14.8.23

O fim de tudo

 

Há muito tempo eu escuto esse papo furado / dizendo que o samba acabou / só se foi quando o dia clareou (Paulinho da Viola)


Ora acabam com o samba, ora com o conto, com a literatura, com a história. No entanto, meus amigos, o que vai acabar é o mundo, mas até lá nosso assombro, cuja voz é a música, a literatura, a escultura, a pintura, o cinema, a ciência, continuará se manifestando. Portanto não passa de um novo alarme falso o fim da crônica anunciado por Julian Fuks em sua coluna no UOL. Segundo ele, a pressa dos dias de hoje justifica essa morte. Não a pressa de todos, ele esclarece (ou imagina esclarecer), mas a do leitor. Ó, meu deus, a pressa está aí pelo menos desde a Revolução Industrial, claro que se ajustando às novas tecnologias. Ela nada mais é do que a subtração do nosso tempo pelos perrengues da sobrevivência, portanto a gente se adapta a ela não é de hoje. Alguns afoitos leem, no entanto a maioria nunca leu nem vai ler. Assim é a triste realidade.

O tique-taque comeu, sem mastigar, o tempo medido pela posição do sol, pelo desenho da sombra, pelas manifestações do estômago, e essa aceleração não destruiu nada que chamamos de arte, ao contrário, o romance – esse colosso que já teve mil, mil e quinhentas páginas, reduzidas hoje, na pressa de todos, inclusive dos escritores, a no máximo duzentas, com raras exceções – frutificou ali. Agora o vapt-vupt engoliu o tique-taque, e, graças às descobertas e inventos atuais dos tempos velozes, viveremos uma vida longa – morrendo, no entanto, mais novos do que nunca – e, como não?, produzindo arte e ciência. Portanto sejamos menos alarmistas. Quem dá as costas à literatura ao rés do chão é a grande imprensa. A crônica, que nasceu num cantinho sem proveito do jornal, foi expulsa dele. Sobra um Joaquim Ferreira dos Santos aqui, uma Martha Medeiros ali. Mas, em meio ao menosprezo, surge, na cabeça apaixonada e sábia de um jovem paranaense, essa Rubem, que dá guarida a mim e a outros onze cronistas (sem contar os que já contribuíram com ela), alguns inclusive com passagem pelos jornais. O Rascunho, publicação literária já longeva, mantém cronistas entre seus colunistas e, recentemente, o prêmio Jabuti abriu distinção ao gênero, o que sugere que se têm escrito livros de crônica.

Enquanto houver pobreza, haverá crônica. Enquanto houver histórias de amor, haverá crônica. Enquanto houver uma tristeza ou mesmo uma alegria sem motivo, haverá crônica. Tédio? Crônica. Ironia? Crônica. Um sujeito dado a caminhadas pela rua é um potencial cronista. Uma mulher tomada por uma lembrança erótica é uma potencial cronista. Um saudosista pode ser um cronista, ainda que chato. Uma atendente de petshop precisará apenas de um empurrãozinho (do talento) para escrever crônicas contando aonde chegou nosso amor pelos animais domésticos, sem se esquecer dos excessos por conta desse amor.

A crônica não acabará, assim como a história não acabou com o fim da Guerra Fria. Nosso problema é outro: se não cuidarmos do mundo – mantendo florestas em pé, esfriando o planeta um bocado, distribuindo a riqueza –, é certo que, pegos no contrapé, não teremos nem tempo de escrever a crônica do fim de tudo.

7 comentários:

Cesar Cardoso disse...


Quer fazer o favor de parar com esse negócio de escrever crônica? Senão, como é que ela vai acabar?
Abraço, meu amigo.
Aliás, essa tua crônica tá ótima.

Alberto Calixto Mattar disse...

Excelente.

No Osso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
No Osso disse...

Cesar, você pontuou muito bem. A partir de hoje, em vez de dizer que escrevo crônica, vou falar que escrevo uns trens (combina com minha mineiridade), que é um negócio que já acabou no Brasil, então não corre mais risco de acabar.

Betão, obrigado.

Afonso Guerra-Baião disse...

Pois é, meu caro! Li o texto do Fucs e fecho com o seu. Esses dias ouvi, num podcast, o Chico Bosco anunciando que para os dias de hoje o ensaio é mais importante que o texto poético. Tem hora que tá faltando assunto...

No Osso disse...

Afonso, obrigado pela leitura. E o que não falta é assunto, aliás, falta de assunto é um assunto clássico dos cronistas.

Dag Bandeira disse...

Isso é que é cronista. Até com a ameaça da crônica, uma outra se fez viável. Acho que a morte do gênero ficará para as outra encarnações da literatura.