveca, tendo como chefe o marido dela. Assim não, Alexandre. Isso, agora esfrega até a outra ponta. Escritor também trabalha (sob pressão). Como prêmio, Thales, o maridão, me deu uma caneta e uma lapiseira, as quais uso no meu dia-a-dia.

Lucros financeiros? Vendi alguns livros, mas dinheiro no meu bolso quando chegar não vai passar de umas migalhas. Portanto, lucro mesmo só meu caçula, o Pedro. Fui em Birigui visitar uma fábrica de calçados infantis, da irmã do namorado (a cara do Keanu Reeves) da Bárbara, a filha da Viveca. Escolhi um tênis e uma sandália, mas na hora de pagar não deixaram.

Se não fosse o fato de minha memória ser essa gelatina imprestável, me lembraria do nome do motorista que me buscou e me levou ao aeroporto de São José do Rio Preto. Outro homem simples, conversador, boa praça, bom motorista, o único que poderia ter percebido minha inquietação no momento da chegada e minha tristeza na partida.

De onde escrevo

(à Cidinha Baracat e ao Hélio Consolaro)

Sempre é de um lugar ou de um lugar-tempo, lugar-memória. Fala-se muito da infância, a partir dela, de sua nostalgia, sim, mas principalmente de seu encantamento, que nos marca a ferro e fogo.

No meu caso, será a infância se a ela associar-se a ignorância, não uma bestial qualquer, consciente e avessa ao conhecimento. Outra: ignorância inocente, condição de quem desconhece e não de quem nega ou renega.

O mundo me parece grande. Nos seus limites físicos, em seus colapsos geográficos. Maior ainda se a intenção de compreendê-lo não se voltar, em exclusividade, nem para o pronto da religião nem para a aventura da ciência. Porque o mundo cresce quando se apequena; quando é tão-somente um amontoado de gente (mais ou menos) organizada vivendo sobre ele; no seu colo; de seus troços.

Na linha da história, há um constante ascender e descender, neste se aninhando o germe da próxima ascensão e também o da próxima descensão. Fomos nômades, pastores, agricultores; encastelados hoje, aburguesados amanhã; crentes, utópicos, investigativos, guerreiros. Fabris inconseqüentes, ambientalistas raivosos. Fomos assim; vamos assim.

Mundo grande. Aberto à compreensão. Não uma única, várias; polifonia atonal, desafinada, também correta, senão burocrática, alegre e embriagadora. O economista olha assim. O sociólogo assado. O geógrafo releva. O antropólogo visita. E o escritor? Sua matéria é a ignorância, que se compensa, que se busca compensar, através do exercício do desbravamento.

Desbravar qual floresta? Qual obstáculo? Todos. Qualquer um. Até mesmo nenhum. Porque o escritor é, o escritor são. Se caminhássemos num imenso prado, Guimarães Rosa andaria só, com as mãos livres, seguido de longe por tímidos, cônscios de lhes caber apenas a tarefa da reprodução caricatural. Guimarães é único. Graciliano puxaria pelas mãos um séqüito heterogêneo: regionalistas, puristas do idioma, futuros exploradores do imensurável indivíduo (como um Noll). Clarice formaria outro bloco do eu sozinho, enquanto Mário de Andrade fixaria um projeto de coalizão artística ainda hoje ecoado (nova safra de escritores paulistas e outra de cariocas; nestes se vê mais claramente isso, pois demarcam o coletivo dando-se a si mesmos o selo de “Paralelos”).

Nem de longe pretende-se aqui teorizar, apenas se disse: somos vários de variadas formas, mostrando-se alguns e algumas das suas. Comum a todos a recusa de se vestir de um olhar ensinado. Ignoramos, portanto reinventamos, a roda a cada nova vez que nos colocamos em campo.

Eu escrevo entrelaçado a esse assombro do desconhecimento e arrisco a dizer que faço par com a grande maioria dos escritores. Disse assombro. Sobre ele, Julián Marías (História da Filosofia, Ed. Martins Fontes, 2004) afirmou ser a chama inaugural da filosofia. Ora, ora, nada mais natural que literatura e filosofia partam da mesma raia. Na primeira bifurcação, esta rumará para conter o assombro, conhecer tudo até o ponto em que não haja mais dúvida (quando então, sabemos todos, tudo se reinicia porque sempre há uma dúvida torta para uma certeza furada) nem assombro. A literatura, por sua vez, ao encontrar respostas não se dará por elas, porque o que lhe interessa é a travessia, é a peleja, é o vício da procura que nem sempre sabe ser de fato uma procura.

28.3.06

Enfim, um poema

Hoje, direto e reto, sem muita conversa fiada, coloco aqui nessa minha gaveta aberta ao mundo um punhado de versos (quem sabe se ainda em elaboração?). Devo dizer que o escrevi a partir da leitura de uns poemas do grande vagabundo norte-americano, Bukowski.

Saravá, poeta!


Canções Americanas
(Ao Cristiano dos Santos, que me emprestou o livro)

I
Não estou chorando, Kowski,
Vem do casco da cebola com que tempero a carne da carne de plástico —
Da vaca somática —
Ajuntando erva-daninha ao diabo da pimenta
Pra tascar fogo
Oh, Kowski!
Onde está o céu?
Cadê cadê cadê cadeira dura, bunda mole,
Quede quede o quarador de roupa e as colchas de mamãe
E as coxas da sua mãe, Kowski, pequeno marginal do pinto roto?

II
Baixa mulher das tetas que são demais pra minha boca
Sexista dia sim dia não dia sim dia e noite e noite e dívida
Tu carrega no bucho o porra nenhuma o abortumbrado
Filho meu dele de tudo quanto é um que te viu aberta
Em Paris da puta que nos pariu
— Parada.

III
A seiva de hoje é o duplo de cola e gelo
E gordura e sal e fica quieto e não se mexa
E não se mexa e trabalhe o dia a noite toda e mais um trago
E cheire e deite para não dormir para não sonhar para não
Para educada e cordialmente afirmar e reafirmar a próxima invasão, a de mil,
Na base da mão invisível
Com a ajuda da cartucheira de hoje afeita a disparos ininterruptos
Apontada para o artista da fome que sobe para o palco da morte
Num salto só do anonimato à estatística.

IV
Seu way of life
Seu Wayne e his wife
Carros carrões e grandes produções e a boca e a fome
De um russo exibindo a nudez das suas pudicícias
Enquanto a nova guerra (apodrecendo) arromba o glamour da vitória
Cuspindo à tona o suculento sangue do sangue do sangue bom do sangue de todos
Vocês e nós
Nós… apertados… apartados.

V
Furacões eunucos chamam a sua atenção para o seu tão próprio
Irreconhecido quintal. Seus olhos sempre
Esquadrinhando o além da cerca: o mundo, o mundo pouco visto mas imaginado
E fabulado
Para o qual
Sem se deter
Você avança de derrubada em derribada desenfreada
Sem freio freio nenhum.

VI
Marchas.
Estradas.
Algodão.
(Muita dor, de lascar.)
Jaz a alma
Petrifica-se a alegria
Come-se pelas bordas, queimando os beiços,
O último cigarro de bango
A última dose de a-que-incha
Para desbagulhar entrededos a tortura e a tontura
E morgar no colo do coito do coito do coito da violência
Selada nas coxas — e cruel.

VII
Onde estão seus tamborins?
Batendo na mesma tecla
Dos excessos do seu silêncio
Que mareia a miséria cujo endereço
São seus becos sem saída
E suas raízes fissuradas.
Mas também
Ludibriando o rigor da escala
Com tanta paixão e fome e fúria e medo e vergonha e demência
Se assemelham ao que não são: a um assobio descuidado
Nas filas dos seus supermercados de sua previdência social de sua acolhedora morte.

VIII
O carnaval submerso de New Orleans
O vício tabagista das fábricas
A mistura de diesel ao sangue
O batismo cifrado das sementes de trigo
A obesidade dos esgotos:
Ao Lucro, as batatas (de parafina).

IX
O suor de Luther King
O suor (frio) de Parker
Duas gotas da mesma dor
Duas dores da mesma cor
Dois gritos gestados no umbigo das contradições
Que cheiram a flor que cheiram a peido
Que não fedem nem cheiram
Até ... até o pum fatal da pólvora e o tum final do coração ao injetar mais sem poder.

X
Kowski, a descoberta de seus iguais
(Iguais na sede; iguais na perspicácia; iguais)
Cobre os pés, também os meus, quando o cobertor é curto
Abraça quando tudo desmorona
Empurra quando já é cansaço demais.
Mas, Kowski, seu punheteiro,
Conterrâneos, seus desiguais,
Preferem um certo frio,
Cair de vez
e
Morrer
de
Cansaço.



21.3.06

Não sei ao certo

Durante a minha infância, ouvi, e muito, esse papo de que homem não chora. Não lembro de ter saído da boca de meu pai, mas familiares diziam, outros pais diziam, professores também. Sou do tempo em que todos diziam.

Nunca eu mesmo disse, nem a mim, nem a amigos, sobrinhos ou filhos. No entanto, o fato é que poucas vezes chorei.

Lembro de todas elas.

Quando minha avó materna morreu. Um certo dia depois da morte de meu pai. Quando foi a vez do Marião. Sempre a morte. O choro da orfandade é a exceção permitida: lembro de assistir atônito ao pai: homem forte, rasgando-se na frente de todos diante da morte do filho.

Nunca no cinema. Nunca lendo um livro. Nem ao ver uma imagem de terror. Não choro diante da pobreza vergonhosa habitante de nossas ruas, ainda que sofra por ela; covardemente.

Sou da secura de minha mãe.

Ainda que.


Ao ouvir a gravação ao vivo de “Travessia”, feita por Elis Regina (em disco lançado depois de sua morte, a partir de umas fitas que receberam um banho de tecnologia), já não comungo intimamente com o racional dos parágrafos anteriores. Algo se desmancha, se transforma em outra coisa tão eu quanto, mas meu diferente.

Posso muito bem ver Elis levantando os braços, fechando os olhos, naquele instante em que a melodia sofre sua inflexão, para cantar o estribilho (“solto a voz nas estradas...”). Neste momento e todas as vezes, Elis cruza a fronteira, passa para o lado do sublime. A guitarra de Natan Marques toca solo assemelhado a um lamento metálico, levando a voz de Elis. Para onde?

Não sei ao certo... É provável que para um ponto de muitos pontos, onde minha química, minha biologia, meus nervos e minhas fricções elétricas sucumbem à magia da condição humana, que nasce ali entre tudo isso para ser uma força muito maior do que a soma de seus elementos.

Enfim, espaço onde a dor é e pronto.

28.2.06

Alalaô



Escrevo livros.

Corrijo: escrevo, e o que escrevo será livro se combinarem duas coisas: boa safra e sorte. Nos livros, organiza-se aquilo que, na surdina, na dor, na revolta, no silêncio, no escambau a quatro se construiu. Mas para virar livro é preciso percorrer um longo caminho cujo ápice é convencer o editor a investir naquela viagem solitária, feita por necessidade e não por outro motivo qualquer.

Escrever é, portanto, um jogo de azar (não parece haver melhor expressão para isso). Em jogo se ganha, se perde. Ou nem um, nem outro. Na esgrima da escrita, o empate é o resultado mais provável.

Ganho quando escrevo e boto meus diabos para fora. Perco ao ser lido, ao ver tantas leituras distintas das minhas. Mas aí, a partir do sopro do outro, volto a ganhar.

Do lado mercadológico, ... derrota. Os editores me rechaçam. Minto: não a mim, ao que escrevo. Tudo muito cerebral, escatológico, pornográfico, hermético. Como péssimo combatente, não discuto, a grana é deles e o zelo pelo que escrevo é meu. Volto pra casa. As crianças não precisam desse escritor para o leite do dia-a-dia, é um funcionário público que as sustenta (coitadas!).

(Esse meu texto começa capenga, volteando, opa, cai, não cai. Também, escrito numa terça de carnaval.)

A verdade é que um livro traz dentro de si uma chance rara, talvez apenas o encontro amoroso compartilhe de virtude que se compare. Pode nos acontecer de ao ler ter um clique e, a partir dele, ainda que não necessariamente para sempre, enxergar. Enxergar nosso estar no mundo; e entendê-lo. Não com a régua e o esquadro da ciência, mas com o exército de nossas faculdades sensoriais, afetivas, do que não se nomeia assim de chofre numa terça de folia.



“A Náusea”, de Sartre, exige um exercício de algo que deixa lá pra trás o rigor da inteligência, do bem entender. Recorrer em sua leitura à idéia de entrelinha é dar com os burros n’água. Os achados do escritor não estão amealhados nos pequenos vazios simplesmente porque, agarrados ao preto e branco do que está impresso ou às sombras do que está sobre ou subescrito, não podemos nos valer de um só caminho, ainda que o fazendo de mãos dadas à razão, essa nossa irmã metida a besta, que se quer guia.

Não usaria mais do que duas linhas para contar o livro. Se usasse oito mil e trezentas não faria diferença: acompanharia os passos do sujeito que está no interior da França escrevendo sobre um personagem histórico altamente polêmico: burguês e envolto em transações escusas mundo afora.

Mas não é isso. Ou por outra, é também isso. Porque entre a primeira entrada na biblioteca e a última, entre as incontáveis perambulações pela cidadezinha portuária e o encontro com aquela que é seu amor, mas que também não o é, o personagem, ele...

Sartre gastou tempo escrevendo seu livro, ou por outra, fazendo anotações que, a seu juízo, e graças a Deus, poderiam ser — e foram — um livro. Contou então com a sorte e algum investidor (não sei da história, se foi primeiro uma edição independente, bancada pelo autor, mas isso pouco importa) foi lá e fez do livro a “A Náusea”, pronto e acabou. Pude lê-lo quarenta, cinqüenta anos depois de lançado; outros o fizeram ali no calor da novidade.

Fico confortado em pensar em Sartre percorrendo os mesmos caminhos de qualquer outro escritor: a solidão, a obra, o oferecimento, o investimento, o mercado e por aí afora. Me desespero em pensar que ele escreveu essa pequena obra prima, enquanto eu... pornografias para uns, hermetismos para outros...

Caramba, o personagem de Sartre vê a existência das coisas. Esse diferencial humano, o existir, não o diferencia, ao contrário: nossa existência é da mesma espécie da existência das árvores. Somos mais um elemento num dos reinos transitórios que povoam a terra.

(O verbo de Sartre é quase (mais do que) uma pornografia... e alguém pagou pra ver. Meu texto termina cambaleante, tocado por rabo de galo que não bebi.)

“Alalaôôô, mas que calor!”[1]


[1] Antes que eu me esqueça. Meus livros: “Contos de homem” (1995, Ed. Aldebarã) — só eu e uns poucos sebos no Rio o temos; “Estão Todos Aqui” (2005, Ed. Bom Texto) — clique e
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  • 3.2.06

    Voltei


    Andei sumido daqui.

    Sei lá, há umas coisas que estão me incomodando na forma do blog, aquela coisa azul lá no início está totalmente fora do padrão e não sei dar um jeito nisso.

    Mas voltei! Coloquei uma velha crônica, para ver se pego no tranco.

    E também uma velha foto, lá de Trancoso no início dos anos 80. Viagem inesquecível com minha amiga Denise, que reencontrei no ano passado.

    Sonhar com Queijo e Nada Mais



    Os ratos sonham. Quem garante é o Doutor Mattew Wilson do Centro de Memória e Aprendizado do MIT (sigla em inglês para Instituto de Tecnologia de Massachesetts). A “descoberta” é comemorada pelo pesquisador, que garante: “Já se passou um século desde que Freud mostrou que os sonhos são um instrumento para compreender a natureza da cognição e do comportamento humano. Agora, aprendemos a mergulhar nos sonhos dos animais, o que nos permitirá aprender mais sobre nós mesmos”. No duro da cebola, os sonhos dos ratos poderão, no futuro, traduzir-se na cura do Mal de Alzheimer, por exemplo.


    Sabe-se mais a respeito destes sonhos, além do fato de existirem, os cientistas americanos descobriram com o que sonham os ratos e os outros animais de modo geral: sonham que estão comendo, sonham, no caso das cobaias, com os labirintos em que estiveram perambulando durante o dia.
    Quando ninguém ligava para isto, Freud insistia na importância do sonho humano. Um de seus casos mais conhecidos é exatamente o do Homem dos Ratos. Era um sujeito que sonhava que alguém sofria uma estúpida tortura em que ratos vorazes eram postos em seu corpo, digamos que pela porta menos nobre, se é que vocês me entendem. A partir destes sonhos, Freud matou a charada, o sujeito, um neurótico obsessivo, transitava entre um homossexualismo abafado e uma certa tara heterossexual.


    Mas, agora, o Dr. Wilson investiga os sonhos dos ratos. Os ratos jamais investigariam os seus próprios sonhos e é exatamente isto que nos diferencia deles. Além de sonharmos, podemos fazer de nossos sonhos material para nos entender melhor e, ainda, podemos fazer dos sonhos dos ratos, das tartarugas e dos leopardos (e as árvores e as montanhas?) matéria prima para solucionar doenças que degradam o nosso trunfo que é a condição humana.


    Mas ouso dizer, sem nenhuma base científica: o sonho no rato é apenas um resíduo de uma vivência que permaneceu em seu cérebro. Seria assim também em nós não fosse a nossa capacidade de desejar, de alguns mais, outros menos, a de usarmos da razão e, por fim, não fosse o fato de que podemos sonhar acordados. O sonho nos empurra para frente, nos faz pensar em construir uma casa, em ter filhos, em viajar para Angola, em estudar os ratos e os seus sonhos.


    Os ratos sonham com queijo, como não são homens franceses ou mineiros, sonhar com queijo não tem nenhum outro significado além dele mesmo.