29.5.14

Mulheres longe de um ataque de nervos

Recentemente um filme e um livro me chamaram a atenção por contarem histórias de mulheres, longe da juventude, que se “perdem no mundo”.
Em “Ela vai” (no original, “Elle s'en Va”, de Emmanuelle Bercot), Bettie, a personagem de Catherine Deneuve, é dona de um restaurante, divorciada e vive com a mãe. Com a velha desculpa de “vou ali comprar cigarros”, Bettie começa a dirigir a esmo pelo interior da França. Ela se depara com um velho que lhe arranja um cigarro, entra num bar de beira de estrada, frequentado por pessoas sem muitas opções numa cidadezinha daquelas. Desse bar, bêbada, ela sai para um motel com um homem mais jovem. As andanças poderiam levá-la a sabe-se lá onde, mas a filha, com quem vive uma relação conflituosa, pede socorro: por conta de um compromisso de trabalho longe de onde vive, não tem com quem deixar o filho. Avó e neto, distantes de início, aproximam-se, pouco a pouco, pelo afeto e passam a fazer com cumplicidade a viagem sem rumo iniciada por ela. Vivem contratempos (inclusive a falta de dinheiro e um piripaque da avó) que os levam à fazenda do avô do menino, ex-sogro de sua filha. Sim, haverá uma história de amor, que eu, longe de querer tirar o prazer de quem venha a ver o filme, não conto. Seja como for, se filmes dessa espécie estão muito associados a homens (no topo, “Easy Rider”, com Peter Fonda e Dennis Hopper), as mulheres, quando se metem em aventura desse tipo, são jovens (“Corra, Lola, corra”, “Thelma e Louise”). Assim, o mérito do filme é mostrar que, como se diz, a vida só termina quando acaba.
Na literatura, não consigo me lembrar nem mesmo de uma personagem jovem que, à moda dos “perambulantes” de João Gilberto Noll, se perde em ruas ou cidades. Minto, há a do livro da Stella Maris Rezende, “A mocinha do Mercado Central” (Globo Livros), mas é uma mocinha, não uma senhora. Por conta de seu ineditismo, “Quarenta dias”, livro de Maria Valéria Rezende (Alfaguara), é pura surpresa. Impelida a se mudar de João Pessoa para Porto Alegre para ficar próxima da filha com planos de ter filhos, a professora aposentada, ao chegar à nova cidade, se depara com a mudança da filha, que, por conta de um doutorado no exterior, deixa a mãe ao deus-dará. Assim, Alice — podem pensar na personagem de Lewis Carol — conhece Porto Alegre na marra. Quando digo conhece, tenho de dizer que, na verdade, ela se mete na parte menos esplendorosa da cidade, a do povo que vive nas vilas — palavra com a qual os gaúchos nomeiam as favelas. É nesse canto que a paraibana encontra outros “brasileirinhos”, como ela e seus conterrâneos são chamados por lá, inclusive ou principalmente, pelos próprios pobres.
A razão pela qual Alice deixa o apartamento e vai às ruas da cidade desconhecida é um pedido de ajuda, vindo de sua Paraíba, para localizar o filho de uma amiga. Com a história da dor da mãe que perdeu o filho, Alice vai abrindo as portas das vilas e, logo, vai se transformando — ela mesma — de uma tal maneira que já não encontra meios de voltar à vida solitária, mas confortável, estabelecida em Porto Alegre. A incumbência de encontrar o filho da amiga perde o sentido e passa a ser usada apenas quando Alice precisa se aproximar de alguém, conquistar a atenção da pessoa. Durante os tais quarenta dias, a ex-professora, retirada de sua terra natal, se torna uma sem-teto. É uma aventura que, enquanto se desenvolve, dá ao leitor a dimensão de como há solidariedade — quase invisível — entre aqueles que têm pouco ou já não têm nada. No último caso, os dois mendigos com quem Alice trava uma amizade de fato representam o humano sem deformação, sublime. Aliás, será com outro empurrão, dessa vez de sua amiga de rua — e, fora do esperado, uma com teto —, que Alice voltará ao apartamento e, com urgência, passará a contar sua história num caderno em cuja capa estará a gravura de Barbie, essa boneca que representa o oposto do que a ex-professora é, mas que passa a ser a outra com quem Alice dialoga.
Apenas como curiosidade: a religiosa Maria Valéria Rezende viveu quarenta dias zanzando por Porto Alegre, dizendo, como Alice, que procurava o filho de uma amiga. Chegou a dormir em bancos de hospitais e rodoviárias. Isso está relatado em matéria do Estado de São Paulo, do dia 3 de maio de 2014 . Mais uma curiosidade: Maria Valéria, que chama muitos passenses de primos, tem raízes na cidade, passava férias por aí e se lembra até hoje do pontilhão da Santa Casa, coisa que quem nasceu depois da construção do “Tobogã”, ladeira que liga a rua Santo Antônio à Santa Casa, nem sabe que existiu.

3.5.14

Modos de crescer

Na edição brasileira do El PaísLuiz Ruffato conta, em crônica de 1º/4/2014, “Voando pelos ares”, como se tornou adulto. Não dou detalhes, corram ao site e leiam vocês mesmos, mas adianto que o processo de amadurecimento do escritor esteve ligado a uma bicicleta. Sim, a uma bicicleta. Cada um com a sua história.
No primeiro final de semana de abril, li notícias de mais morte de jovens em Passos, todas por acidentes automobilísticos. Antes e depois, outras notícias também de Passos — corriqueiras nos dias atuais — deram conta de dois ou três assassinatos de meninos de alguma forma ligados ao tráfico de drogas e a todo o submundo que se forma em seu entorno.
A morte de alguns amigos meus ainda jovens foi, penso, parte importante do meu processo de amadurecimento. O maior baque foi a morte do Branco. Era um garoto cheio de vida e que, para a alegria de seus colegas, tinha um fusca equipado com um som da melhor qualidade. Metidos naquele carro, enquanto a fita cassete repetia, à exaustão, o Deep Purple, descíamos a rua do meio, subíamos ao trevo, contornávamos mil vezes a Praça da Matriz. A música era nossa praia. Um pouco depois, ele ganhou ou comprou uma moto de 50 cilindradas e, nela, perdeu a vida. A notícia da morte dele, depois de dias e mais dias hospitalizado, me pegou dormindo. O Glã passou lá em casa e pediu que me acordassem. É, ser despertado com uma bomba dessas não é bolinho.
Velamos nosso amigo a madrugada toda. (No corpo cercado de flores, não restou nenhum pingo da beleza que lhe havia garantido sucesso com as meninas.) Na volta para casa, pela Rua dos Brandões, em algazarra, pedimos pão na padaria que se preparava para abrir. A moçada, nos bafos de seus dezesseis anos, não sabia sofrer em silêncio. Na verdade, nessa idade não sabemos fazer nada sem certo estardalhaço.
A partir da perda do Branco, nunca mais fui o mesmo. (A vida, insatisfeita, ou a morte, faminta, ainda levaram outros tantos: Nuna, Diminhas, Caco, Boda, Serjão, Cunha... não foram poucos). Morremos, descobri. Para adiar a morte eu teria de aprender a cuidar de mim, me sugeriu a intuição. Dar-se conta de que é preciso cuidar de si mesmo, a meu ver, é amadurecer. Não deixei de fazer besteiras — opa, fiz poucas e boas — mas quem fez ou deixou de fazê-las não era o filho do pai, da mãe, nem de deus, e, sim, alguém que, no soco, havia perdido a inocência e tomado a vida nas próprias mãos.
Deixando a questão pessoal de lado, o fato é que jovens morrem aos montes e, na maioria das vezes, engrossam as estatísticas de morte violenta. No passado, em acidentes e por excesso de drogas. Hoje, ao lado disso, muitas mortes associam-se ao tráfico, o que mostra que, num intervalo de mais ou menos 30 anos, mesmo em cidades do porte de Passos, o tráfico se consolidou em uma estrutura empresarial. Armada. A liberação das drogas e a consequente legalização de um mercado que deve persistir fariam diminuir o número de mortes violentas entre os jovens (não só entre eles, é verdade). Antes que alguém levante a mão e questione, já respondo: não, não acredito que o consumo aumentará com isso, ao contrário, com uma campanha forte (vide a de cigarros) poderá mesmo diminuir.
Num mundo menos violento, crescem as chances de o amadurecimento resultar de uma experiência como a vivida pelo Ruffato. Mas, não se animem, tornar-se adulto por conta de uma bicicleta é tão intenso quanto por qualquer outra forma. Crescer dói.
Imagem captada no site "Ai, minha nossa senhora".